Frei
Quinn R. Conners, O. Carm.
Os três votos professados por religiosos e religiosas estão enraizados
nas Escrituras. Eles são uma expressão dos valores do Evangelho. Contudo, eles
se encarnam num determinado momento histórico, refletindo assim as necessidades
e as esperanças psicológicas e espirituais das pessoas e do tempo em que vivem.
Nossa discussão sobre cada um dos votos partirá de suas raízes espirituais ou
teológicas.
Reconhecemos que os votos não são entidades autônomas. Cada voto tenta
exaltar um lado distinto da vida humana, dos valores evangélicos, da vida
cristã e carmelitana. No entanto, cada voto está relacionado intimamente ao
outro. A partir de nossa breve abordagem histórica, veremos que antigamente todos
os votos estavam subordinados ao voto de obediência. Este inter-relacionamento
dos votos fica evidente quando tentamos descrever cada um deles.
POBREZA: A matéria bruta em
transformação
Ao contrário da obediência, encontrar as raízes bíblicas da pobreza
exige algum esforço. Obediência é uma palavra bíblica bem comum, enquanto que
pobreza ocorre com menos frequência. Contudo, a chave para a pobreza é a
consciência de que ela deve estar enraizada na fé e no amor que nos une a Deus.
De fato, num sentido bíblico a pobreza e a obediência estão intimamente
relacionadas. Se obediência é o compromisso de ouvir a voz de Deus, a pobreza é
o compromisso de responder a esta voz.
Em geral, as Escrituras olham a pobreza de um modo bem prático.
Basicamente, os bens materiais são apresentados de uma maneira positiva. Eles
são um dom de Deus, reflexo da criação de Deus. Por outro lado, a pobreza e a
espoliação não são boas. Elas representam uma distorção da bondade de Deus.
Portanto, um dos compromissos da Aliança era que todos mereciam atenção:
ninguém deveria passar necessidades, ninguém deveria ser pobre. Quando Lucas
retrata a comunidade de Jerusalém após a Páscoa, ele a descreve precisamente
nestes termos como a realização da comunidade ideal ansiada por Israel: “Todos
os que abraçaram a fé eram unidos e colocavam em comum todas as coisas...
conforme a necessidade de cada um” (At 2,44-45).
Contudo, Israel e as igrejas do Novo Testamento também conheciam a
tentação em ter tantos bens. As divisões entre os ricos e os pobres emergiram
desde cedo na história de Israel. Eventualmente vozes proféticas, de Elias a
Jeremias, surgiam contra os ricos e poderosos porque eles maltratavam os
indefesos. Amós e Oséias denunciavam os ricos por ignorarem os pobres.
Assim, surgem duas correntes bíblicas sobre os bens nas escrituras
hebraicas e persistem até o Novo Testamento. Primeiramente, os bens são bons
quando servem como instrumentos e expressões da dignidade humana que recebemos como
filhos de Deus. Em segundo lugar, numa comunidade baseada na fé em um Deus que
é misericordioso e compassivo, ninguém deveria sofrer com a falta de alguma
coisa.[i]
O Novo Testamento também tem uma visão prática dos bens. Uma grande
riqueza é vista com ceticismo que nasceu da experiência. Jesus viveu num tempo
onde existia uma grande divisão entre ricos e pobres. Ter muitos bens exige sua
atenção nas coisas, não em Deus. “Onde está o seu tesouro, está o seu coração”.
As pessoas que possuem muita colheita necessitam construir muitos celeiros, em
vez de pensarem sobre o destino de suas almas. Aqueles que pisam em Lázaro e em
suas feridas para entrarem nos salões do banquete estão também muito
preocupados para ouvirem a voz da profecia. Aqueles que encontram conforto e
poder naquilo que possuem podem estar cultuando a riqueza como se fosse seu
Deus.
Estes são os exemplos de Jesus sobre riqueza e bens. Eles são
pragmáticos e baseados na experiência. “Algumas de suas intuições mais
explícitas sobre os bens são estabelecidas no contexto de metáforas sobre
viagens”.[ii] Carregue apenas um cajado. Muita riqueza é
simplesmente muita bagagem. O jovem rico foi embora muito triste – tinha muita
bagagem. Zaqueu, buscando a aprovação de Jesus, dá metade de suas riquezas.
Caminhar nas pegadas de Jesus é uma jornada de fé e de serviço. Devemos
estar livres para esta jornada. Esta realidade influencia as parábolas de Jesus
sobre os bens:
“Se alguém quer me seguir, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e me
siga. Pois, quem quiser salvar a sua vida, vai perdê-la, mas quem perde a sua
vida por causa de mim e da Boa Notícia, vai salvá-la. Com efeito, que adianta
ao homem ganhar o mundo inteiro, se perde a própria vida?” (Mc 8,34-36).
