Sua
modéstia e humildade fizeram dele uma figura popular em todo o mundo. Mas
dentro da Igreja, suas reformas têm enfurecido os
conservadores e desencadeado uma revolta.
O Papa
Francisco é um dos homens mais odiados do mundo atualmente. Os que mais o
odeiam não são ateus, protestantes, nem muçulmanos, mas alguns de seus
seguidores. Fora da Igreja, ele é muito conhecido como uma figura de modéstia e
humildade quase ostensivas. Desde que o Cardeal Jorge Bergoglio tornou-se
Papa, em 2013, seus gestos capturaram a imaginação mundial: o novo Papa dirigia
um Fiat, carregava suas próprias malas e cuidava de suas próprias contas de
hotel; perguntava, a respeito dos gays, "Quem sou eu para julgar?" e lavou os pés de mulheres muçulmanas refugiadas.
A reportagem é de Andrew Brown, publicada por The Guardian,
27-10-2017. A tradução é de Luísa Flores Somavilla.
Mas
dentro da Igreja Francisco tem provocado uma reação feroz dos conservadores,
que temem que este espírito a divida e possa chegar a destruí-la. Neste verão,
um importante sacerdote inglês me disse: "Mal podemos esperar por sua
morte. O que dizemos em particular não é publicável. Quando dois padres se
encontram, falam sobre o quão horrível é Bergoglio... é como o Calígula:
se tiver um cavalo, iria nomeá-lo cardeal." Claro, depois de 10 minutos
reclamando, acrescentou: "Nada disso pode ser publicado, ou vou ser
demitido."
Esta
mistura de ódio e medo é comum entre os adversários do Papa Francisco, o primeiro
papa não Europeu dos tempos modernos e o primeiro papa jesuíta, foi eleito como
alguém fora do sistema do Vaticano e, naturalmente, faria inimigos. Mas ninguém
previa que seriam tantos. Desde sua pronta renúncia da pompa do Vaticano, que
notificou os 3.000 integrantes da do serviço da Igreja da qual queria ser o
mestre, até seu apoio aos migrantes, ataques ao capitalismo global e,
acima de tudo, seus movimentos para re-examinar os ensinamentos da Igreja sobre
sexo, ele tem escandalizado reacionários e conservadores. A julgar pelas
figuras que votaram no último encontro mundial dos bispos, quase um quarto do
Colégio dos Cardeais – o mais alto clero da Igreja – acredita que o Papa está
flertando com a heresia.
O ponto
alto da crise chegou em um conflito sobre sua visão a respeito do divórcio.
Rompendo com séculos, se não milênios, de teoria católica, o Papa
Francisco tentou encorajar os padres católicos a dar a comunhão a alguns casais divorciados e recasados e
famílias em que os pais são solteiros e moram juntos. Seus inimigos estão
tentando forçá-lo a desistir dessa tentativa.
Como isso
não vai acontecer, e suas ideias têm prosperado apesar do descontentamento de
muitos, eles estão se preparando para lutar. No ano passado, um cardeal,
apoiado por alguns colegas aposentados, levantou a possibilidade de uma declaração
formal de heresia – a rejeição deliberada de uma doutrina estabelecida da
Igreja, um pecado punível com a excomunhão. No mês passado, 62 católicos
insatisfeitos, incluindo um bispo aposentado e um ex-chefe do banco do
Vaticano, publicaram uma carta aberta acusando Francisco de
sete ocorrências específicas de ensino herético.
Acusar um
Papa atual de heresia é a opção nuclear em conflitos católicos. A doutrina afirma que o Papa não pode estar errado ao
falar sobre as questões centrais da fé; se estiver errado, não pode ser Papa.
Por outro lado, se estiver certo, todos os antecessores deviam estar errados.
A questão
é particularmente tóxica, porque é quase completamente teórica. Na prática, em
grande parte do mundo, os casais divorciados e recasados recebem
a comunhão rotineiramente. O Papa Francisco não está propondo
uma revolução, mas o reconhecimento burocrático de um sistema que já existe e
pode até ser essencial para a sobrevivência da Igreja. Se as regras fossem
aplicadas de forma literal, ninguém cujo casamento não deu certo poderia ter
relações sexuais novamente. Não é uma maneira prática de garantir que existam
futuras gerações de católicos.
