Espiritualidade Litúrgica
Carmelitana Medieval
Introdução
Uma discussão sobre a
espiritualidade litúrgica carmelitana medieval responde a pergunta: “O que os
carmelitas medievais consideraram importante em sua herança e como a celebraram
liturgicamente?” O objetivo deste capítulo é discutir os aspectos principais da
herança carmelitana, o modo com que os carmelitas medievais a viam e examinar
como eles a celebravam liturgicamente. Estes elementos são:
1)
A herança da Terra Santa
2)
A devoção à Maria
3)
Novos santos acrescentados à liturgia, refletindo sua
inserção no Ocidente.
São
significativos também os aspectos litúrgicos ausentes, pelo menos, dos
manuscritos medievais até o século XV.[i] Eles incluem festas carmelitanas próprias,
cuja existência antes do Concílio de Trento não se pode provar: as liturgias
para Santo Elias e Santo Eliseu, que começaram a ser celebradas apenas no
período Tridentino; e um ofício padronizado para a festa de Nossa Senhora do
Monte Carmelo, que não aparece em nenhum manuscrito antes de 1500.
A Herança da Terra Santa
Várias festas litúrgicas
proeminentes no Rito do Santo Sepulcro continuaram no rito carmelitano e se
distinguiram de outras observâncias litúrgicas:
a)
A Celebração da Ressurreição, celebrada no último
Domingo do ano litúrgico;
b)
As festas dos patriarcas Abraão, Isaac e Jacó,
celebrada em 06 de outubro;
c)
A festa da Transfiguração, celebrada em 06 de agosto;
d)
Santa Maria Madalena;
e)
A tradição Petrina e Paulina.
A Celebração da Ressurreição
A própria raison d’etre para o Rito do Santo
Sepulcro era o túmulo do Senhor, do qual recebeu seu nome. Dificilmente podemos
imaginar o esforço que deve ter sido para os cruzados atingirem o local
verdadeiro onde acreditavam que o Senhor tinha sido sepultado. Dentro do contexto
da Terra Santa, o local deste túmulo era a meta para todos os peregrinos, desde
o tempo de Constantino até o período medieval e servia como a única razão para
Jerusalém ser o principal local de peregrinação.[ii] A festa da Celebração da Ressurreição revive
assim, mais uma vez, o evento único, intimamente vinculado com o próprio local
sagrado e que, como nos lembra São Paulo, define nossa própria salvação: “se
Cristo não ressuscitou, a fé que vocês têm é ilusória” (1Cor 15,17).[iii] Enquanto a própria Páscoa é central para todo
rito litúrgico, a celebração da ressurreição é uma festa distinta, restrita a
costumes relacionados com a Terra Santa. Esta festa praticamente herdava da
festa da Páscoa todos os seus cantos e orações, mas ela era uma celebração que,
feita imediatamente antes do início do Advento, mostrava-se como a culminação
de todo o Ano Litúrgico. Teologicamente isto significa uma segunda celebração
da experiência da Páscoa. Ela também ocorre em novembro, um tempo quando a
Igreja universal, incluindo este Rito, celebra as festas de Todos os Santos e
de Todas as Almas, aqueles que na fé se foram antes de nós. Portanto, a
Celebração da Ressurreição reforça o significado dos efeitos da ressurreição na
humanidade num tempo quando a igreja celebra a morte. Isto tem um impulso
teológico positivo e uma reafirmação de esperança em meio à aflição.
Toda
Eucaristia por definição celebra a morte e a ressurreição do Senhor. Através da
Eucaristia diária, prescrita aos primeiros eremitas no Monte Carmelo e, subseqüentemente,
observada através da Ordem, o mistério Pascal era um fenômeno constante para os
carmelitas. Pela festa da Celebração da Ressurreição o que era celebrado em um
único dia, agora prolonga-se em uma estrutura mais ampla, por todo o ano
litúrgico. A localização da festa, no último domingo do ano litúrgico,
prolongava consideravelmente o evento em seu aspecto litúrgico. Enquanto a
época da Páscoa termina em Pentecostes, seu reforço pouco antes do Advento
tinha o efeito de mantê-la em primeiro lugar na mente até o começo do próximo
ciclo principal, aquele do nascimento do Senhor começando com o primeiro
Domingo do Advento. Tal visão do ano litúrgico é peculiar ao Rito do Santo
Sepulcro e nas observâncias que derivam dele e é explicado por sua estrita associação
com o túmulo do próprio Senhor.
