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sábado, 29 de agosto de 2015

O CORAÇÃO DA REGRA DO CARMO, QUAL É? (1ª Parte)

Frei Bruno Secondin, O. Carm.

A vocação do Carmelo à oração
              Toda a Regra toda propõe logicamente um itinerário em direção à maturidade. Já o demonstramos no próprio esquema, mas há também expressões que mais diretamente se referem a esta perspectiva: as palavras, por exemplo, meditare, vigilare, de corde puro, placere Deo, in obsequio Jesu Christi, pie vivere in Christo, æternæ vitæ mercedem, quæcumque(...) agenda(...) in verbo Domini fiant.
              A tradição dos séculos delineou a fisionomia do Carmelita segundo o capítulo 7º: oração e solidão. Somos definidos assim como homens e mulheres da espiritualidade, da vida interior, da oração. Hoje se diz freqüentemente que as nossas comunidades são fraternidades orantes. Como vamos conseguir pôr este dado da tradição de acordo com a nossa explicação da Regra, que desloca o centro para o capítulo 10º, orientando para lá o valor de todo o projeto, inclusive o capítulo 7º ?
              Temos de dizer que é ótima coisa a ênfase que a tradição põe no capítulo 7º, interpretando-o como prescrição de solidão, de meditação e oração, mas não corresponde com rigor ao sentido literal do texto e, ainda menos, ao sentido que tem aquele capítulo no dinamismo ideográfico da Regra na sua totalidade. É um capítulo que permanece fundamental, mas por causa da Palavra, que deve ser absolutizada na vida a ponto de encher a solidão e o tempo, por inteiro: die ac nocte meditantes; a ponto de vir a ser transmudada em sede e desejo veemente, pois vigilantes é de um sentido forte. Porém, o máximo grau da força e da potência da Palavra e o fundamento da verdade de tudo quanto Ela anuncia e comunica estão na Eucaristia, que faz participar da vitalidade do Cristo Ressuscitado. E o projeto de vida está regulado e modelado justamente pela "sacramentalidade" eucarística, muito mais do que pela solidão ou pela oração e meditação.
              É pena que a tradição materializou na solidão-isolamento e no rezar, em sentido genérico, uma prescrição que põe a sua força na meditação da Palavra e nas conseqüências que daí derivam, como oração, comunhão fraterna, celebração do Mistério e mais práticas decorrentes. Concentrar-se de maneira especial sobre o estar sós e sobre um conceito "vago" ou fraco de oração, no qual de fato a  meditação da Palavra não goza realmente do primado que lhe cabe, mas está ao par com outras modalidades de "oração", inclusive "devoções", isto levou a uma oração de solitários mais do que de solidários, a uma espiritualidade individualista mais do que a uma Igreja-comunhão.
              A oração, à qual deve o Carmelita dedicar-se, é descrita na Regra como um vigilare in orationibus (c.7), quer dizer, como uma resposta existencial à Palavra meditada e assimilada. Rezar é, então, penetrar nos segredos do coração de Deus, que a Palavra nos revela; é estender-se, por meio das várias modalidades de respostas - vamos dizer oração e práxis -, em direção de Alguém, que habita na Palavra e, contudo, é também algo a mais e nos atrai. Vigiar torna-se olhar atentamente com todo o seu ser e com toda a sua alma para Deus, na prece solitária, na oração dos salmos, assim como na fraternidade dos bens e dos corações, no trabalhar e no calar-se, no jejuar e no servir, no discernir e no observar. Tudo isto se resume e se completa na celebração da Páscoa de cada dia, que é síntese das intenções e da fecundidade histórica da Palavra, fermento de unidade e Boa Nova das futuras realidades.
              Na Comunidade Primitiva o rezar dos que acreditaram, um elemento fundamental e freqüentemente trazido à lembrança (At 1, 14-24; 2,42; 4,24-30; 6,6; 8,15; 9,40; 10,2; 13,3; 21,5 e mais), nasce da escuta da Palavra em comum, está unido à celebração do culto e é consolidado e coroado na vida, ao se tornarem "um só coração e uma só alma" (At 4,32). Assim deve ser o "rezar" dos Carmelitas: deve ser experiência de Igreja, um completar e animar com a oração uma edificação (Ef 4,16; Cl 2,19), uma oikodomé de koinonia entre irmãos, um viver a expectativa do povo de "ver" o seu Deus, de encontrar o seu rosto, de senti-lo "no meio" como o seu Guia e o "seu Senhor".