Quando os discípulos hesitam, imaginando que se arriscaram muito, Jesus
lembra mais uma vez o chamado da liberdade:
Pedro começou a dizer a Jesus: “Eis que nós deixamos tudo e te seguimos”.
Jesus respondeu: “Eu garanto a vocês: quem tiver deixado casa, irmãos, irmãs,
mãe, filhos, campos, por causa de mim e da Boa Notícia, vai receber cem vezes
mais. Agora, durante esta vida, vai receber casas, irmãos, irmãs, mãe, filhos e
campos, junto com perseguições. E, no mundo futuro, vai receber a vida eterna”
(Mc 10,28-30).
O pensamento de Jesus é claro: “O que chamamos de pobreza evangélica é
aquilo que os evangelhos chamam de colocar de lado qualquer coisa que nos
impeça de seguir Jesus. Jesus era totalmente livre, livre para seguir a
orientação do Espírito, livre para trilhar pelas margens da sociedade de seu
tempo, livre para estar em comunhão com os pobres, livre para tocar naqueles
que precisavam de cura, livre para acolher a raiva e a violência, livre para
ouvir a voz de Deus”.[iii]
A Bíblia fala positivamente do pobre, mas não da pobreza. Os pobres são
o objeto da compaixão de Deus e, por isso, deveriam ser do interesse do povo de
Deus. Aos olhos da Bíblia os pobres têm uma vantagem sobre os ricos: é menos
provável que eles sejam seduzidos por uma profusão de bens. Por estarem
indefesos e vulneráveis sua única força é Deus.
Assim, as raízes bíblicas da pobreza são simples. Bem-aventurados os
pobres porque deles é o reino de Deus. Bem-aventurados os que têm fome de Deus
e de seu reino que colocam de lado todos os empecilhos, toda bagagem e seguem
Jesus para a realização de suas esperanças.
Existem duas motivações bíblicas óbvias para deixarmos de lado os bens.
Primeiro, o voto de pobreza nos permite a liberdade de colocarmos o excesso de
nossos bens à disposição dos necessitados. Segundo, o voto nos torna livres
daquelas posses que poderiam nos impedir de seguir Jesus.[iv]
Na Regra, a pobreza aparece no n. 12. A visão é aquela das primeiras
comunidades apostólicas cujo objetivo é preservar o bem comum. A pobreza em si
não é o ideal. O bem de todos os irmãos e irmãs é o ideal. Portanto,
partilhamos o que temos uns com os outros de modo que ninguém tenha necessidade
de qualquer coisa.
Contudo, o bem comum em si não é um tipo de comportamento nivelador ou
cego de modo que a singularidade de cada pessoa se perca ou desapareça sob uma
monotonia ou uniformidade superficial. O objetivo de partilhar todas as coisas
em comum é colocado no contexto onde também saibamos reconhecer as necessidades
individuais – “conforme cada qual estiver precisando, levando-se em
consideração as idades e as necessidades de cada um”.[v] A Regra nos desafia a assumir nossa
responsabilidade em determinar o que precisamos e avaliá-las no contexto das
necessidades da comunidade.
O voto, em seu ideal e em sua realidade, nos une à esfera econômica da
vida humana. Cada ser humano estabelece algum tipo de relacionamento com o
mundo econômico. Universalmente as pessoas tendem a medir o sucesso na vida
através deste relacionamento. O que eu ganho na esfera econômica? De quantas
maneiras posso ser dominado pelo mundo que me rodeia? A minha doação é benéfica
ou maléfica, libertadora ou escravizante?
Ao professarmos a pobreza não escapamos destas perguntas e da luta que
elas representam. Estamos simplesmente dizendo que, através de nossa profissão
para ser verdadeiramente humanos, queremos partilhar o que temos, viver
simplesmente, desenvolver um espírito de desprendimento e sermos solidários com
os necessitados e pobres de fato.
Partilhar
Partilhar não significa necessariamente dar um testemunho poderoso, mas
é uma prática que nos une e nos ensina sobre nossa dependência de Deus e dos
outros. A solidão e a indiferença mútua que experimentamos algumas vezes na
vida comunitária estão muitas vezes relacionadas com questões envolvendo os
bens comunitários. Muitos bens e conveniências pessoais embaralham nossas
mentes e nossos corações e nos afastam de qualquer necessidade sentida na vida
comunitária. A necessidade de partilhar nossos bens, de chegar a um acordo em
nossas preferências, de estar satisfeitos com o bem-estar comum – tudo isso
proporciona várias oportunidades para aquele apoio e desafio que são a essência
da vida comunitária. A partilha dos bens por sua vez, proporciona um meio de
também partilhar os interesses, as preocupações, as memórias, as aspirações e a
oração.