Mas as
cautelosas reformas de Francisco parecem, para
os seus adversários, ameaçar a crença de que a Igreja ensina verdades
atemporais. Se a Igreja Católica não ensina verdades eternas, perguntam os
conservadores, qual é o sentido? A batalha acerca do divórcio e do novo
casamento trouxe à tona duas ideias profundamente contrárias da função da
Igreja. A insígnia do Papa é duas chaves cruzadas, representando aqueles que
Jesus supostamente ofereceu a São Pedro e simbolizando a capacidade de
vinculação e perda: proclamar o que é pecado e o que é permitido. Mas qual é
mais importante e mais urgente agora?
A crise
atual é a mais grave desde que as reformas liberais dos anos 60 impulsionaram
um grupo dissidente de conservadores radicais a romper com a Igreja. (Seu
líder, o arcebispo francês Marcel Lefebvre, foi depois excomungado).
Durante os últimos anos, escritores conservadores têm levantado o espectro do
cisma por diversas vezes. Em 2015, o jornalista americano Ross Douthat, que se converteu ao
catolicismo, escreveu um artigo para a revista Atlantic cuja manchete
era Será que o Papa Francisco vai quebrar a Igreja?;
um post do blogue Spectator do tradicionalista inglês Damian
Thompsonameaçou que o "Papa Francisco está em guerra com o Vaticano. Se
ele vencer, a Igreja pode desmoronar." A visão do Papa sobre o divórcio e
a homossexualidade, de acordo com um arcebispo do Cazaquistão, permitiu que
"a fumaça do Satanás" entrasse na Igreja.
A Igreja
Católica passou grande parte do século passado lutando contra a revolução
sexual, tanto quanto lutou contra as revoluções democráticas do século XIX, e
nesta luta teve que defender uma posição absolutista indefensável, que proíbe
qualquer forma de contracepção artificial, assim como qualquer relação sexual
fora do casamento para toda a vida. Como Francisco reconhece, as
pessoas não se comportam assim. O clero sabe disso, mas deve fingir que não. O
ensino oficial não pode ser questionado, mas também não pode ser obedecido.
Alguém tem que ceder, e quando isso acontece, a explosão que resulta pode
quebrar a Igreja.
Apropriadamente,
o ódio às vezes amargo dentro da Igreja – direcionado ao
aquecimento global, à migração ou ao capitalismo – chegaram a um ponto de uma
luta gigantesca sobre as implicações de uma única nota de rodapé em um
documento chamado The Joy of Love (ou, em latim, Amoris Laetitia). O documento, escrito por Francisco, é
um resumo do debate atual sobre o divórcio, e é nesta nota de rodapé que ele
faz uma afirmação aparentemente suave de que casais divorciados e
recasadospodem, às vezes, receber a comunhão.
Com mais
de 1 bilhão de seguidores, a Igreja Católica é a maior organização
global que o mundo já viu, e muitos deles são pais divorciados ou solteiros. A
Igreja depende de trabalho voluntário para realizar sua obra em todo o mundo.
Se os fiéis comuns deixarem de acreditar no que estão fazendo, tudo desmorona.
O papa sabe disso. Se não for possível conciliar teoria e prática, a Igreja
pode se esvaziar em todos os lugares. Seus adversários também acreditam que a
Igreja enfrenta uma crise, mas afirmam o contrário. Para eles, a lacuna entre
teoria e prática é exatamente o que confere valor e significado à Igreja. Se
eles conseguem viver sem o que a Igreja oferece, segundo acreditam os adversários
de Francisco, ela certamente entrará em colapso.
Ninguém
previu isso quando Francisco foi eleito em 2013. Um dos motivos para
sua nomeação como papa por seus colegas cardeais foi resolver a esclerose da
burocracia do Vaticano. Há muito que se esperava por isso. O Cardeal Bergoglio de
Buenos Aires foi eleito como alguém relativamente de fora, que poderia limpar
parte do bloqueio no centro da Igreja. Mas essa missão em breve colidiu com uma
linha de falha ainda mais acirrada na Igreja, que é geralmente descrita como
uma batalha entre "liberais", como Francisco, e "conservadores",
como seus inimigos. Mas isso é uma classificação escorregadia e enganosa.
O
conflito central é entre católicos que acreditam que a Igreja deve definir a
agenda do mundo e os que pensam que o mundo deve definir a agenda da Igreja. São
tipos ideais: no mundo real, os católicos são uma mistura dessas orientações,
mas, em sua maioria, uma predomina.
O papa
Francisco é um exemplo puro de católico extrovertido ou "voltado para
o exterior", especialmente em comparação com seus antecessores imediatos.