              Quando se fala dos Carmelitas como de "chamados para a oração", dever-se-ia fazer o possível para não se identificar o chamado com um chamado para uma experiência individualista, para uma seqüência de gestos religiosos a circular em redor da própria pessoa, acorrentados em espaços e tempos rígidos. Não é nem mesmo uma espécie de ascensão para o divino por estradas solitárias e únicas. Isto conduziria a formas de narcisismo espiritual e a uma oração próxima do psicologismo introspectivo. Preferiria que se falasse de um chamado a fazer viver a Igreja, a fazê-la vibrar como Corpo de Cristo.
              Orar para o Carmelita, segundo a Regra, não é tanto dedicar-se a fazer alguma coisa, a pensar de uma determinada maneira, por um certo tempo; isto também faz parte do orar, mas são elementos variáveis e secundários, segundo culturas e segundo pessoas. Rezar deve tornar-se um fazer própria a forma Ecclesiæ, isto é, deve levar a deixar-se convocar e amar, julgar e salvar pelo Senhor da Comunidade. Diante da ação e da presença d'Ele se reage com a palavra e com a vida, com os gestos e com a solidão, com a luta e com a deliberação, com o louvor e com a súplica, com o silêncio e com a memória, com a invocação e com a espera e com a vigilância. Daí deriva que o itinerário do Carmelita rumo à maturidade, através da oração, é autêntico, quando sabe respeitar os princípios da eclesialidade e se conforma com as exigências de uma autêntica experiência eclesial.
              Até a vida ascética e penitente, tão exaltada pela tradição do Carmelo, deve ser vivida, não como ascetismo individualista, mas como caminho eclesial: fidelidade trabalhosa, coerência sofrida para vivere pie in Christo (cf. 2Tm 3,12), num contexto de Igreja que conhece a fragilidade humana, que lhe obscurece o rosto, mas procura só no Senhor (c.14) a sua libertação e o seu esplendor (cf. LG 48).
              Para que se possa ser capaz de vigilare in orationibus, (c.7), como Ecclesia orans, é preciso ser ao mesmo tempo Igreja da reconciliação e do serviço, Igreja discípula e testemunha da Palavra, Igreja do Pão-Partido e repleta da consolação do Espírito: somente assim a oração será autêntica.
              Aquele lugar a se construir no meio das celas, que na Regra está arquitetonicamente no centro do espaço e do próprio texto (c.10), tem um poder de evocação de valores e razões de vida que supera qualquer outro elemento e os atrai todos para junto de si como ao seu ápice e medida. Dá realmente ao todo uma polarização nesta direção, isto é, rumo ao que aí se celebra e se exprime, num quotidiano "vir-juntos" (con-venire) carregado de emoções e de intencionalidades simbólicas. E este con-venire reclama um "arredar-se" longe da separação e do perigo da autarquia numa "cela isolada e pessoal" (c.3), para caminhar "ao encontro" dos irmãos até o lugar onde o "Senhor mora com o seu Mistério", chama para a escuta (ad audienda - c.10) e fermenta a comunhão rumo a uma total unidade.

              Podemos recorrer a uma idéia que encontramos no texto de espiritualidade carmelitana mais antigo, que conheçamos, a Ignea Sagitta de Nicolau, o Francês (1270). Referindo-se ao trecho da 1ª Carta de Pedro em 1Pd 2,4-5, ele informa que somos chamados a ser como pedras vivas lavradas pela graça, para construção do gloriosum ædificium cælestis civitatis Jerusalem. E, aplicando a idéia ao projeto carmelita, podemos dizer que o nosso itinerarium cordis, que com Teresa podemos chamar de Caminho da Perfeição ou com João da Cruz, de Subida do Monte Carmelo, só alcançará a sua autenticidade quando "a adesão a Cristo, Pedra Viva" (o obsequium do prólogo) e o "crescimento do gérmen da Palavra de Deus" (o die ac nocte in lege Domini meditantes do c.7 e o Verbum Dei abundanter habitet in ore et in cordibus do c.14) nos transformarem "como pedras vivas para a construção em casa do Senhor" (cf. 1Pd 1,23; 2,4-5).

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