Viver de modo simples
Viver de modo simples em nosso mundo consumista é um grande desafio.
Muitos bens materiais podem nos provocar o esquecimento de quem nos fez e do
porquê estamos aqui. Uma vida mais austera abre perspectivas, novas ou
esquecidas no conhecimento de Deus. Libertados das distrações e da busca
ilusória de nossos pequenos confortos e luxos, permanecemos diante de Deus um
pouco mais como somos – como seres humanos com fome de Deus, necessitados da
misericórdia de Deus, nunca realizados ou satisfeitos a não ser em Deus (vacare
Deo).
A austeridade de vida nunca é fácil para um indivíduo ou para uma
comunidade. Cada grupo etário, cada tipo de personalidade, cada cultura humana
tem seus pontos fortes e suas fraquezas neste domínio. É um desafio avaliar
continuamente nosso estilo de vida, com respeito uns pelos outros e fazer cada
vez as mudanças necessárias que nos levarão para mais perto de Deus, dos outros
e do povo de Deus ao nosso redor.
Ser desapegado
O voto de pobreza sem uma simplicidade material é certamente
considerado suspeito. Contudo, a observância fiel do voto não pode ser medida
em termos puramente econômicos. O significado mais profundo de nosso voto de
pobreza nos desafia a um desapego, tanto espiritual como material. Nos
capítulos 1-8 de seu livro Noite Escura, João da Cruz descreve enfaticamente a
transformação a qual Deus nos chama através deste espírito de desprendimento.
Freqüentemente, de modo inconsciente e sutil, possuímos (ou somos
possuídos por) funções, hábitos, tarefas, pessoas e lugares. É normal para nós
reafirmarmos nossos sentimentos de segurança e de auto-estima em tarefas
especiais, às quais nos apegamos tenazmente, ou em rotinas e práticas que
canonizamos desnecessariamente, ou em instituições que controlamos, ou em
lugares especiais dos quais pensamos não poder nos afastar. Tais ligações são
geralmente o resultado de grande dedicação e compromisso. Mas o compromisso
paralisa quando não está aberto à mudança. O que começou como um bem torna-se
prejudicial – para nós pessoalmente e para a missão de nossa comunidade. Ele
nos impede de ouvir novos chamados e de experimentar novos desafios. Nossa
ligação excessiva com um bem muitas vezes não nos deixa livres para muitos
outros bens.
Tais ligações com coisas não-materiais são difíceis de se identificar e
de se enfrentar. Freqüentemente os outros as percebem em nós antes do que nós
mesmos. O espírito de obediência nos desafia a ouvir os outros quando eles nos
questionam. O espírito de pobreza nos desafia a deixar tais posições e nos
promete uma nova liberdade.
Ser solidário
A pobreza voluntária não pode estar separada ou independente da pobreza
involuntária experimentada por tanta gente do povo de Deus em nosso planeta. Se
estamos realmente caminhando nas pegadas de Jesus, então o interesse dele pelos
pobres, pelos sofredores e fracos de nosso mundo deve tornar-se também nosso.
Jesus viveu no meio de pessoas que eram consideradas impuras: publicanos,
pecadores, prostitutas, leprosos (Mc 2,16. 1,40; Lc 7,37). Ele reconheceu a
riqueza e o valor que os pobres possuíam (Mt 11,25-6; Lc 21,1-4). Ele os
proclamou felizes porque o Reino é deles, dos pobres (Lc 6,20: Mt 5,3). Ele
definiu sua missão como “anunciar a Boa Notícia aos pobres” (Lc 4,18). Ele
mesmo viveu com os pobres, sem possuir nada, nem mesmo uma pedra onde repousar
a cabeça (Lc 9,58). Ele ordenou, a quem quisesse segui-lo, que escolhesse Deus
ou o dinheiro (Mt 6,24). Ele ordenou fazer uma opção pelos pobres (Mc 10,21).
Como realizamos isto?
Em primeiro lugar, um grande desafio para nós é redirecionar nosso
trabalho nos ministérios atuais. Justiça para os pobres – aquela justiça que é
“parte essencial do evangelho”[vi] – deveria ser uma preocupação em tudo o que
realizamos. Quando trabalhamos entre os saciados e os ricos, o desafio é
motivá-los a ajudar, a ampliar seu pensamento e a estimular sua boa vontade. Os
trabalhos em nossas paróquias, escolas, etc., precisam envolver também os
participantes ricos, para que eles possam experimentar realmente os problemas
dos pobres e dos marginalizados.