Seus adversários são os introvertidos. Muitos atraíram-se pela Igreja por sua
distância das preocupações do mundo. Um número surpreendente dos principais
introvertidos advém de pessoas convertidas do protestantismo estadunidense,
algumas conduzidas pela superficialidade dos recursos intelectuais com que
foram criadas, mas principalmente por um sentimento de que o protestantismo
liberal estava morrendo justamente porque já não oferecia nenhuma
alternativa para a sociedade ao seu redor. Querem mistério e romance, não o
senso comum estéril ou a sabedoria convencional. Nenhuma religião pode
florescer sem esse impulso.
Assim
como nenhuma religião global pode ficar totalmente contra o mundo. No início da
década de 60, um encontro de três anos entre os bispos de todas as partes da
Igreja, conhecido como o Segundo Concílio Vaticano, o Concílio Vaticano II, "abriu as
janelas para o mundo", nas palavras do Papa João XXIII, que iniciou o
movimento, mas morreu antes de concluir seu trabalho.
O Concílio renunciou
ao antissemitismo, abraçou a democracia, proclamou direitos humanos universais
e em grande medida aboliu a missa em latim. O último ato, em particular,
surpreendeu os introvertidos. O escritor Evelyn Waugh, por exemplo, nunca
foi a uma missa em inglês após a decisão. Para homens como ele, os rituais
solenes de um serviço realizado por um sacerdote de costas para a Congregação,
falando inteiramente em latim, diante de Deus no altar, eram o coração da
Igreja – uma janela para a eternidade promulgada em cada performance. O ritual
foi central para a Igreja de uma forma ou de outra desde a sua fundação.
A mudança
simbólica provocada pela nova liturgia – substituindo o padre introvertido voltado para Deus no
altar pela figura extrovertida voltado à congregação – era imensa. Alguns
conservadores ainda não se reconciliaram com a reorientação, como o Cardeal
ganês Robert Sarah, apontado por introvertidos
como um possível sucessor de Francisco, e o Cardeal estadunidense Raymond Burke, que emergiu como o
adversário mais explícito de Francisco. A crise atual, nas palavras da
jornalista católica inglesa Margaret Hebblethwaite – partidária
apaixonada de Francisco – o "Vaticano II está voltando
novamente".
"É
preciso ser inclusivo e acolhedor a tudo o que é humano", disse Sarah em
uma reunião do Vaticano no ano passado, em uma denúncia das propostas de Francisco,
"mas o que vem do inimigo não pode e não deve ser assimilado. Não se pode
juntar Cristo e Belial! O que foram o nazi-fascismo e o comunismo no século XX,
são as ideologias ocidentais da homossexualidade e do aborto e o fanatismo
islâmico hoje."
Nos anos
imediatamente depois do Concílio, freiras descartaram seus hábitos, sacerdotes
descobriram as mulheres (mais de 100.000 deixaram o sacerdócio para se casar),
e teólogos jogaram fora com as algemas da ortodoxia introvertida. Após 150 anos
resistindo e repelindo-o, a Igreja viu-se engajada com o mundo exterior em
todos os lugares, parecer aos introvertidos que todo o edifício entraria em
colapso, tornando-se escombros.
O número
de frequentadores da Igreja despencou no mundo ocidental, assim como em outras
denominações. Nos EUA, 55% dos católicos iam à missa regularmente em 1965;
em 2000, apenas 22%. Em 1965, 1.3 milhões de bebês católicos eram batizados
nos Estados Unidos; em 2016, apenas 670.000. Se foi causa ou correlação,
permanece o debate feroz. Para os introvertidos, a culpa é do abandono das
verdades eternas e práticas tradicionais; já os extrovertidos sentiram que a
Igreja não tinha mudado muito ou rápido o suficiente.
Em 1966,
uma comissão papal de 69 membros, com sete cardeais e 13 médicos, em que leigos
e até mesmo algumas mulheres eram representadas, votou esmagadoramente pela
revogação da proibição da contracepção artificial, mas o Papa Paulo
VI negou o pedido em 1968. Ele não podia admitir que seus antecessores
estavam errados, e os protestantes estavam certos. Para uma geração de
católicos, o debate passou a simbolizar a resistência à mudança. No mundo em
desenvolvimento, a Igreja Católica em grande parte foi dominada por um
enorme renascimento Pentecostal, que oferecia muito carisma e status para
os leigos, mesmo para as mulheres.