A Festa dos Patriarcas Abraão, Isaac e Jacó
A celebração de
personagens do Antigo Testamento como uma festa, igual aos personagens do Novo
Testamento, é certamente notável. Ela mostra que os patriarcas foram aceitos
como santos na liturgia, apesar da convicção da ressurreição e da designação
associada de santidade não serem necessariamente uma parte da vida espiritual
deles como judeus observantes. O fato de Nosso Senhor ter se referido aos
patriarcas como presentes no reino (Lc 13,28) e citado a referência a Deus de
Êxodo 3,15: “Eu sou o Deus de Abraão, o Deus de Isaac e o Deus de Jacó” (Mc
12,26; também cf. Mt 22,31-32 e Lc 20,37-38), usando deliberadamente o tempo
presente como uma prova para os saduceus de que há uma ressurreição,
legitimaria a festa que os venerava como santos. Mas tal festa é, sem dúvida,
digna de nota.
A festa dos
patriarcas fornecia um elo entre os carmelitas e a própria Terra Santa, da
mesma maneira que o Rito do Santo Sepulcro. Os carmelitas veneravam os heróis
do Antigo Testamento, pessoas que foram especialmente escolhidos por Deus e a
quem Deus se revelou de um modo único e pessoal. A versão carmelitana desta
festa é muito mais completa do que a sua versão complementar do Santo Sepulcro
(pelo menos nas fontes existentes), geralmente restrita à uma única oração,
ainda que em sua versão carmelitana a festa seja particular.[iv]
A compilação
dos textos para este ofício é particularmente interessante: os responsórios vêm
de textos que são específicos aos profetas enquanto que as antífonas são mais
gerais. Os responsórios, tirados do domingo antes da Quaresma (conhecida na
liturgia medieval como “Domingo da Qüinquagésima” porque caía cinqüenta dias
antes da Páscoa), se inspiram nas passagens do Antigo Testamento que os
menciona pelos nomes. As antífonas são tiradas da comunhão de vários santos e
também do próprio da festa de Todos os Santos. Os textos se referem
repetidamente a santos ou a homens santos em geral, mas afirma claramente a
santidade dos patriarcas. Ainda que esta referência seja feita presumivelmente,
em respeito à estima deles dentro do contexto do Antigo Testamento, também pode
ser encarada como alguma forma política, já que nenhum deles foi oficialmente
reconhecido como um santo pela Igreja. A natureza incomum desta festa
provavelmente encorajou os carmelitas a enfatizarem a santidade deles impondo
uma festa ao rito católico.
A veneração
dos patriarcas como homens santos no ritual carmelitano é significativa, já que
a busca pela santidade é uma parte intensa da vocação carmelitana. Por isso,
eles escolhem os patriarcas não apenas para enfatizar a santidade destes heróis
do Antigo Testamento, mas para assumirem também a santidade deles. Assim, a
festa lembra, no seu primeiro impulso, a sermos pessoas de oração acima de
qualquer coisa. A ausência de um fundador específico permitiu aos carmelitas
adotar exemplos de santidade onde quer que se encontrem.
A Festa da Transfiguração
A Festa da
Transfiguração, que revive uma experiência única na vida de Nosso Senhor, bem
como seu relacionamento com alguns discípulos escolhidos, foi identificada pela
tradição numa localização específica da Terra Santa: o Monte Tabor.[v] A associação óbvia da festa com este local da
Terra Santa justificou sua inclusão, numa data bem antiga, na liturgia do Santo
Sepulcro e, posteriormente, no Rito carmelitano. No entanto, sua celebração não
está absolutamente restrita ao Santo Sepulcro e à tradição carmelitana. De
fato, o monge cluniacense Pedro, o Venerável, é reconhecido como o escritor de
um ofício para a Transfiguração.[vi] Alguns dos textos do rito carmelitano são
semelhantes à versão de Pedro, mas existem discrepâncias claras entre os dois
ofícios. Todas as orações e cantos para esta festa são tirados do próprio
relato das Escrituras, que serve como modelo para a vida contemplativa e
ajusta-se adequadamente ao ideal carmelitano. Pedro, Tiago e João foram
escolhidos pelo Senhor para acompanhá-lo até o monte onde, através da
contemplação, sua compreensão do Senhor e o seu significado crescem
imensuravelmente. Entrando neste relacionamento privilegiado com o Senhor, eles
não apenas o vêem transfigurado, mas a própria fé deles também é transformada.