Um segundo caminho é nossa própria experiência direta, trabalhando com
os pobres. Conviver e olhar nos olhos, uns dos outros, é absolutamente
necessário. Podemos não resolver os problemas das pessoas, mas podemos aprender
a ficar mais perto e a sentir mais profundamente as dores daqueles que não
receberam tantos privilégios quanto nós. O tempo real que gastamos trabalhando
lado a lado, muitas vezes nos abre os olhos e os corações para os problemas.
Assim, o processo para crescer no amor de Jesus pelos pobres é, paradoxalmente,
aprender como ser pobre com os próprios pobres. Eles podem nos formar na dependência
radical em Deus que este voto testemunha.
Provavelmente o modo mais importante de viver este voto é ser solidário
com os pobres. A carência material é um mal. Não queremos idealizá-la, mas
superá-la tão eficazmente quanto possível. Não podemos fingir sermos exatamente
como os pobres. Mas podemos conhecê-los e partilhar seus interesses e seus
fardos mais plenamente. Nossa educação e influência como religiosos podem
ajudar a dar voz e compreensão à luta dos pobres. A experiência única que eles
têm de Deus e da divina providência é um presente para nós. Temos muito a dar e
a receber uns aos outros. Este é o significado da solidariedade – “permanecemos
juntos como Maria permaneceu com João aos pés da cruz e experimentamos uma nova
fonte de poder”.[vii] Tal postura é observada em nossa tradição
carmelitana. Estaremos realmente próximos de Jesus na medida em que
experimentarmos esta transformação em nossa solidariedade para com o pobre.
Quanto mais estivermos perto dos pobres, experimentaremos esta transformação em
nosso relacionamento com Jesus.
CASTIDADE: Um Amor
Transformador
A Bíblia tem uma visão muito positiva da sexualidade. Não no seu
sentido romântico, mas como uma expressão humana vital do poder criador de
Deus. A visão bíblica era “crescer e multiplicar”. Por isso, as crianças –
especialmente o filho, numa cultura de aldeia patriarcal – eram não apenas um
sinal de bênção e de segurança, mas uma expressão de obediência.
A infecundidade e a esterilidade, por outro lado, eram uma maldição e
um motivo para alguém ser ridicularizado. A Bíblia não traz hinos sobre a
virgindade e poucas palavras de elogio à vida celibatária. Mais típico é o
doloroso quadro de Ana, desfeita em pranto ao orar no santuário de Silo,
implorando a Deus para livrá-la da vergonha da esterilidade. Então, onde
encontramos um fundamento bíblico para o voto de castidade?
Desde o início da história cristã, aqueles que escolheram a castidade
celibatária recorreram a dois textos como a base bíblica para esta decisão.
Mateus 19 e 1Coríntios 7. Em Mateus, Jesus proclamou seu ensinamento sobre o
matrimônio e aparentemente anulou a possibilidade do divórcio. Os discípulos
atordoados dizem a ele: “‘Se a situação do homem com a mulher é assim, então é
melhor não se casar’. Jesus respondeu: ‘Nem todos entendem isso, a não ser
aqueles a quem é concedido. De fato, há homens castrados, porque nasceram
assim; outros, porque os homens os fizeram assim; outros, ainda, se castraram
por causa do Reino do Céu. Quem puder entender, entenda’” (Mt 19,10-12). Ainda
que o estudo bíblico moderno sugira que esta passagem está mais relacionada com
o casamento do que com o celibato, muitos sentem que ela ainda é um importante
indício para um fundamento bíblico do voto.[viii]
Nesta passagem de Mateus, a frase chave é por causa do Reino do céu. A
noção sugerida no texto grego não é a de que alguém se torna eunuco para ir
para o Reino, mas que o reino fez algo para que a pessoa se tornasse um eunuco.
“Em outras palavras, a lei de Deus – Deus – apodera-se de uma pessoa com uma
paixão tão forte, tão dominante que ela toma conta da vida desta pessoa, a leva
a uma decisão que a Bíblia dificilmente pode contemplar (e diante da qual os
discípulos hesitam)”.[ix]
Na passagem de 1Coríntios, Paulo tem um enfoque semelhante. Ao nos aproximarmos
do fim dos tempos, “quem não tem esposa, cuida das coisas do Senhor”. Ele diz
isso a eles não para armar uma cilada, mas “para que possam permanecer sem
distração junto ao Senhor” (1Cor 7,32-35). Assim, um enfoque semelhante é dado:
a castidade celibatária torna-se uma opção cristã apenas porque a ardente
paixão por Deus toma conta da vida da pessoa.