Os
introvertidos vingaram-se com a eleição do Papa (agora Papa São) João
Paulo II, em 1978. Sua igreja polonesa havia sido definida por sua oposição ao
mundo e seus poderes dividiram o país a partir dos nazistas e comunistas,
em 1939. João Paulo II era um homem de uma tremenda energia, força de vontade e
dons importantes. Ele também era profundamente conservador em assuntos de
moralidade sexual e, quando era cardeal, forneceu a justificativa intelectual
para a proibição do controle de natalidade.
Desde o
momento da sua eleição, ele começou a remodelar a Igreja à sua imagem. Se não
podia transmitir seu próprio dinamismo e força de vontade, podia, ao que
parecia, expurgar a Igreja da extroversão e configurá-la mais uma vez como uma
rocha, contra as correntes do mundo secular.
Ross
Douthat, o jornalista católico, foi uma das poucas pessoas no partido
introvertido que estava disposto a falar abertamente sobre o conflito atual.
Por ser jovem, ele foi um dos que se converteram na época do Papa João
Paulo II. Agora, diz: "A Igreja pode estar bagunçada, mas o importante é
que o centro é sadio, e sempre se pode reconstruir as coisas a partir do
centro. Ser católico é bom porque há garantia de continuidade no centro, e, com
isso, a esperança de reconstituição da ordem católica."
João
Paulo II teve o cuidado de nunca repudiar as palavras do Concílio
Vaticano II, mas trabalhou para esvaziá-las do espírito extrovertido. Ele
começou impondo uma disciplina feroz sobre o clero e os teólogos. Dificultou
tanto quanto possível que os sacerdotes saíssem para se casar. Seu aliado nisso
era a Congregação para a Doutrina da Fé - CDF, antes conhecida
como Santo Ofício. A CDF é o departamento mais institucionalmente introvertido
do Vaticano (ou "dicastérios", como são conhecidos desde a época dos
impérios romanos; é um detalhe que indica o peso da experiência institucional e
inércia – se o nome era bom o suficiente para Constantino, por que mudar?).
Para
a CDF, era axiomático que o papel da Igreja fosse ensinar o
mundo, e não aprender com ele. Há uma longa história de punição aos teólogos
que discordam: foram proibidos de publicar ou retirados de universidades
católicas.
No início
do pontificado de João Paulo II, a CDF publicou Donum
Veritatis (o dom da verdade), um documento explicando que todos os
católicos devem praticar a "submissão da vontade e intelecto" ao que
o Papa ensina, mesmo quando não é infalível; e que teólogos, embora possam
discordar e dar a conhecer aos superiores, nunca devem expressar desacordo em
público. Isso foi usado como uma ameaça, e, por vezes, como uma arma, contra
qualquer pessoa suspeita de dissidência liberal. Francisco, no entanto,
transformou esses poderes contra os que haviam sido seus defensores mais
entusiastas. Os padres, bispos e cardeais católicos servem ao Papa e podem a
qualquer momento ser demitidos. Os conservadores aprenderiam tudo sobre isso
durante o papado de Francisco, que demitiu pelo menos três teólogos da CDF.
Os jesuítas demandam disciplina.
Em 2013,
logo após sua eleição, enquanto ainda estava numa onda de aclamação quase
universal pela ousadia e simplicidade de seus gestos – havia se mudado para
dois quartos com pouca mobília nos jardins do Vaticano, em vez dos apartamentos
suntuoso do Estado usados por seus predecessores –, Francisco expurgou
uma pequena ordem religiosa dedicada à prática da missa em latim.
Os Frades Franciscanos da Imaculada, um grupo
com cerca de 600 membros (homens e mulheres), estava sendo investigado por uma
Comissão em junho de 2012, durante o papado de Bento XVI. Eles eram
acusados de combinar cada vez mais uma política de extrema direita com
uma devoção à missa em latim. (Esta mistura, muitas vezes vista ao lado de
declarações de ódio do "liberalismo", também estava se espalhando na
mídia on-line nos EUA e no Reino Unido, como o blogue Holy
Smoke, do Daily Telegraph, editado por Damian Thompson).
Quando
houve o relato da Comissão, em julho de 2013, a reação de Francisco chocou
os conservadores rígidos. Ele fez os frades deixarem de usar o latim na missa
em público e fechou seu seminário. Ainda podiam educar novos sacerdotes, mas
não segregados do resto da Igreja. Além disso, foi muito direto, sem passar
pelo sistema jurídico interno do Vaticano, liderado na época pelo Cardeal Burke.
