“Alegrai-vos e exultai, porque será grande a vossa recompensa nos céus...” (Mt 5,12)
O artigo é de Adroaldo Palaoro,
padre jesuíta, comentando o evangelho segundo Mateus 5,1-12,
correspondente à quinta-feira, dia 2 de novembro, Comemoração dos fiéis
defuntos.
No dia de Finados, fazemos
memória e nos unimos a todas aquelas pessoas cujos rostos estão gravados em
nossa mente e coração, pois foram presenças que nos sustentaram, nos
confortaram, nos animaram e nos impulsionaram. E podemos expressar a confiança
profunda de que a vida é conduzida secretamente a um Porto de Amor definitivo,
e todo pranto, impotência e fragilidade serão abraçados e sanados n’Ele.
Há tanto que agradecer a
estas pessoas que, como silencioso fermento, fizeram história com Deus no
interior de nossa pobre humanidade. Foram presenças inspiradoras que melhoraram
uma parte do mundo e nossa gratidão as acompanha. Ditosos eles e elas, e
ditosos também nós porque, na comunhão com aqueles(as) que já vivem a páscoa
definitiva, somos movidos a seguir seus passos pelo caminho da vida, para
sermos dispensadores humildes de felicidade, compaixão, mansidão, famintos e
sedentos de justiça, de paz.
Com a morte começa
a vida para sempre, no coração do Deus amor. E se a morte é capaz de nos privar
do dom da vida, o “amor tem poder para nos devolvê-la”, nos afirma o
bispo Balduino
de Cantebery.
Ao falar da morte sempre
nos sentimos impotentes, pois ela nos ultrapassa. Sabemos de sua existência,
mas muitas vezes nos dá medo. E o medo da morte impede viver adequadamente o
presente. Mais grave ainda, o medo da morte pode chegar a nos travar
profundamente e alimentar uma angústia a ponto de impedir-nos de viver a vida
com sentido, qualidade e prazer.
Nossa sociedade tende a
negar a morte, afastando-a dos nossos ambientes cotidianos, tornando-a
invisível; procuramos negá-la, escondê-la, dissimulá-la; preferimos não falar
dela e, mesmo quando falamos desta realidade última, a ela nos referimos com
temor e tremor. O pânico e a negação são nosso pão de cada dia: a compulsão por
manter-nos – ou ao menos parecer-nos – jovem, o culto à saúde e à vitalidade, a
incapacidade de aceitar a fragilidade e a finitude de nossa natureza humana,
deixam transparecer o medo de nos deparar com a morte.
A morte nos
golpeia em dimensões muito sensíveis e frágeis de nossa experiência humana; ela
desnuda e des-vela a precariedade de nossa existência. Com nada chegamos ao
mundo e sem nada partiremos dele. E a realidade é que sem aceitação da morte
continuamos presos à onipotência infantil que nos faz fantasiar de seres
imortais.
E, no entanto, a morte está
aí, na volta da esquina; por ser algo seguro e certo, a morte é realidade
freqüente de distância, mistério e silêncio; ela nos faz cruzar o umbral do
desconhecido, do qual é impossível dar um passo atrás; ficamos paralisados
frente ao desconhecido e ao irreversível. A morte põe fim ao nosso estado de
caminhantes neste mundo, tempo no qual fomos nos amadurecendo e crescendo.
A experiência cristã, por
outro lado, nos revela o caminho de uma morte preparada ao longo da vida,
porque a entende em relação com a vida e a vida em relação com a morte. Vida
sem morte é irresponsável. Tira a seriedade da vida, que lhe é dada pela morte.
Na verdade, a morte nunca
fala sobre si mesma. Ela sempre nos fala sobre aquilo que estamos fazendo com a
própria vida: as perdas, os sonhos não realizados, os riscos que não
enfrentamos por medo...
É de todos conhecido o
refrão: “A morte menos temida dá mais vida”.
Superar o medo da morte é
um processo longo, complexo, mas para o cristão constitui uma experiência
religiosa muito profunda, que o desafia a aprofundar na consciência de si mesmo
e em sua capacidade de confiar em Deus. Vencer o medo da morte é reconhecer que
a vida sempre é um dom, não o resultado de nosso esforço; e que, por isso
mesmo, o essencial não é encontrar um caminho para alcançar a imortalidade, mas
aprender a “morrer
em Cristo”.
