Frei Bruno
Secondin, O. Carm.
A vocação do Carmelo à oração
Toda
a Regra toda propõe logicamente um itinerário em direção à maturidade. Já o
demonstramos no próprio esquema, mas há também expressões que mais diretamente
se referem a esta perspectiva: as palavras, por exemplo, meditare, vigilare,
de corde puro, placere Deo, in obsequio Jesu Christi, pie vivere in Christo,
æternæ vitæ mercedem, quæcumque(...) agenda(...) in verbo Domini fiant.
A
tradição dos séculos delineou a fisionomia do Carmelita segundo o
capítulo 7º: oração e solidão. Somos definidos assim como homens e mulheres da
espiritualidade, da vida interior, da oração. Hoje se diz freqüentemente que as
nossas comunidades são fraternidades orantes. Como vamos conseguir pôr
este dado da tradição de acordo com a nossa explicação da Regra, que desloca o
centro para o capítulo 10º, orientando para lá o valor de todo o projeto,
inclusive o capítulo 7º ?
Temos
de dizer que é ótima coisa a ênfase que a tradição põe no capítulo 7º,
interpretando-o como prescrição de solidão, de meditação e oração, mas não
corresponde com rigor ao sentido literal do texto e, ainda menos, ao sentido
que tem aquele capítulo no dinamismo ideográfico da Regra na sua
totalidade. É um capítulo que permanece fundamental, mas por causa da Palavra,
que deve ser absolutizada na vida a ponto de encher a solidão e o tempo, por
inteiro: die ac nocte meditantes; a ponto de vir a ser transmudada em sede
e desejo veemente, pois vigilantes é de um sentido forte. Porém, o
máximo grau da força e da potência da Palavra e o fundamento da verdade de tudo
quanto Ela anuncia e comunica estão na Eucaristia, que faz participar da
vitalidade do Cristo Ressuscitado. E o projeto de vida está regulado e modelado
justamente pela "sacramentalidade" eucarística, muito mais do que
pela solidão ou pela oração e meditação.
É
pena que a tradição materializou na solidão-isolamento e no rezar, em
sentido genérico, uma prescrição que põe a sua força na meditação da Palavra
e nas conseqüências que daí derivam, como oração, comunhão fraterna, celebração
do Mistério e mais práticas decorrentes. Concentrar-se de maneira especial
sobre o estar sós e sobre um conceito "vago" ou fraco de
oração, no qual de fato a meditação
da Palavra não goza realmente do primado que lhe cabe, mas está ao par com
outras modalidades de "oração", inclusive
"devoções", isto levou a uma oração de solitários mais do que
de solidários, a uma espiritualidade individualista mais do que a uma
Igreja-comunhão.
A
oração, à qual deve o Carmelita dedicar-se, é descrita na Regra como um vigilare
in orationibus (c.7), quer dizer, como uma resposta existencial à Palavra
meditada e assimilada. Rezar é, então, penetrar nos segredos do coração
de Deus, que a Palavra nos revela; é estender-se, por meio das várias
modalidades de respostas - vamos dizer oração e práxis -, em direção de Alguém,
que habita na Palavra e, contudo, é também algo a mais e nos atrai. Vigiar
torna-se olhar atentamente com todo o seu ser e com toda a sua alma para Deus,
na prece solitária, na oração dos salmos, assim como na fraternidade dos bens e
dos corações, no trabalhar e no calar-se, no jejuar e no servir, no discernir e
no observar. Tudo isto se resume e se completa na celebração da Páscoa de cada dia,
que é síntese das intenções e da fecundidade histórica da Palavra, fermento de
unidade e Boa Nova das futuras realidades.
Na
Comunidade Primitiva o rezar dos que acreditaram, um elemento fundamental e
freqüentemente trazido à lembrança (At 1, 14-24; 2,42; 4,24-30; 6,6; 8,15;
9,40; 10,2; 13,3; 21,5 e mais), nasce da escuta da Palavra em comum, está unido
à celebração do culto e é consolidado e coroado na vida, ao se tornarem
"um só coração e uma só alma" (At 4,32). Assim deve ser o "rezar"
dos Carmelitas: deve ser experiência de Igreja, um completar e animar com a oração
uma edificação (Ef 4,16; Cl 2,19), uma oikodomé de koinonia entre
irmãos, um viver a expectativa do povo de "ver" o seu Deus, de
encontrar o seu rosto, de senti-lo "no meio" como o seu Guia e o
"seu Senhor".