No ano seguinte, Francisco demitiu Burke de seu trabalho poderoso no
sistema jurídico interno do Vaticano e ganhou um inimigo implacável.
Burke, um
estadunidense audacioso, dado às vestes de rendas bordadas e (em ocasiões
formais) à capa escarlate cerimonial, que de tão longa precisa de pessoas que
carreguem sua cauda, foi um dos principais reacionários no Vaticano. Na forma e
na doutrina, ele representa uma longa tradição de grandes corretores de poder
estadunidense do Catolicismo étnico branco. A Igreja hierática, patriarcal
e conflituosa da missa em latim é seu ideal, ao qual parecia que a Igreja
de João Paulo II e de Bento XVI foi voltando lentamente – até
Francisco começar a trabalhar.
A
combinação do Cardeal Burke de anticomunismo, orgulho étnico e ódio
do feminismo tem alimentado uma sucessão de figuras proeminentes de direita
nos Estados Unidos, de Pat Buchanan a Bill O'Reilly e Steve Bannon, ao lado de intelectuais
católicos conhecidos como Michael Novak, que promoveram incansavelmente as
guerras no Oriente Médio e a compreensão Republicana dos mercados livres.
Foi o
Cardeal Burke que convidou Bannon, que já era o espírito que
animava o Breitbart News, para falar em uma conferência no Vaticano, por
videoconferência, da Califórnia, em 2014. O discurso de Bannon foi
apocalíptico, incoerente e historicamente excêntrico. Mas não havia como
confundir a urgência da sua convocação para uma guerra santa: a segunda
guerra mundial, disse, tinha sido "judaico-cristãos do oeste contra os
ateus", e agora a civilização estava "em estágios iniciais de uma
guerra global contra o fascismo islâmico... um conflito brutal e sangrento...
que erradicará completamente todo o nosso legado dos últimos 2.000, 2.500 anos...
se as pessoas nesta sala, as pessoas na Igreja, não... lutarem por nossas
crenças, contra esta nova barbárie que está começando."
Tudo no
discurso é um anátema para Francisco. A primeira viagem oficial do Papa
para fora de Roma, em 2013, foi para a ilha de Lampedusa, que havia se
tornado o ponto de chegada de dezenas de milhares de migrantes desesperados do
norte da África. Como ambos seus predecessores, ele se opõe firmemente às guerras
no Oriente Médio, embora o Vaticano tenha apoiado, de forma relutante, a
extirpação do califado doEstado Islâmico. Ele se opõe à pena de morte. Ele
abomina e condena o capitalismo estadunidense: depois de dar seu apoio a
migrantes e homossexuais, a primeira grande instrução política do seu período
no cargo foi uma encíclica, documento que traz um ensinamento, dirigido a toda
a Igreja, que condenava ferozmente o funcionamento de mercados globais.
"Algumas
pessoas continuam defendendo teorias de gotejamento que pressupõem que o
crescimento econômico, incentivado por um mercado livre, inevitavelmente terá
sucesso em trazer maior justiça e inclusão no mundo. Esta opinião, que nunca
foi confirmada pelos fatos, exprime uma enorme e ingênua confiança na bondade
daqueles que exercem o poder econômico e no funcionamento sacralizado do
sistema econômico vigente. Enquanto isso, os excluídos ainda estão
esperando."
Acima de
tudo, Francisco está do lado dos imigrantes – ou os emigrantes, como
ele os vê – expulsos de casa por um capitalismo voraz e destrutivo
sem limites, que causou uma mudança climática catastrófica. É uma
questão racial, assim como profundamente política, nos EUA. Os evangélicos que
votaram em Trump e no seu muro são esmagadoramente brancos. Assim
como a liderança da Igreja Católica estadunidense. Mas cerca de um terço
dos leigos são hispânicos, e essa proporção está crescendo. No mês
passado, Bannon afirmou, em entrevista ao programa 60 Minutes da
CBS, que os bispos estadunidenses eram a favor da imigração em massa só porque
mantinha suas congregações – embora a questão vá adiante do que a maioria dos
bispos de direita diga publicamente.
Quando Trump anunciou
que construiria um muro para manter os imigrantes fora do país, Francisco chegou
muito perto de negar que o então candidato seria cristão. Na visão do papa dos
perigos para a família, os banheiros para transgêneros não são o problema mais
urgente, como afirmam alguns guerreiros culturais. O que destrói famílias,
escreveu, é um sistema econômico que força milhões de famílias pobres a se
separar em busca de trabalho.