A festa da
Transfiguração serve de inspiração para todo carmelita que busca a
transformação pela oração. A intimidade dos discípulos com o Senhor serve como
um modelo para todos que buscam um relacionamento com Jesus através da vida de
oração. Como Pedro, Tiago e João, cada carmelita foi escolhido por Deus para
caminhar com o Senhor buscando uma consciência mais profunda de Deus e de si
mesmo. A ascensão do Monte Carmelo, como aquela do Monte Tabor, leva os
participantes à presença de Deus, numa união mais profunda com o Senhor.
Santa Maria Madalena
A festa de
Santa Maria Madalena se destaca na liturgia carmelitana medieval, fazendo parte
de um amplo conjunto que enfatiza todo o Mistério Pascal. Sendo a primeira
testemunha da ressurreição, Maria Madalena goza de grande importância na vida
da Igreja, incluindo a liturgia. A organização carmelitana da festa foi
diretamente recebida do ritual do Santo Sepulcro. A observância da Terra Santa,
por sua vez, baseava-se numa tradição francesa, o que também explica a
proeminência de Santa Maria Madalena, já que o mosteiro beneditino francês de
Vezelay foi de muita influência na propagação de seu culto.[vii] Por extensão, qualquer liturgia associada a
do Santo Sepulcro também venerava Maria Madalena com grande solenidade. A
liturgia carmelitana seguiu a tradição do Santo Sepulcro com fidelidade tal,
que até herdou a típica confusão na qual Maria estava envolvida. Assim, um dos
responsórios, Optimam partem,
refere-se à Maria, que ao contrário de sua irmã Marta, escolheu a melhor parte,
isto é, a contemplação. A confusão entre Maria de Betânia e Maria Madalena na
liturgia carmelitana refletiu a confusão geral, bíblica e medieval, sobre ela.[viii] Por outro lado, esta antífona permitiu aos
carmelitas darem expressão ao valor da vida contemplativa que eles abraçaram
dentro de um contexto litúrgico. Desse modo, a idéia de que “ela escolheu a
melhor parte e esta não lhe será tirada” reforçou, para o carmelita medieval, o
valor duradouro da vocação contemplativa que escolheram.
O papel
teológico central de Maria Madalena como anunciadora da ressurreição também
estabeleceu o relacionamento entre ela e o evento da Páscoa, fato de grande
importância na vida de cada cristão e, particularmente, celebrado dentro da
liturgia carmelitana. A história de sua ida ao túmulo com perfumes e aromas,
para ungir o corpo do Senhor, recontada na palavra e cantada no ofício de Santa
Maria Madalena, servia para os carmelitas como outra lembrança do poder
permanente do evento da Páscoa. Esta história também lembrava ao carmelita que
seu objetivo na vida, como o de Maria Madalena, era servir às necessidades do
Senhor e, por extensão, às da Igreja. Assim, a vida de Maria Madalena serviu
como um excelente exemplo para o carmelita medieval de como combinar
eficazmente a contemplação e os estilos de vida ativa dentro de uma única vocação.
Maria Madalena, como a pecadora arrependida, também
serve de modelo para o carmelita que, através da vida de oração e de
penitência, busca a transformação para a santidade. A busca contemplativa de
Deus é afastar-se das tentações mundanas para viver na presença de Deus. Assim
como a Regra detalhou a armadura espiritual a ser usada enquanto o carmelita
combate o fogo do mal, o exemplo de Maria Madalena, passando do pecado à
santidade também serve como um modelo eficaz para o carmelita cuja vida é de
conversão contínua.
