Dom Frei Vital João Wilderink, O. Carm.
A espiritualidade é um
caminho de não-ser para ser, um processo divino-humano de transformação em que
podemos distinguir cinco níveis ou dimensões: criação, recriação ou redenção,
semelhança, amor e glória. A mística pode tomar forma em cada uma dessas
dimensões. O predomínio de uma determinada dimensão resulta em determinado tipo
de mística.[1]
Não existe, portanto, a mística como
um prêt-a-porter. Aliás, o mesmo
podemos afirmar da fé que é também uma caminhada que no concreto do seu acontecer
acentua determinada dimensão. Seria interessante investigar o que alguém quer
dizer quando afirma: tenho fé em Deus, ou quando um repórter, no fim de uma
entrevista, pede “uma mensagem de fé” para seus ouvintes ou leitores.
Existe uma relação íntima
entre fé e mística. Na fé já estamos no nível teologal: é o próprio Deus que dá
ao ser humano a capacidade de relacionar-se diretamente com Ele. Portanto a fé
é a raíz da vida espiritual: “Deus amou o mundo a tal ponto que deu o seu Filho
único, para que todo o que nele crer não morra, mas tenha a vida eterna”(Jo 3,
16). Na fé nos apoiamos na palavra de Deus como condição da nossa peregrinação
sobre esta terra. É peregrino quem vive no meio das realidades deste mundo e,
ao mesmo tempo, caminha para além delas até seu fundamento invisível: “Pela fé
compreendemos que o universo foi organizado por uma palavra de Deus, de sorte
que as coisas visíveis provêm daquilo que não se vê”(Hb 11, 3). Caminhada feita
de confiança, que sempre de novo se esbarra com as nossas exigências de
autonomia racional diante das “evidências” das coisas visíveis: “Pela fé,
Abraão obedeceu à ordem de partir para uma terra que devia receber como
herança, e partiu, sem saber para onde iria”(Hb 11,8).
Mas, o Mistério só pode
ser percebido na fé quando se torna presente. Seria irracional deixar ao homem
a escolha do modo em que Deus revela sua presença porque o homem só sabe criar
ídolos. Até hoje tropeça nos deuses que ele já fabricou e continua a fabricar!
“Filipe, há tanto tempo estou convosco, e não me conheces? Quem me vê, vê o
Pai. Como é que tu dizes: ‘Mostra-nos o Pai’? Não acreditas que eu estou no Pai
e que o Pai está em mim?” (Jo 14, 9-10). Para tornar-se presença o Mistério
serviu-se da própria realidade criada por Ele, entrando no tempo e no espaço.
Ele se fez homem com a sua vida que nasce, se desenvolve, morre. Loucura para
os racionalistas e liberais de todos os tempos, escândalo para os que se
reservam o direito de interpretar o que Deus pensa.[2]
A fé faz entrar no espaço
vital de Jesus o espaço da manifestação do Pai que, de maneira intensa,
acontece no mistério da cruz. Mas, se não fosse a cruz do Ressuscitado, a fé
não teria nenhum valor (1Cr 15,16). Quem pela fé adere a Jesus pode fazer as
obras dele, inclusive outras que são maiores na sua força reveladora, uma vez
que Jesus ressuscitou (cf Jo 14, 12-13). É que no tempo, em cada momento do
tempo existe o “Hoje” de Deus. Pela fé o captamos mediante sinais, sinais dos
tempos, como aprendemos a dizer depois do Vaticano II. Esse “Hoje” não é uma
abstração, uma realidade inteligível despojada das aparências sensíveis e
históricas. É perceber, ao mesmo tempo, a realidade histórica em si mesma e
enquanto manifestação divina. Não se trata, porém, de uma visão evidente. Na fé
o Mistério de Deus nos é dado gratuitamente. Mas, a fé tem também o seu lado
subjetivo: entra aqui a consciência
pessoal que formamos desse dom. A fé é “a vitória sobre o mundo”(1 Jo
5,4). Mas o “mundo” não são somente os homens e as situações, o acontecimentos
e o que se passa nele, mas também nós mesmos, o nosso jeito de ser, com todas
as suas tensões, fragilidades e crises. A fé, além de ser um reconhecimento
certo e firme da verdade, fundado não em provas e argumentos, mas na confiança
que temos na testemunha que assegura essa verdade para, assim, orientar a própria existência à
luz dessa verdade.[3] A
fé, unida à esperança e à caridade, torna-se a razão do nosso viver. Isto,
porém, não acontece sem um despojamento e uma purificação do aspecto subjetivo
da fé.
As virtudes teologais
oferecem ao ser humano o dinamismo para um processo de transformação que,
atingindo sua liberdade e sua responsabilidade histórica, dilate sempre mais a
sua consciência até a universalidade de Cristo. Dirigindo-se aos cristãos de
Éfeso, Paulo, em atitude de súplica, pede ao Pai “que ele faça Cristo habitar
em vossos corações, pela fé, e que e que estejais enraizados e bem firmados no
amor. Assim estareis capacitados a compreender, com todos os santos, qual a
largura, o comprimento, a altura, a profundidade; e conhecereis também o amor
de Cristo, que ultrapassa todo conhecimento, e sereis repletos da plenitude de
Deus” (Ef 3, 17-19). Paulo fala do conhecimento do Mistério oferecido pela fé
que de fato supera o conhecimento intelectual embora não o exclua. De outro
lado, a expressão “repletos da plenitude de Deus” faz pensar num conhecimento
ou, melhor talvez, numa experiência do Mistério sem outras mediações a não ser
a graça, segundo a riqueza da glória de Deus, por meio do seu Espírito(Ef
3,16). Seja como for, as palavras de Paulo dão ensejo a ver mais de perto os
traços caraterísticos da mística cristã que a própria fé anuncia como uma
promessa.
(Leia na 4ª Parte: AS CARACTERÍSTICAS DA MÍSTICA)
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