Assim
como abordou os praticantes da antiga missa em latim, Francisco começou
uma ampla ofensiva contra a velha guarda dentro do Vaticano. Cinco dias após
sua eleição, em 2013, ele convocou o Cardeal hondurenho Óscar Rodríguez Maradiaga e disse que
ele seria o coordenador de um grupo de nove Cardeais de todo o
mundo cuja missão era limpar o lugar. Todos eles haviam sido escolhidos por sua
energia e pelo fato de já terem discordado do Vaticano. Foi um movimento
popular em todos os lugares fora de Roma.
João
Paulo II passou a última década de sua vida cada vez mais debilitado pela
doença de Parkinson, e as energias que restavam não foram gastas com lutas
burocráticas. A Cúria, como a burocracia do Vaticano é conhecida, ficou
ainda mais poderosa, estagnada e corrupta. Muito pouco foi feito contra os
bispos que abrigaram padres que abusaram de criança. O banco do Vaticano -
IOR era conhecido pelos serviços de lavagem de dinheiro. O processo de
fabricação de santos – algo que João Paulo II tinha feito a um ritmo
sem precedentes – tornou-se uma confusão extremamente cara. (O jornalista
italiano Gianluigi Nuzzi estimou o custo de
uma canonização em €500.000 por halo.) As finanças do Vaticano em si eram uma
confusão horrível. O próprio Franciscorefere-se a "um fluxo de
corrupção", na Cúria.
O estado
pútrido da Cúria era amplamente conhecido, mas
nunca abordado em público. Em nove meses da nomeação, Francisco disse
a um grupo de freiras que "na Cúria, também existem pessoas santas,
realmente, existem pessoas santas" – sendo que a revelação foi que ele
imaginou que o público de freiras ficaria chocado ao descobrir isso.
A Cúria,
disse, "vê e cuida dos interesses do Vaticano, que ainda são, em grande
parte, interesses temporais. Esta visão centrada no Vaticano ignora o mundo que
nos rodeia. Não compartilho desta opinião, e vou fazer o que puder para mudar
isso." Ele disse ao jornal italiano La Repubblica: "Os líderes
da Igreja muitas vezes foram narcisistas, orgulhosos e emocionados por seus
cortesãos. O tribunal é a lepra do papado".
"O
Papa nunca falou nada agradável sobre os sacerdotes," disse o padre que
mal pode esperar por sua morte. "Ele é um jesuíta anticlerical. Lembro
disso pelos anos 70. Eles diziam: 'Não me chame de Padre, me chame de Gerry'
– essa porcaria – e nós, o clero paroquial oprimido, sentimos que perdemos o
chão."
Em
dezembro de 2015, Francisco fez seu tradicional discurso de Natal à Cúria Romana, e não
teve papas na língua: Acusou-os de arrogância, “Alzheimer espiritual”,
"hipocrisia típica dos medíocres e um vazio espiritual progressivo que
graus acadêmicos não conseguem preencher", bem como materialismo vazio e
vício por fofoca e calúnia – não é o tipo de coisa que se quer ouvir do chefe
na festa do escritório.
Porém,
quatro anos após ter se tornado papa, a resistência passiva do Vaticanoparece
ter triunfado sobre a energia de Francisco. Em fevereiro deste ano, apareceram cartazes durante a
noite nas ruas de Roma que perguntavam, "Francisco, onde está sua
compaixão?", atacando-o por seu tratamento ao Cardeal Burke. Os
cartazes só podem ter vindo de desafetos no Vaticano e são sinais exteriores de
uma teimosa recusa de ceder poder ou privilégio aos reformadores.
Esta
batalha, porém, tem sido ofuscada, assim como todas as outras, pelos conflitos
internos sobre a moralidade sexual. A luta sobre o divórcio e o
recasamento centra-se em dois fatos. Primeiro, que a doutrina da Igreja
Católica não mudou em quase 2.000 anos – o casamento é indissolúvel pela vida
toda; isso é muito claro. Assim como o segundo fato: As taxas de pessoas que se
divorciam ou casam novamente entre os católicos são as mesmas do restante da
população, e quando isso acontece, eles não veem nada imperdoável em suas
ações. Portanto, as igrejas do mundo ocidental estão cheias de casais
divorciados e que se casaram novamente que recebem a comunhão com os outros,
mesmo que eles e seus sacerdotes saibam perfeitamente que isso não é aceitável.