Tal fundamento lógico tem uma base espiritual sólida. As pessoas
estéreis que lamentam seu vazio e sua esterilidade descobrem que Deus preenche
suas vidas. Deus tira a vergonha de Ana; Deus sopra vida no útero de Isabel; e
o Espírito de Deus leva vida ao útero de Maria. A única paixão que pode
substituir a paixão do amor sexual é a paixão da fé. Assim, as escrituras
sugerem que o voto de castidade, como os votos de obediência e de pobreza,
“tira seu significado radical do vibrante elo primordial entre Deus e o fiel”.[x]
A Regra primitiva não menciona a castidade ou o celibato. Ela assume
que a obediência no seguimento de Cristo ipso facto significa viver uma vida
casta. A castidade é mencionada especificamente na adaptação da Regra pelo papa
Inocêncio.[xi] Pouco mais é escrito, a não ser na passagem
do n. 19. O objetivo da Regra é tentar estabelecer estruturas (por exemplo,
silêncio, jejum, autoridade) que sustentarão o discipulado fundamental que os
carmelitas buscam. Caminhar nas pegadas de Jesus nos chama para aquela busca
concentrada do reino de Deus que o voto de castidade possibilita e testemunha.
O celibato consagrado, ao qual o voto de castidade nos chama, é um
aspecto da vida religiosa que é distinto do caminho para o qual todos os
discípulos são chamados. O celibato religioso foi descrito por Sandra
Schneiders[xii] como um ícone, uma abertura no mistério de
Deus. Este mistério nunca é plenamente revelado nem compreendido. Contudo, ele
transmite aquele Deus misteriosamente presente no mundo. O amor celibatário na
sua melhor forma evangeliza por sua absorção total em Deus, e por sua inclusão
e seu extravasar do eu no outro. O celibato consagrado aponta para a irrupção
do reino de Deus e para a totalidade de suas exigências.
A castidade celibatária trata da esfera pessoal ou doméstica de nossas
vidas. Aqui o sucesso ou a realização na vida é muitas vezes medido em termos
de relacionamentos íntimos. Que tipo de companheiros tenho e o que significo
para eles? Quem conheço e como? Como me relaciono comigo mesmo e com meu corpo?
Meus relacionamentos humanos e íntimos são libertadores ou escravizantes de
alguma forma?
Ao professar a castidade celibatária, os religiosos não escapam destas
questões e da genuína luta humana que elas representam. Ao professar buscar
este relacionamento exclusivamente com Deus em sua vida, a pessoa não evita a
profunda solidão ou o vazio que o fato de estar sem um parceiro permanente, ou
uma família, carrega em si. Na verdade, a experiência da castidade celibatária
é a de trabalhar com este vazio durante toda a vida da pessoa. Não é necessário
dizer que existem muitos outros tipos de relacionamentos e de responsabilidades
que aparecem em nosso caminho através da liberdade que o voto de castidade nos
dá. Mas podemos esperar que nosso desejo e nossas necessidades por
relacionamentos humanos serão, pelo menos às vezes, particularmente intensos.
Os religiosos que não vivem um amor intenso por Deus encontrarão o
vazio esmagador. Freqüentemente eles procuram outras compensações: carreira,
trabalho, conforto, bens, relacionamentos que comprometem potencialmente seu
voto. Outros ficam deprimidos e retraídos na comunidade, severos e frios no ministério.
Este é um voto perigoso. David Fleming, S.M., afirma: “Nenhum nível de
maturidade, nenhuma técnica de desenvolvimento humano e religioso, nenhuma
combinação de ministério e de amizade nos isolarão da dor e do desafio do
celibato por causa do Reino”.[xiii]
Que oportunidades na vida religiosa estão disponíveis para nos ajudar a
viver este voto com integridade, humanidade e generosidade? Para viver a
castidade celibatária os religiosos devem crescer na compreensão de sua
corporeidade, devem desenvolver uma abertura para o relacionamento na sua
comunidade e nos ministérios e devem viver uma vida de contínua oração.
Nossa Corporeidade
No passado, numa tentativa de incentivar a castidade, parte de nossa
formação religiosa voltou-se para um tipo de angelismo. Nem sempre houve um
reconhecimento e uma apreciação positiva das necessidades de nossos corpos.
Quando nos relacionamos com outras pessoas, sempre o fazemos através de
nosso corpo. É importante para nós voltar ao contato com a expressão natural do
corpo e não negar seu valor como parte da criação de Deus. O voto de castidade
não elimina nossa expressão corporal.