Quando
se fala dos Carmelitas como de "chamados para a oração", dever-se-ia
fazer o possível para não se identificar o chamado com um chamado para uma
experiência individualista, para uma seqüência de gestos religiosos a circular
em redor da própria pessoa, acorrentados em espaços e tempos rígidos. Não é nem
mesmo uma espécie de ascensão para o divino por estradas solitárias e únicas.
Isto conduziria a formas de narcisismo espiritual e a uma oração próxima do
psicologismo introspectivo. Preferiria que se falasse de um chamado a fazer
viver a Igreja, a fazê-la vibrar como Corpo de Cristo.
Orar
para o Carmelita, segundo a Regra, não é tanto dedicar-se a fazer alguma
coisa, a pensar de uma determinada maneira, por um certo tempo; isto também
faz parte do orar, mas são elementos variáveis e secundários, segundo culturas
e segundo pessoas. Rezar deve tornar-se um fazer própria a forma Ecclesiæ,
isto é, deve levar a deixar-se convocar e amar, julgar e salvar pelo Senhor da
Comunidade. Diante da ação e da presença d'Ele se reage com a palavra e com a
vida, com os gestos e com a solidão, com a luta e com a deliberação, com o
louvor e com a súplica, com o silêncio e com a memória, com a invocação e com a
espera e com a vigilância. Daí deriva que o itinerário do Carmelita rumo à
maturidade, através da oração, é autêntico, quando sabe respeitar os
princípios da eclesialidade e se conforma com as exigências de uma autêntica
experiência eclesial.
Até
a vida ascética e penitente, tão exaltada pela tradição do Carmelo, deve ser
vivida, não como ascetismo individualista, mas como caminho eclesial:
fidelidade trabalhosa, coerência sofrida para vivere pie in Christo (cf.
2Tm 3,12), num contexto de Igreja que conhece a fragilidade humana, que lhe
obscurece o rosto, mas procura só no Senhor (c.14) a sua libertação e o
seu esplendor (cf. LG 48).
Para
que se possa ser capaz de vigilare in orationibus, (c.7), como Ecclesia
orans, é preciso ser ao mesmo tempo Igreja da reconciliação e do serviço,
Igreja discípula e testemunha da Palavra, Igreja do Pão-Partido e repleta da
consolação do Espírito: somente assim a oração será autêntica.
Aquele
lugar a se construir no meio das celas, que na Regra está
arquitetonicamente no centro do espaço e do próprio texto (c.10), tem um poder
de evocação de valores e razões de vida que supera qualquer outro elemento e os
atrai todos para junto de si como ao seu ápice e medida. Dá realmente ao todo
uma polarização nesta direção, isto é, rumo ao que aí se celebra e se exprime,
num quotidiano "vir-juntos" (con-venire) carregado de emoções e de
intencionalidades simbólicas. E este con-venire reclama um
"arredar-se" longe da separação e do perigo da autarquia numa
"cela isolada e pessoal" (c.3), para caminhar "ao encontro"
dos irmãos até o lugar onde o "Senhor mora com o seu Mistério", chama
para a escuta (ad audienda - c.10) e fermenta a comunhão rumo a uma
total unidade.
Podemos
recorrer a uma idéia que encontramos no texto de espiritualidade carmelitana
mais antigo, que conheçamos, a Ignea Sagitta de Nicolau, o Francês
(1270). Referindo-se ao trecho da 1ª Carta de Pedro em 1Pd 2,4-5, ele informa
que somos chamados a ser como pedras vivas lavradas pela graça, para
construção do gloriosum ædificium cælestis civitatis Jerusalem. E, aplicando
a idéia ao projeto carmelita, podemos dizer que o nosso itinerarium cordis,
que com Teresa podemos chamar de Caminho da Perfeição ou com João da
Cruz, de Subida do Monte Carmelo, só alcançará a sua autenticidade
quando "a adesão a Cristo, Pedra Viva" (o obsequium do
prólogo) e o "crescimento do gérmen da Palavra de Deus" (o die ac
nocte in lege Domini meditantes do c.7 e o Verbum Dei abundanter habitet
in ore et in cordibus do c.14) nos transformarem "como pedras vivas
para a construção em casa do Senhor" (cf. 1Pd 1,23; 2,4-5).
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