Os ricos
e poderosos sempre exploraram as lacunas. Quando querem se livrar de uma mulher
e casar novamente, um bom advogado encontra uma forma de provar que o primeiro
casamento foi um erro, não algo que tenha entrado no espírito que a Igreja
exige, para que seu registro possa ser limpo – no jargão, anulado. Isto se
aplica especialmente para os conservadores: Steve Bannon conseguiu se
divorciar das suas três esposas, mas talvez o exemplo atual mais escandaloso
seja o de Newt Gingrich, que liderou a aquisição republicana do Congresso
na década de 90 e desde então reinventou-se como aliado de Trump. Gingrich
terminou com sua primeira esposa enquanto ela se tratava para um câncer e,
ainda casado com sua segunda esposa, teve um caso de oito anos com Callista
Bisek, devota católica, antes de se casar com ela na Igreja. Ela está prestes a
assumir o cargo de embaixadora de Donald Trump no Vaticano.
O ensino
sobre casar-se novamente após um divórcio não é o único ensino sexual
católico que nega a realidade dos leigos, mas é o mais prejudicial. A
proibição da contracepção artificial é ignorada por todos onde quer
que seja legal. A hostilidade aos gays é comprometida pelo fato geralmente
conhecido de que uma grande proporção do sacerdócio no Ocidente é gay, e alguns
deles são bem ajustados celibatários. A rejeição do aborto não é um problema
onde o aborto é legal, e, em todos os casos, não é particular à Igreja
Católica. Mas a recusa em reconhecer segundos casamentos, a menos que o casal
prometa nunca mais fazer sexo, destaca os absurdos de uma casta de homens celibatários
que regulam a vida das mulheres.
Em 2015 e
2016, Francisco convocou duas grandes
conferências ou sínodos de bisposde todo o mundo para discutir tudo isso.
Ele sabia que não podia operar mudanças sem amplo acordo. Ele manteve-se em
silêncio e encorajou os bispos a discutir. Mas logo ficou claro que favoreceu
um considerável afrouxamento da disciplina em torno da comunhão, após um
novo casamento. Como isso é o que se passa na prática de qualquer forma, é
difícil para alguém de fora entender as paixões que desperta.
"O
que me preocupa é a teoria", disse o padre inglês que confessou seu ódio
por Francisco. "Na minha paróquia há muitos casais divorciados e
recasados, mas muitos deles, se ouvissem que o primeiro cônjuge havia morrido,
correriam para casar na igreja. Conheço muitos homossexuais que
estão fazendo todo tipo de coisa errada, mas que sabem que não devem fazer.
Somos todos pecadores. Mas temos que manter a integridade intelectual da fé
católica".
Pensando
assim, o fato de que o mundo rejeita seu ensino meramente prova o quão correto
é. "A Igreja Católica deveria ser contracultural na esteira da revolução
sexual", diz Ross Douthat. "A Igreja Católica é o último lugar
do mundo ocidental que diz que o divórcio é ruim."
Para Francisco e
seus apoiadores, tudo isso é irrelevante. A Igreja, afirma, deveria ser um
hospital ou um posto de primeiros-socorros. As pessoas que estão divorciadas
não precisam que alguém lhes diga que isso é ruim. Precisam recuperar e
reconstruir suas vidas novamente. A Igreja deve ficar ao seu lado e demonstrar
piedade.
No
primeiro Sínodo dos Bispos em 2014, essa ainda era
uma opinião minoritária. Um documento liberal estava preparado, mas foi
rejeitado pela maioria. Um ano depois, os conservadores estavam claramente em
minoria, mas uma minoria muito determinada. O próprio Francisco escreveu
um resumo das deliberações de A Alegria do Amor. É um documento longo,
reflexivo e cuidadosamente ambíguo. A dinamite é enterrada na nota de rodapé 351 do capítulo oito e
teve grande importância nas revoluções subsequentes.
A nota
de rodapé faz um adendo a uma passagem que vale a pena citar tanto pelo
que diz como pela forma com que diz. Sua mensagem é clara: algumas pessoas
vivendo segundos casamentos (ou parcerias civis) "podem viver na graça de
Deus, podem amar e podem também crescer na vida de graça e de caridade,
recebendo para isso a ajuda da Igreja".
Mesmo a
nota de rodapé, que diz que esses casais podem receber a comunhão se
confessarem seus pecados, aborda o assunto com cautela: "Em certos casos,
isso pode incluir a ajuda dos sacramentos." Portanto, "quero lembrar
os sacerdotes que o confessionário não pode ser uma câmara de tortura, mas um
encontro com a misericórdia do Senhor." E: "Gostaria também de
salientar que a Eucaristia 'não é um prêmio para a perfeição, mas um poderoso
remédio e alimento para os fracos'."
