Dom Frei Vital João Wilderink, O. Carm.
Uma jovem universitária
Um dia, cedo ainda, ela
foi à faculdade de bicicleta. Uma chuva que caíra durante a noite, tinha lavado
as folhas das árvores que beiravam a alameda que ela percorria. De repente, uma
gota d’água caiu-lhe na nuca. A reação espontânea seria levar a mão à pele
umedecida para desfazer uma sensação incômoda. Mas a jovem ficou profundamente
emocionada. Como se tomasse consciência de uma presença que era maior do que
aquela sensação provocada pelo pingo d’água, maior do que seus próprios pensamentos.
Parecia que as tantas preocupações e barreiras que marcam e fragmentam a vida
tinham desaparecido numa transparência, numa unidade interior que não era feita
de um simples conteúdo. Como falar disto? Embora cristã, a jovem não dispunha de uma linguagem religiosa para verbalizar a
sua experiência. Quem sabe, com as palavras do Pequeno Príncipe de
Saint-Exupéry poderia ter dito: “o essencial é invisível”. Experiência do
numinoso, do transcendente? Uma iluminação? Mas nem essas expressões faziam parte
do vocabulário da estudante de medicina.
Um adolescente
Acariciadas pelo vento,
as folhas das árvores faziam ouvir um murmúrio. Não foi a primeira vez que ele
o notava. Mas naquele dia o fenômeno da natureza o atingiu além dos sentidos.
Como se ele mesmo fosse puxado para dentro de uma esfera de silêncio feito de
uma plenitude. Foi um breve parêntese onde perdeu a experiência e a noção de
tempo e de espaço, mas que o marcou para a vida. O relato me fez pensar no
profeta Elias, escondido numa gruta do monte Horeb quando, depois de um
furacão, de um terremoto e de um fogo, ouviu o murmúrio de uma brisa suave:
“cobriu o rosto com o manto, saiu e ficou na entrada da gruta” (1 Rs 19,
11-13).
São Bernardo
(1090-1153)
Monge cisterciense,
fundador da abadia de Clairvaux e de numerosos mosteiros, doutor da Igreja,
conselheiro de príncipes e de papas, autor de tratados de teologia, conhecido
pelos seus sermões. Num sermão sobre o Cântico dos Cânticos, o abade
confessa que recebeu com certa
freqüência a visita do Verbo, mas que não soube explicar como Ele entrou.
Afirma, porém, que não foi pela porta dos sentidos naturais.
Então
por onde entrou? Ou será que Ele não entrou, visto que não vem de fora? Pois Ele não é nenhuma das coisas que estão
fora de nós. Também é certo que não veio de dentro de mim, porque Ele é
bondade, e bem sei que em mim não existe nada de bom. Daí eu me elevei acima de
mim mesmo, mas o Verbo está mais além. Intrigado, sondei o que está abaixo de
mim, mas Ele está em maior profundidade. Olhando para fora de mim, concluí que
está além de tudo o que do lado de fora
fica o mais longe de mim. E olhando
dentro de mim, que a sua presença é mais interior que o meu íntimo. E assim
compreendi a verdade daquilo que eu tinha lido: “Nele vivemos, nos movemos e
somos” (At 17,28).[1]
Santa Teresa
de Ávila (1515-1582)
Religiosa carmelita
reforma a sua Ordem com a ajuda de S. João da Cruz. Escreveu várias obras. Em 2
de junho de 1577, por insistência de Frei Jerônimo Gracián, começa a escrever O Castelo Interior ou As Moradas.
Enquanto
eu hoje estava suplicando a nosso Senhor que falasse por mim - já que não sabia
o que dizer nem como começar a cumprir esta tarefa - veio-me em mente o que
agora vou dizer, para começar com um pensamento que sirva de fundamento. Este
consiste nisto: considerar nossa alma como um castelo todo feito de um diamante
ou cristal muito claro em que há muitos aposentos, como no céu há muitas
moradas. Pois, considerando bem, irmãs, a alma do justo não é outra coisa que
um paraíso em que Deus, como Ele diz, encontra as suas delícias (Pr 8,31). Pois
bem, o que vocês pensam: como será o aposento onde um rei tão poderoso, tão
sábio, tão puro, tão rico de todos os bens se regozija? Não encontro nada com
que a grande beleza e a grande capacidade de uma alma possam ser comparadas.