A Tradição Petrina e Paulina
Nunca é demais ressaltar
o significado dos santos Pedro e Paulo na vida litúrgica da Igreja Cristã. O
primado de São Pedro, aquele que foi encarregado de presidir a Igreja pelo
próprio Senhor, sempre foi de grande significado litúrgico. A conversão de São
Paulo, de um vigoroso perseguidor dos cristãos a um apóstolo entusiasmado,
espalhando a mensagem cristã por muitos lugares do mundo antigo, foi
provavelmente o evento mais importante na vida da Igreja primitiva. Os
carmelitas, a exemplo do rito do Santo Sepulcro, celebravam as festas da
Conversão de Paulo, da Cátedra de São Pedro, dos santos Pedro e Paulo e a
Celebração de São Paulo. Além disso, nas festas carmelitanas Petrinas e
Paulinas a ordem das partes, especialmente para o ofício, divergia
consideravelmente de outras tradições e seguiam fielmente o rito do Santo
Sepulcro.
A importância
de festas em memória dos santos Pedro e Paulo na liturgia carmelitana servia de
recordação das vidas heróicas daqueles dois importantes líderes, assim como o
estabelecimento da Ordem na vida da Igreja. Quando se incorporaram nas
estruturas da Igreja, os carmelitas floresceram como uma Ordem e a autoridade
eclesiástica, sugerida pela festa da Cátedra de São Pedro, foi algo que eles
acolheram com alegria. O exemplo corajoso e o zelo pelo Evangelho,
exemplificados de formas diferentes por Pedro e Paulo, serviam de modelo para
os carmelitas, especialmente quando eles adotaram a estrutura mendicante.
A devoção mariana
Desde o começo
da Ordem os carmelitas dedicaram-se à Virgem Maria. A tradição diz que o
oratório no Monte Carmelo foi dedicado em honra a Maria,[ix] e que a identificação dos carmelitas como
“Irmãos da Bem-aventurada Virgem Maria do Monte Carmelo” foi adotada já em
1252.[x] Os carmelitas observaram as festas marianas
comuns à toda a Igreja: a Purificação em 02 de fevereiro, a Anunciação em 25 de
março, Nossa Senhora das Neves em 05 de agosto, a Assunção em 15 de agosto, a
Natividade em 08 de setembro e a Concepção da Virgem em 08 de dezembro. O
Capítulo Geral de Frankfurt em 1393 acrescentou duas novas festas: a Visitação
em 02 de julho e a Apresentação de Maria em 21 de novembro.
As cinco
antífonas para as primeiras Vésperas em todas as festas marianas são as mesmas
na liturgia carmelitana e coincidem exatamente com suas correspondentes na
liturgia do Santo Sepulcro. Até a música é a mesma em todas as ocasiões, de
modo que eles foram muito cuidadosos em preservar intacto este aspecto de sua
herança da Terra Santa. Esta associação das antífonas marianas preservou o elo
entre os carmelitas espalhados por todo mundo e a observância original no Monte
Carmelo, se é que os carmelitas realizaram conscientemente este feito. As
antífonas são as seguintes:
Hec est regina virginum que genuit regem
velud rosa decora virgo dei genitrix per quam reperimus deum et hominem alma
virgo intercede pro nobis omnibus.
Eis a rainha
das virgem que gerou o rei; verdadeiramente uma bela rosa, a virgem mãe de
Deus, através de quem nos aproximamos de Deus e do homem; ó virgem bela
intercede por nós.
Te decus virgineum virgo dei genitrix maria
te solem inter omnes virgines castissimam ex oramus ut pro salute nostra apud
dominum intercedere digneris.
Tu és o
esplendor das virgens ó virgem Maria, mãe de Deus; somente tu dentre todas as
virgens sois a mais casta; assim, rezamos para que tu possas dignar-te a
interceder por nossa salvação diante do Senhor.
Sub tuum presidium confugimus dei genitrix
nostras deprecationes ne despicias in necessitatibus sed a periculis libera nos
semper virgo benedicta.
Sob vosso
trono nos reunimos ó mãe de Deus; não ignoreis nossas súplicas em tempos
difíceis, mas livrai-nos sempre do mal ó bem-aventurada virgem.