"Por
pensar que tudo é preto ou branco", acrescenta Francisco, "às
vezes fechamos o caminho da graça e do crescimento".
É esta
pequena passagem que uniu todas as rebeliões contra sua autoridade. Ninguém
consultou os leigos para sabem sua opinião sobre isso, que em caso algum foi de
interesse para o partido introvertido. Mas entre um quarto e um terço dos
bispos resiste passivamente à mudança, e uma pequena minoria está fazendo isso
de forma ativa.
O líder
dessa facção é o grande inimigo de Francisco, o Cardeal Burke.
Demitido primeiro do cargo no Tribunal do Vaticano e depois da comissão de
liturgia, ele acabou no conselho de fiscalização dos Cavaleiros de Malta – um órgão de
caridade dirigido pelas velhas aristocracias católicas da Europa. No outono de
2016, despediu o líder da ordem por supostamente permitir que freiras
distribuíssem preservativos na Birmânia. Isso é algo que as freiras fazem
muito no mundo em desenvolvimento, para proteger as mulheres vulneráveis. O
homem que havia sido demitido apelou ao Papa.
O
resultado foi que Francisco reintegrou o homem que Burke tinha
demitido e nomeou outra pessoa para assumir a maioria das funções de Burke. Foi
um castigo por suas afirmações completamente falsas de que o Papa estava do seu
lado no conflito original.
Enquanto isso, Burke utilizou-se de outras frentes, que chegaram o mais próximo que conseguiu de acusar o Papa de heresia. Juntamente com três outros cardeais, dois dos quais já morreram, Burke produziu uma lista de cinco questões destinadas a verificar seAmoris Laetitia violava o ensino anterior ou não. As questões foram enviadas como uma carta formal para Francisco, que ignorou. Depois de ser demitido, Burke divulgou as questões e disse que estava preparado para emitir uma declaração formal de que o Papa era um herege se ele não as respondesse, para satisfazê-lo.
Enquanto isso, Burke utilizou-se de outras frentes, que chegaram o mais próximo que conseguiu de acusar o Papa de heresia. Juntamente com três outros cardeais, dois dos quais já morreram, Burke produziu uma lista de cinco questões destinadas a verificar seAmoris Laetitia violava o ensino anterior ou não. As questões foram enviadas como uma carta formal para Francisco, que ignorou. Depois de ser demitido, Burke divulgou as questões e disse que estava preparado para emitir uma declaração formal de que o Papa era um herege se ele não as respondesse, para satisfazê-lo.
Claro, Amoris
Laetitia representa uma ruptura com o ensino anterior. É um exemplo da
Igreja ter aprendido com a experiência. Mas é difícil os conservadores
assimilarem: historicamente, estas explosões de aprendizagem só aconteceram em
convulsões, a séculos de distância. Essa chegou apenas 60 anos após a última
explosão de extroversão, com o Concílio Vaticano II, e somente 16 anos
depois de João Paulo II ter reiterado a velha linha dura.
"O
que significa um papa contradizer um papa anterior?", pergunta Douthat.
"É notável o quão perto Francisco chegou de discutir com seus
predecessores imediatos. Foi apenas há 30 anos que João Paulo II previu
no Veritatis Splendor uma linha que
parece contradizer Amoris Laetitia."
O
Papa Francisco está deliberadamente contradizendo um homem que ele
mesmo proclamou santo. Isso dificilmente vai incomodá-lo. Talvez a mortalidade
incomode. Quanto mais Francisco altera a linha de seus predecessores, mais
fácil fica para que um sucessor reverta a sua. Embora a doutrina católica sofra
alterações, depende de sua força a ilusão de que não. Os pés podem estar
dançando sob a batina, mas o manto pode nunca se mover. No entanto, isso também
significa que mudanças que haviam ocorrido podem ser revertidas sem qualquer
movimento oficial. É assim que João Paulo IIatingiu o Vaticano II.
Para
garantir que as mudanças de Francisco vão perdurar, a Igreja tem que
aceitá-las. Essa é uma pergunta que não será respondida em sua vida. Ele tem 80
anos e só tem um pulmão. Seus adversários podem ser rezando por sua morte, mas
ninguém sabe se seu sucessor tentará contradizê-lo – e dessa questão depende
o futuro da Igreja Católica. Fonte: http://www.ihu.unisinos.br
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