Realmente, a nossa inteligência, por aguda que possa ser, mal chega a
compreendê-lo, assim como não pode chegar a conhecer a Deus; pois Ele mesmo diz
que nos criou a sua imagem e semelhança (Gn 1,26). Agora, se é assim - e assim
é - não há razão para nos cansar com tentativas para compreender a beleza desse
castelo, pois, ainda que entre ele e Deus exista a diferença que há entre o
Criador e a criatura - porque o castelo é criatura - é suficiente que Sua
Majestade diga que o fez à sua imagem para que apenas possamos entender a grande dignidade e beleza
da alma.[2]
Consideremos
portanto que esse castelo tem, como eu disse, muitas moradas, umas no alto,
outras embaixo, outras dos lados. E, no centro, no meio de todas está a
principal, onde se passam as coisas de grande segredo entre Deus e a alma.[3]
Dag
Hammarskjöld (1905-1961)
Nasceu como quarto filho
de uma família luterana, pertencente à nobreza sueca. Muito dotado e
inteligente, estudou história da literatura, francês, filosofia e economia.
Exerceu vários cargos no governo de seu país, principalmente nos setores
econômicos e financeiros. Em abril de 1953 foi eleito secretário geral das Nações Unidas. Morreu num desastre de
avião no Congo, em 17 de setembro de 1961, quando estava empenhado em resolver
pacificamente os graves conflitos naquele país. No seu apartamento em Nova York
foi encontrado seu diário onde descreve o caminho da sua vida interior. Segue o
texto escrito no dia de Pentecostes do ano em que faleceu:
Eu
não sei quem - ou o que - fez a pergunta. Não sei quando ela foi feita. Não me
recordo se respondi. Mas uma vez eu disse sim
a alguém - ou a algo. Desde aquele momento tenho a certeza de que a vida
tem sentido e que a minha vida, em obediência - tem um objetivo.
Desde
aquele momento eu soube o que quer dizer “não olhar para trás”, ou “não
preocupar-se com o dia de amanhã”. Conduzido através do labirinto da vida pelo
fio de Ariadne desta resposta, alcancei um tempo e um lugar em que tomei
consciência de que esse caminho leva para um triunfo que é perda, e para uma
perda que é triunfo, que o preço que você recebe pelo engajamento de sua
própria vida é injúria, e que a profundidade da humilhação é a única elevação
que é possível para o homem. Depois disso a palavra “coragem” perdera para mim
o seu sentido, porque não havia mais nada que me pudesse ser tirado.
Caminhando
para mais adiante, aprendi, passo por passo, palavra por palavra, que por trás
da cada frase do herói do evangelho está um homem e a experiência de um homem.
Também por trás da oração para que o cálice fosse afastado dele, e por trás da
promessa de esvaziá-lo até o fim. Como
está por trás de cada palavra na cruz.[4]
Hadewijch
(primeira metade do século XIII)
Pouco se sabe da
história desta mística. A língua em que escreveu permite localizar Hadewijch na
região de Brabante (Bélgica), possívelmente em Antuérpia. Ela exercia uma
liderança num grupo de mulheres “religiosas” sem votos. Deixou alguns escritos
que abrangem três categorias: Cartas,
Poesias e Visões. Estas últimas são relatos da sua experiência de Deus.
Cópias manuscritas desses textos foram reencontradas na Biblioteca Real em
Bruxelas. Várias publicações desses manuscritos continuam, até hoje, a incentivar estudiosos ao aprofundamento dos
textos de Hadewijch do ponto de vista
literário e espiritual. Segue a tradução de um texto selecionado das Visões:
Meu
Amado me deu a compreender e sentir a Si mesmo. Mas quando o vi, caí a seus
pés; pois eu tomava consciência de que de todo esse caminho pelo qual fui
conduzida a Ele, faltava-me ainda muitíssimo para viver.
E
Ele me disse: Levanta-te, porque tu te levantaste em Mim, sem começo,
totalmente livre e sem queda. Pois desejaste ser um comigo e para isso fizeste
todo o possível e impossível.
(...)
Agora
te farei saber o que quero de ti. Eu quero que tu, por minha vontade, estejas
disposta a toda forma de miséria. E nisto Eu te ordeno que jamais ouses irritar-te ou vingar-te por
qualquer razão que seja, mesmo através do teu olhar. (...) Ainda te dou - assim
falou - um novo mandamento: Tu que desejas possuir tudo de Mim na divindade, se
quiseres também ser semelhante a Mim na humanidade, hás de desejar ser pobre,
deplorável e desprezada entre todos os homens, e em todas as dores hás de
encontrar sabor que ultrapassa todos os prazeres terrestres. Não deixes de modo
algum que elas te entristeçam. Elas estarão acima das forças humanas. Se queres
alcançar o amor de acordo com o brio da tua índole que me reclama todo inteiro,
te tornarás uma estranha entre os seres humanos, tão desconsiderada e
deplorável que não saberás onde encontrar um abrigo, nem por uma noite. Todos
te deixarão cair e vão abandonar-te e ninguém vai querer estar ao teu lado na
tua necessidade e na tua aflição. Eu te
asseguro que passarás por tudo isso nos dias que ainda tens para viver. Mas é
um tempo breve, pois tua hora ainda não chegou.