Sancta Maria succurre miseris iuva
pusillanimes refove flebiles ora pro populo interveni pro clero intercede pro
devoto femino sexu.
Santa Maria
socorrei os pobres, ajudai os fracos, consolai os tristes, rogai pelo povo,
protegei o clero, interceda por todas as mulheres.
Beata Dei genitrix maria virgo perpetua
templum domini sacrarium spiritus sancti tu sola sine exemplo placuisti domino
ihesu christo ora pro populo interveni pro clero intercede pro devoto femino
sexu.
Bem-aventurada
mãe de Deus, Maria, sempre virgem, templo do Senhor, receptáculo do Espírito
Santo, somente vós sem exemplo fostes agradável ao Senhor Jesus Cristo; orai
pelo povo, intervenha pelo clero, interceda por todas as mulheres.
Todas estas
antífonas têm como tema comum Maria como intercessora, o que era parte integral
da devoção mariana carmelitana. Pela postura do suplicante, pequeno e humilde,
que não quer nada mais além de ser agradável a Deus, o carmelita implora o
favor da intercessão de Maria. Ela, como o receptáculo do sagrado (“templo do
Senhor e receptáculo do Espírito Santo”), oferece a razão para venerá-la. A
idéia de Maria como aquela que nos protege do perigo, predominante na terceira
antífona, encoraja o carmelita a nela confiar. Isto é especialmente tocante
quando consideramos que na Terra Santa a segurança na prática da fé não era
dada como certa e que os últimos frades no Monte Carmelo foram mortos em 1291.
O uso das mesmas partes para todas as festas marianas deu um senso de
consistência e de unidade à devoção litúrgica carmelitana à Maria e manteve uma
ligação permanente com a primeira experiência que eles tiveram no Monte
Carmelo. A festa da Concepção da Virgem é importante para a liturgia
carmelitana já que os carmelitas, junto com os franciscanos, fizeram uma ativa
campanha para sua aceitação pela Igreja.[xi] Para os carmelitas a festa representava uma
extensão de sua já forte devoção mariana. Os cantos foram tirados da festa da
Natividade de Maria em vez de serem composições novas, incluindo as antífonas
padrões das primeiras Vésperas. Assim, eles foram capazes de acrescentar uma
nova festa ao seu repertório, ajustada ao modelo de sua devoção mariana, sem
interferir com suas obrigações para com a observância do Santo Sepulcro. A
festa foi adotada na liturgia em 1306,[xii] pouco antes da promulgação da Rubrica de Siberta
que, posteriormente, consagrou seu uso por todo o período medieval.
Nestas festas
marianas, onde orações e cantos padrões foram adaptados para a festa
individual, a ordem das partes dentro de cada festa dá a celebração seu caráter
especial. Deste modo, a liturgia carmelitana tinha uma ordem peculiar de cantos
para cada festa, mas os cantos e as próprias orações eram tradicionais. A
devoção carmelitana a Maria os impelia a adotar um grande número de festas
marianas e a celebrá-las num estilo uniforme.
A festa da
Visitação incluía um ofício, parcialmente rimado, que era comum no ocidente e
entrou na liturgia carmelitana no Capítulo de Frankfurt em 1393.[xiii] A festa só havia sido promulgada no ocidente
pelo papa Bonifácio IX, em sua bula Superni
benignitas conditoris e desde o princípio era observada em 02 de julho.[xiv] Depois que o dominicano Raymond de Capua
escreveu o ofício rimado para a festa,[xv] os carmelitas seguiram o ofício apresentado
pelo papa em sua bula. Os textos para a festa da Visitação derivam do relato de
Lucas, incluindo partes do Magnificat adaptadas para o uso no ofício. Além do
aspecto da devoção mariana, a festa da Visitação era particularmente importante
para os carmelitas, já que ela celebra a visita de Maria a sua prima Isabel e a
mútua alegria que elas tiveram pela ação de Deus em suas vidas. O(A)
religioso(a) carmelitano(a) acolhe a ação de Deus em sua vida através da vida
comunitária. Assim como Maria e Isabel ganharam novo discernimento sobre o
mistério do plano de Deus em suas vidas através do diálogo, assim, também, o
carmelita cresce na consciência da presença de Deus através da oração pessoal e
da vivência comunitária.