Sentir e tocar (um tapinha nas costas, um abraço, um aperto de mão
caloroso, um beijo) são uma parte natural do relacionamento humano. As culturas
variam muito no significado de tais gestos, mas em toda cultura o corpo exerce
um papel importante ao expressar calor e afeição. Quando se reprime a expressão
corporal somos tentados à sensualidade e ao erotismo compulsivos que poderiam
ser expressos, por exemplo, na masturbação compulsiva ou no vício da
pornografia. A melhor ajuda para a castidade não é a inibição, mas um zelo
contínuo e respeitoso por nossas necessidades físicas e psíquicas. Este zelo se
manifesta em comportamentos como: uma dieta saudável, exercícios regulares,
repouso adequado, relaxamento e recreação. Quando este zelo é parte da vida
celibatária, nossos corpos se tornam parte de uma pessoa madura, percebida como
um todo, como um canal de encanto e de graciosidade.
Um respeito maduro e equilibrado por nossos corpos é parte do
agradecimento pela criação da santidade unificada à qual somos chamados. Tais
atitudes sustentam nossa vivência do voto em vez de miná-la. Elas são ajudas
importantes à castidade. O voto de castidade não é um voto de ignorar o corpo.
“Ele é certamente um voto onde se canalizam as energias criativas e
significativas de nossos corpos para a vida de santidade”.[xiv]
Para viver o voto de castidade devemos crescer na aceitação e no
respeito de nossos corpos. Este crescimento inclui aceitação e respeito por
nossa sexualidade e por nossos desejos sexuais. Um desafio quando se busca
integrar o próprio desejo por uma união sexual com outra pessoa, desejo este
que pode ser muito poderoso. No entanto, tais desejos são parte da ação de Deus
em nós. Eles não podem ser negados ou ignorados sem nos causarem problemas mais
profundos. É valioso para nós refletirmos se existe um medo exagerado ou um
puritanismo sobre a dimensão do corpo em nossas vidas. Em vez de reprimir
qualquer interesse ou atenção pelo corpo humano (o nosso próprio corpo ou o
corpo de outra pessoa), devemos aprender a sermos gratos e felizes por esta
parte da criação de Deus. O resultado pode ser um relaxamento maior e uma
atenção maior ao que nosso corpo nos diz sobre o todo de nossa natureza
corpo-espírito. Se isto ocorreu, então de fato, seremos mais plenamente templos
do Espírito Santo.
Relacionamentos em Comunidade e
Ministérios
A intimidade humana é essencial para vivermos uma vida de castidade
celibatária. Ser íntimo é deixar outra pessoa participar de nossa vida de tal
modo que sua presença se torna uma parte do que somos. Isto aprofunda nossa
auto-estima. A intimidade envolve uma certa morte para o eu e amar nosso
próximo como a nós mesmos. Os relacionamentos são complicados e não saímos bem
deles sem cicatrizes. Já que a intimidade é perigosa, temos muitas maneiras de
nos proteger e de nos defender contra ela. Contudo, alguns relacionamentos
íntimos são necessários para uma vida plenamente integrada e generosa.
Evidentemente a intimidade na vida religiosa é mais difícil do que na
vida do leigo. Quanto mais próximos ficamos de uma pessoa, mais difícil é
deixá-la ir. Contudo, o amor celibatário, em sua universalidade, implica na
disposição de deixar muitas pessoas entrarem em nossas vidas mas também na boa
vontade de deixá-las sair. Já que o processo de deixar partir é muito doloroso,
os religiosos podem ter a tendência de desenvolver uma forte resistência à
qualquer tipo de intimidade.
Além disso, a intimidade por sua própria natureza pede uma expressão
física. Assim, o desenvolvimento da intimidade dentro de uma comunidade
religiosa celibatária ou num ambiente ministerial pode criar, às vezes, uma
tensão com respeito à expressão física que também será dolorosa e difícil de
ser tratada. O que fazer? O caminho mais fácil seria evitar a intimidade em vez
de desenvolver atitudes e comportamentos apropriados para a intimidade
celibatária. Para evitar a intimidade usamos a repressão e a compensação que
são reações psicologicamente doentias. O que ocorre então é o retraimento da
intimidade e o investimento de nossa auto-estima em coisas, não em pessoas:
trabalho, papéis, funções, realizações, conforto, etc.
Jesus não tinha medo da intimidade. Ela estava presente em muitos de
seus relacionamentos: com os discípulos, com Marta e Maria, com Lázaro. A
intimidade, incluindo a intimidade com o próprio Senhor, é um fato marcante nas
vidas de muitos santos como Teresa e João da Cruz. O ideal deste voto é
valorizar a intimidade com muitas pessoas, especialmente com os menores: os
pobres, os doentes, as crianças, os deficientes. Assim, a vivência da
intimidade dentro de uma vida religiosa celibatária torna-se um compromisso de
solidariedade com os pobres, os sofredores, os marginalizados.