Tu
és jovem ainda e queres que Eu reconheça os sofrimentos do teu corpo e o
trabalho constante de tuas mãos, e a tua firme vontade de praticar a caridade, e o desejo do teu coração e o
estremecimento dos teus sentimentos, e o amor da tua alma. Pois bem, Eu
reconheço tudo isso. Mas reconhece, tu também, que Eu vivia realmente como
homem: que meu corpo suportava fortes dores, e que minhas mãos trabalhavam com
total fidelidade, e que minha firme vontade de amar abrangia o mundo inteiro,
tantos os que estavam distantes como os amigos; e meu espírito estremecia, e
meu coração desejava, e minha alma amava. E em tudo isso Eu esperei completar o
meu tempo, até chegar a hora em que meu Pai me retomou. Já me disseste que para
mim era fácil viver como homem porque Eu tinha os sete dons. Isto é verdade: Eu
os possuía. E não só tinha os sete dons,
Eu mesmo era Dom do Espírito de quem procedem os assim chamados dons. E tu me
disseste que meu Pai estava comigo. É verdade, nunca nos separamos. Mas
faço-te saber uma verdade escondida
sobre mim, a qual, no entanto, era clara para quem a pudesse entender: jamais,
em nenhum momento, satisfiz a uma necessidade minha, qualquer que fosse, por
meu próprio poder, nem apelei para os dons do meu espírito, mas em muito
sofrimento os recebi de meu Pai - conquanto Ele e Eu fôssemos um, como o somos
agora - e isto não antes do dia em que chegou a hora da minha consumação.
Jamais aliviei, por minha onipotência, a minha aflição ou as minhas dores.[5]
João Paulo II
na carta apostólica Novo Millenio Ineunte
Não
será porventura um “sinal dos tempos” que se verifique hoje, não obstante os
vastos processos de secularização, uma
generalizada exigência de espiritualidade, que em grande parte se exprime
precisamente numa renovada carência de
oração? Também as outras religiões, já largamente presentes nos países de
antiga cristianização, oferecem as suas respostas a tal necessidade, chegando
às vezes a fazê-lo como modalidades cativantes. Nós que temos a graça de
acreditar em Cristo, revelador do Pai e Salvador do mundo, temos obrigação de
mostrar a profundidade a que pode levar o relacionamento com Ele.
A
grande tradição mística da Igreja, tanto no Oriente como no Ocidente, é bem
elucidativa
a
tal respeito, mostrando como a oração pode progredir, sob a forma dum
verdadeiro e próprio diálogo de amor, até tornar a pessoa humana totalmente
possuída pelo Amante divino, sensível ao toque do Espírito, abandonada
filialmente no coração do Pai. Experimenta-se então ao vivo a promessa de
Cristo: “Aquele que me ama será amado por meu Pai, e Eu amá-lo-ei e
manifestar-me-ei a ele”(Jo 14,21). Trata-se dum caminho sustentado completamente
pela graça que no entanto requer grande empenhamento espiritual e conhece
também dolorosas purificações (a já referida “noite escura”), mas desemboca, de
diversas formas possíveis, na alegria inexprimível vivida pelos místicos como
“união esponsal”. Como não mencionar aqui, entre tantos testemunhos luminosos,
a doutrina de S. João da Cruz e de S. Teresa de Ávila?[6]
[1]
Sermo super Cantica Canticorum 74, 5.
[2]
Primeiras Moradas, I, 1. Seguimos o texto estabelecido de Tomás Alvarez, ocd, Obras Completas de Teresa de Jesus, Ed.
Loyola-Ed. Carmelitanas, São Paulo, 1995. Foram feitas algumas modificações na
tradução baseadas no texto espanhol das Obras
Completas, 4a ed., Editorial de Espiritualidade, Madrid, 1994.
3 Ibidem I, 2.
[5] Hadewijch, Een
bloemlezing uit haar werken,
(composição e introdução de N. de Paepe), Elsevier, Amsterdam/Brussel,
1979, pp.12-14.
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