A festa da
Apresentação da Virgem foi introduzida no Ocidente pelo cruzado Philippe de
Mezieres, chanceler do ducado de Chipre, que escreveu um ofício para ela. Este
ofício foi primeiramente apresentado na igreja franciscana em Avignon em 21 de
novembro de 1372, na presença da corte papal.[xvi] Os carmelitas o aceitaram em sua liturgia em
1393.[xvii] A festa é interessante, já que Philippe de
Mezieres era um amigo pessoal do carmelita São Pedro Thomas e até escreveu a
primeira biografia completa deste santo carmelitano.[xviii] No entanto, apesar desta amizade, o ofício
que Philippe compôs não era usado na liturgia carmelitana.[xix]
Os textos para
a festa, em vez de se referirem à apresentação de Maria no Templo, baseado no
Evangelho apócrifo de Tiago, fazem uma reflexão sobre a experiência da
apresentação com abundantes referências a Maria relacionadas ao Carmelo. Embora
nenhuma referência no manuscrito indica que tenha sido um carmelita quem compôs
os textos, eles são tão específicos que podemos quase certamente chegar a esta
conclusão. A maior parte da música foi adaptada de outros ofícios,
principalmente o de São Tomás de Cantuária. Provavelmente por causa da
popularidade do culto e da alta estima devotada a seu compositor, Bento de
Peterborough.[xx] O grande número de festas marianas na
liturgia carmelitana assegurava que a presença dela fosse invocada num esquema
sistemático. A devoção popular da Missa da Bem-aventurada Virgem no sábado
manteve presente, dentro de uma rotina semanal, tudo o que era celebrado nas
muitas festas ao longo do ano.
Ao
considerarmos o conjunto das festas marianas na liturgia carmelitana,
percebemos que a veneração da santa mãe de Deus era uma parte integral da vida
de fé e da experiência do culto que eles tinham. As várias festas simplesmente
deram expressão contínua à profunda devoção que os carmelitas tinham por Maria
e ao compromisso deles em viver como discípulos de Jesus Cristo. Os carmelitas
aceitaram todas as festas marianas regulares aprovadas pela Igreja e as
tornaram suas. Eles viam Maria como uma intercessora diante de Deus, como o
esplendor do Carmelo, a epitomia de virtude e aquela cuja santidade e fidelidade
eles buscavam imitar em sua própria jornada humana.
Novos santos acrescentados à liturgia carmelitana
Os novos santos
acrescentados à liturgia carmelitana durante o período medieval refletem seu
vínculo com a Terra Santa, assim como sua adaptação à vida na sociedade
ocidental.
Santa Ana
A festa de
Santa Ana, mãe da Virgem Maria, foi um destes acréscimos posteriores à liturgia
e é uma extensão lógica da devoção carmelitana à Maria. Os textos e a música
são de um ofício rimado[xxi] que não é próprio da liturgia carmelitana. A
presença de Santa Ana na Terra Santa, assim como seu importante relacionamento
com Maria e Jesus, serviram de justificação para que adotassem esta festa na
liturgia. A festa se relaciona intimamente com a da Apresentação, já que Ana e
Joaquim foram os pais que levaram Maria ao templo. Esta festa também está
ligada a das Três Marias, que obviamente não seria possível sem sua
contribuição. Como Santa Ana era uma parte integrante da vida de Maria, ela
aparece como uma parte integrante da liturgia carmelitana.
Ana e seu
esposo Joaquim representam para o carmelita os fiéis que confiaram em Deus e em
quem Deus realiza grandes coisas. Apesar de sua idade avançada, Ana recebeu o
privilégio de gerar a mãe do Redentor. Contudo, como uma anciã que pode
conceber, ela é semelhante à prima de Maria, Isabel, assim como a Ana e a
outras mulheres santas do Antigo Testamento. Para o carmelita, bem como para
Santa Ana, a fidelidade silenciosa aos caminhos de Deus pode gerar muitos
frutos espirituais.