O religioso celibatário pode viver uma genuína vida de intimidade. Mas
a consciência da sexualidade deve estar integrada com o desejo de viver o amor
universal, integrador, redentor e piedoso de Cristo.
Oração
A experiência religiosa, cultivada numa vida consistente de oração, é a
chave para a vivência significativa da castidade. Deus é o relacionamento
permanente e mais importante em nossas vidas. Assumir o voto significa que
nenhum ser humano é mais importante para nós do que Deus. É claro que este fato
é verdadeiro para todos os seres humanos, mas a vida religiosa estimula a
experiência de nossa solidão fundamental, tornando-o mais evidente e óbvio.
Uma vida de oração proporciona a oportunidade de experimentar este Deus
que nos chamou a partilhar nosso eu com todos. Vamos para Deus com a
experiência deste chamado em todas as suas ramificações: alegria e sofrimento,
intimidade e vazio. Este tipo de vida é assumido adequadamente apenas na fé,
certos de que Deus nos transformará. Apenas Deus fará de nosso coração uma
fonte doadora de vida, desinteressada, aberta ao amor universal.
Uma vida de oração permite que continuemos a crescer nesta
transformação e conscientização. Ser fiel à oração proporciona a oportunidade
de estar em contato com o desejo que temos por Deus e com o desejo de Deus por
nós assim como com as racionalizações e compensações que desenvolvemos para
preencher a solidão. Basicamente, oramos porque sabemos que precisamos de Deus.
Precisamos que Deus nos preencha e transforme nosso amor, para que ele possa
ser libertado para interesses mais amplos e vastos em nosso mundo.
A castidade celibatária é um dom no qual crescemos. É um processo de
crescimento perpétuo, não um voto que é medido apenas pelo fato de sermos ou
não castos. É verdade que a atividade genital é algo que fazemos ou não. Mas,
além disso, este voto é um chamado viver apenas para Deus, crescendo em nossos
relacionamentos, tanto com companheiros religiosos como com o povo a quem
servimos, buscando a integração mais profunda de todas as dimensões de nossa
humanidade, canalizando nossas tendências para a sexualidade e criando
relacionamentos que sejam um dom genuíno e saudável do eu para outras pessoas.
Tudo isto exige crescimento constante e é uma experiência contínua que levamos
a Deus em nossa oração.
Deus transforma nosso amor pelo bem do reino. Deus usa nosso amor para
transformar o mundo. Este processo não é angelical. É humano. Oramos como
pessoas corporificadas. Oramos com as experiências de relacionamentos que temos
em comunidade e no ministério. Levamos todas estas experiências para nosso
relacionamento com Deus e é lá que elas são transformadas na energia e na
generosidade que Deus necessita no nosso mundo.
OBEDIÊNCIA- A Escuta como
Transformação
A forma mais radical de obediência na Bíblia é a escuta fiel da voz de
Deus que vem a nós através da comunidade, através de nossos mestres e líderes e
através dos fatos da história. Deuteronômio 6,4-9 é a expressão perfeita da
virtude bíblica da obediência.
Ouça, Israel! Javé nosso Deus é o único Javé. Portanto, ame a Javé seu
Deus com todo o seu coração, com toda a sua alma e com toda a sua força. Que
estas palavras, que hoje eu lhe ordeno, estejam em seu coração. Você as
inculcará em seus filhos, e delas falará sentado em sua casa e andando em seu
caminho, estando deitado e de pé. Você também as amarrará em sua mão como
sinal, e elas serão como faixa entre seus olhos. Você as escreverá nos batentes
de sua casa e nas portas da cidade.
Este credo, o famoso Shema, capta concisamente a noção judaica de como
a vida dos judeus é totalmente centrada em Deus. Por Israel estar tão
convencido da presença amorosa de Deus na história, por estar tão agarrada à
realidade de Deus, sua única resposta é aquela de obediência reverente e de
abertura confiante na direção amorosa de Deus feitas diariamente.
As grandes figuras do Antigo Testamento nos mostram que este tipo de
obediência é um desafio. O exemplo de obediência radical destas figuras pode
coexistir com a confusão e a ira diante dos caminhos misteriosos de Deus. Por
exemplo, Moisés, que tira suas sandálias em reverência diante da presença de
Deus na sarça ardente, também pode quebrar as tábuas de Deus com ira diante da
estupidez do povo de Deus e dos confusos caminhos de Deus. O Salmista, cuja
poesia lírica louva o poder e a grandeza criadora de Deus, também pode captar a
raiva e a frustração diante das exigências de Deus. Jeremias, o profeta que
fala de Deus como um fogo ardente em seus ossos, também pode chamar Deus de um
rio enganador que corre para o deserto apenas para desaparecer em terras
áridas. A obediência é uma experiência humana e multidimensional.