Não é a morte aquela que
deve dar sentido à nossa vida, mas ao contrário, só aprendendo a viver é que se
aprende a morrer. Mesmo que nos restasse apenas um segundo de vida, faríamos
muito mal em pensar na morte. Seria muito mais positivo viver plenamente esse
segundo.
A fé cristã não é
masoquista ou sádica quando nos ensina a bem morrer. Assim nos dá maior
responsabilidade para com a própria vida. O teólogo Soren Kierkegaard afirma
que “só a fé proporciona ao ser humano o valor e a audácia necessárias para
olhar a morte de frente”. Sem medos, sabendo que o Deus da vida, acolhe com
amor e ternura, àqueles(as) que são “aspirados(as)” para dentro de suas
entranhas misericordiosas.
O diretor japonês Akira Kurosawa retrata,
de maneira original, questão da morte, em seu filme Ikiru, uma
obra-prima de 1952. Trata-se da história de Watanabe,
um humilde burocrata japonês que descobre ter câncer de estômago e apenas mais
alguns meses de vida. O câncer serve de experiência reveladora para este homem,
que antes tinha vivido uma vida tão limitada e atrofiada que seus próprios
funcionários o apelidaram de “a múmia”.
Depois de descobrir o
diagnóstico, ele falta ao trabalho pela primeira vez em 30 anos, retira uma
grande quantia de dinheiro de sua conta-corrente e tenta voltar à vida em
vibrantes boates japonesas.
No meio desse ambiente
devasso, ele encontra inesperadamente uma ex-funcionária que havia pedido
demissão de seu escritório porque o emprego era tedioso demais: ela queria
viver.
Fascinado por sua
vitalidade e energia, ele a segue e implora para que ela o ensine como viver.
Ela lhe disse apenas que odiava seu antigo trabalho porque se tratava de uma
burocracia sem sentido.
No novo emprego, em que faz
bonecas numa fábrica de brinquedos, ela se sente inspirada e motivada a viver a
partir da idéia de poder levar felicidade a muitas crianças.
Quando o burocrata revela a
ela seu câncer e a proximidade da morte, ela fica horrorizada e corre para
longe, emitindo apenas uma única mensagem por sobre os ombros: “Faça alguma
coisa”.
Watanabe retorna, transformado, ao seu trabalho, recusa-se a
ser engessado pelo ritual burocrático, quebra todas as regras e dedica o
restante da vida à construção de um parque infantil, que seria aproveitado por
muitas crianças, durante muitos anos. Na última cena, Watanabe,
próximo da morte, está sentado em um balanço no parque. Apesar da nevasca, ele
está sereno e se aproxima da morte com uma tranquilidade impressionante.
De fato, aqueles que que
vivem com mais intensidade são os que deixam a segurança da margem e se dedicam
apaixonadamente à missão de comunicar vida aos outros.
Por isso, para os cristãos,
a morte sempre se refere à Vida e à vida; à
Vida com maiúscula, junto a Deus e para sempre (que chamamos Vida Eterna), e a
vida de todos os dias, na qual somos chamados a ser testemunhas do amor de Deus
a todos os homens e mulheres deste mundo; uma vida de serviço, de compromisso,
de entrega generosa para construir um mundo melhor; uma vida com sentido, para
que, quando cruzar o umbral da porta desta vida, de verdade encontremos
plenamente o que tanto buscávamos: o amor, a paz e o rosto bondoso de um Deus
que é Amor.
A vida se expande quando
compartilhada e se atrofia quando permanece no isolamento e na comodidade. E a
morte é o instante da expansão plena para aquele que soube dar um sentido
inspirador à sua existência. Podemos afirmar, então, com muita propriedade,
que todos
morremos para o interior da Vida.
Para meditar na oração
A certeza de nossa fé em
Cristo morto e ressuscitado nos ajuda a tirar do coração os medos, os impulsos
auto-referentes na busca de segurança e imortalidade, para encontrar uma paz
profunda que nos permita fazer de nossa vida uma oferenda gratuita em favor da
vida de outros.
Como você se situa diante
da morte: medo? serenidade? certeza de poder mergulhar numa Vida maior?... Fonte:
http://www.ihu.unisinos.br
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