As Três Marias
A festa das
Três Marias, muito popular em Provença, entrou na liturgia carmelitana no
Capítulo Geral de Lion em 1342.[xxii] A festa das Três Marias está intimamente
ligada à de Santa Ana, já que ela é tradicionalmente a mãe das três: da mãe de
Jesus, por Joaquim e de uma segunda Maria, por Cléofas. Esta gerou outra Maria
que, por sua vez, casou-se com Alfeu e gerou São Tiago Menor, São Simão, São
Judas e São José, o Justo. Após a morte de Cléofas, Ana casou-se com Salomas e
gerou uma terceira Maria, que foi mãe de São Tiago Maior e de São João
Evangelista. Esta festa baseia-se na lenda onde Lázaro, Maria Madalena e seus
companheiros foram deixados à deriva, num barco sem remos, que foi
milagrosamente transportado para o sul da França, aportando perto da vila
conhecida hoje como Saintes-Maries-de-la-Mer. De lá, a devoção às Três Marias
espalhou-se rapidamente, assim como o culto a Santa Maria Madalena propagou-se
a partir da abadia beneditina de Vezelay.[xxiii]
A festa não
apenas trata dos personagens que viveram na Terra Santa, mas ela também diz
respeito a um carmelita em especial, Jean de Venette, que escreveu esta Crônica
das Três Marias em 1357.[xxiv] Jean de Venette tornou-se prior do Carmelo de
Paris em 1339 e, mais tarde, foi provincial da França. Como tal, esteve
inegavelmente presente no Capítulo Geral de Lion que adotou a festa em 1342.
Seu interesse pessoal é evidente nesta devoção e ele possivelmente influenciou
os carmelitas a aceitarem tal festa em sua liturgia. A festa foi acrescentada
ao complemento das festas marianas, celebrada em 25 de maio. Ela também
demonstra a influência de uma devoção local numa área muito mais ampla: embora
a festa das Três Maria estivesse restrita ao sul da França e a regiões da
Itália,[xxv] uma vez aceita na liturgia carmelitana ela
gozou de observância universal dentro da Ordem.
A festa das
Três Marias está relacionada ao evento da Páscoa, já que as mulheres santas
descobriram o túmulo vazio do Senhor ressuscitado. Ela está intimamente ligada
à festa de Santa Maria Madalena que as acompanhou ao túmulo e é muitas vezes
confundida com estas Marias. Esta festa celebra aqueles que descobriram a
ressurreição e ajudaram a anunciar aos outros o evento da Páscoa. Ela também
enfatiza a devoção delas a Jesus cujo corpo elas foram ungir. Os carmelitas
homenagearam as irmãs de Maria em sua liturgia como aquelas que seguem as
pegadas do Senhor. A fidelidade à pessoa de Jesus determinou o curso de suas
vidas e determina também a vida de cada carmelita.
Reflexões sobre a liturgia carmelitana
Os manuscritos medievais
que examinamos geralmente são anteriores a 1450. Eles não preservam um ofício e
uma Missa próprios nem para Elias nem para Eliseu, o que é surpreendente.
Embora o ofício e a Missa para estes santos tenham sido estabelecidos antes do
Concílio de Trento, se tal observância ocorreu ou não no período medieval
permanece uma questão aberta. Evidentemente, se foi observado, nenhum texto
uniforme ou música sobreviveu a este período.
A liturgia
carmelitana medieval permaneceu intimamente ligada ao ritual do Santo Sepulcro,
seguindo-o detalhadamente na maior parte do ano. O mistério Pascal, incluindo
as festas da Celebração da Ressurreição, de Santa Maria Madalena e das Três
Marias, permaneceu central na sua observância. Os cantos e as orações usadas
para a liturgia formal foram claramente definidos pela Rubrica de Sibert de
Beka, mas considerável liberdade foi permitida quando se tratou do detalhe
musical. Os santos relacionados com a própria Terra Santa tiveram algum destaque
na liturgia, tanto aqueles com celebrações relativamente pequenas como aqueles
que gozavam de uma observância bem desenvolvida, como a festa dos patriarcas
Abraão, Isaac e Jacó.
A devoção à Maria
permaneceu destacada na observância litúrgica carmelitana medieval,
caracterizando-o especialmente pelas antífonas das Vésperas nas quais o frade
implorava pela intercessão da Virgem Maria. O número de festas marianas
especiais era suficiente para assegurar uma devoção periódica
a Maria, dentro de um esquema regular, enquanto as orações e as
celebrações da Bem-aventurada Virgem asseguravam sua veneração durante a semana. Assim, o carmelita
permanecia fiel a seu título de “irmão
da Bem-aventurada Virgem Maria do Monte Carmelo” e modelava diretamente
sua vida na vida da mãe de Deus.
A forte
devoção aos santos Pedro e Paulo pode ter sido parte da incorporação dos
carmelitas na tradição mendicante da Igreja ou pode vir de sua busca por um
modelo diante da aprovação oficial de Elias e de Eliseu. No entanto, as festas
principais destes dois santos proeminentes foram claramente celebradas com
grande solenidade dentro da tradição carmelitana e os detalhes da observância
dos carmelitas associou-os à tradição do Santo Sepulcro em vez de a qualquer
outra na Europa ocidental. A devoção carmelitana aos Santos Pedro e Paulo
também caracterizou a lealdade que tinham pela Igreja. Este é um reconhecimento
de que o papel distinto dos carmelitas como eremitas e mendicantes foi exercido
dentro de um contexto da Igreja ao qual permaneceram comprometidos. Como
modelos, Pedro e Paulo simbolizam as dimensões administrativas e carismáticas
da Igreja, nas quais os carmelitas participam.
(Veja na 4ª Parte: Os Carmelitas e o
Concílio de Trento)
[i] Por exemplo, as fontes musicais mais recentes
do século XV são os códices carmelitanos de Mainz, datados de 1430 e 1432 respectivamente;
cf. Boyce (1984, 1986 e 1987).
[ii] Richard, NCE; Baldi, NCE.
[iii] Todas as traduções são da Bíblia Edição
Pastoral (Paulus).
[iv] Por exemplo, um antigo breviário do Santo
Sepulcro e depois adaptado para o uso carmelitano (Paris, BN lat 10478) tem um
arranjo muito mais simples da festa do que o rito carmelitano plenamente
desenvolvido.
[v] Guyot, NCE, Horvath, NCE.
[vi] Este ofício está preservado no manuscrito
Paris, BN lat. 17716; cf. Leclercq (1946), p. 17.
[vii] Saxer (1975) fez um estudo profundo e
altamente valioso sobre o culto a Santa Maria Madalena.
[viii] Haskins (1993) discute a confusão sobre Maria
Madalena nas Escrituras assim como a compreensão dela no período medieval.
[ix]
Smet (1988), Vol. I, p. 8.
[xi] Cf. Bouman (1958), Forcadell (1954) e Van
Dijk (1954) para uma discussão sobre esta festa.
[xii]
Forcadell (1954), 184.
[xiii]
Wessels (1912), Vol. I, pp. 109-110.
[xiv]
Pfaff (1970), p. 40.
[xv] Bonniwell (1945), pp. 231-32.
[xvi] Os textos da apresentação original foram
publicados em Coleman (1981). Os dois manuscritos originais estão hoje em
Paria, BN lat. 17330 e 14454. Discuto as variantes entre estas duas versões em
Boyce (1993).
[xvii] No Capítulo Geral de Frankfurt; cf. Wessels
(1912), Vol. I, pp. 109-110.
[xviii] Smet (1954).
[xix] Discuto as diversas celebrações da festa nos
manuscritos litúrgicos carmelitanos em Boyce (1991).
[xx] M. J. Hamilton, NCE: o ofício de São Tomás
provou ser popular para adaptação a outros ofícios. Edwards (1990) mostrou o
relacionamento íntimo entre o ofício de São Tomás de Canterbury e o de São
David de Wales.
[xxi] Um ofício rimado é aquele que contém textos
poéticos cujas linhas seguem um esquema rimado e cuja música é original e
normalmente bem elaborada.
[xxii]
Zimmerman (1907), Vol. I, p. 141.
[xxiii]
Cf. Driscoll (1973 e 1975), Boyce (1989).
[xxiv] Driscoll (1975); Coville (1949).
[xxv] A devoção a Santa Maria Salomé na Itália
baseava-se em Veroli; cf. minha edição deste ofício de Boyce (1988b).
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