No Novo Testamento, Jesus se torna a plena expressão da obediência. Ele
conhecia o poder da fé bíblica. Jesus foi o único Filho em quem Deus
permaneceu. Ele foi plenificado com o Espírito de Deus, buscando muitas vezes a
comunhão silenciosa com seu “Abba”. No evangelho de João ouvimos muitas vezes
sua confiança de conhecer Deus e de ser conhecido por Deus. Contudo, antes do
mistério da paixão e da morte, Jesus também se tornou o Filho obediente de
Deus, enquanto esbravejava contra a escuridão e o silêncio da voz de Deus: “Meu
Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” (Sl 22,1).
Jesus lutou para ser fiel ao Pai: “Embora sendo Filho de Deus, aprendeu
a ser obediente através de seus sofrimentos” (Hb 5,8). Ele fez muitas orações
para se tornar capaz de conquistar esta posição (Hb 5,7; Lc 22,41-6). Mas ele
não foi conquistado. Ninguém, nenhuma autoridade em qualquer época foi capaz de
interferir neste segredo mais profundo de Jesus. Aqueles que tentaram
interferir chocaram-se com uma parede impenetrável. Ele foi obediente até a
morte, e morte de cruz (Fl 2,8).
A comunhão entre Jesus e o Pai não foi automática, mas sim o fruto da
luta que Jesus travou dentro de si mesmo para obedecer ao Pai em tudo e para
estar sempre unido a ele. Jesus disse: “Eu não posso fazer nada por mim mesmo.
Eu julgo conforme o que escuto” (Jo 5,30). “O Filho não pode fazer nada por sua
própria conta; ele faz apenas o que vê o Pai fazer” (Jo 5,19). Como e onde
Jesus viu e ouviu o que o Pai queria dele? Como a vontade do Pai se manifestou
a Jesus?
Em primeiro lugar, Jesus descobriu a vontade do Pai assumindo sua
condição de pobre. O que para alguns era a condenação do destino, para Jesus
era a manifestação da vontade do Pai. Jesus nasceu pobre. Continuar ao lado dos
pobres foi a decisão do Filho querendo ser obediente ao Pai até a morte e
“morte na Cruz”.
Em segundo lugar, Jesus descobriu a vontade do Pai nas Sagradas
Escrituras e na história de seu povo. Jesus buscou as Escrituras como a fonte
da autoridade (Lc 4,18). Ele se orientou através das profecias do Servo de Deus
e do Filho do Homem para realizar sua missão como Messias (Mc 1,11; 8,31). Foi
nas Escrituras que ele encontrou as respostas contra as tentações que
experimentou. “Não faço nada por mim mesmo, pois falo apenas aquilo que o Pai
me ensinou” (Jo 8,28). A Boa Nova do Reino foi e continua sendo, antes de mais
nada, a face do Pai a ser revelada ao povo, especialmente aos pobres.
Assim, a obediência bíblica é elaborada no contexto das escolhas da
vida real. O sofrimento, as frustrações, a aridez espiritual, são preços a
serem pagos. Mas o povo das Escrituras apega-se ferozmente à sua fé na
realidade da presença de Deus na história, sua história pessoal.
Os carmelitas entram nesta tradição bíblica da obediência em seu voto.
Pelo voto, que está enraizado no chamado para a obediência absoluta dirigida
igualmente a cada cristão no batismo, o religioso carmelitano situa seu total
compromisso com a vontade de Deus no contexto de uma comunidade que caminha nas
pegadas de Jesus Cristo.
A Regra (n.º 22 e n.º 23) propõe como assumir esta obediência. Alberto
se refere ao ofício do prior, que é apresentado primeiramente no n.º 4. Aqui o
ofício do prior foi estabelecido num nível estrutural para a boa ordem da
comunidade. Contudo, nos nn. 22 e 23 o prior e a comunidade têm que descobrir
Cristo na “mútua co-responsabilidade da obediência”.[xv] Alberto nos recomenda ver Jesus Cristo como o
único centro de nossas vidas. Permanecer em nossas celas é “permanecer na
vinha”. Aprendendo a não possuir nada, experimentamos como Jesus não possuía
lugar para recostar sua cabeça. Celebrando juntos a Eucaristia, nos tornamos
pedras vivas com Cristo como a pedra fundamental. Quando nos reunimos no
capítulo e na correção fraterna, ele está em nosso meio.[xvi] Basicamente, somos obedientes ao poder do
Espírito de Cristo manifestado em nós mesmos, em nossa comunidade e sob sua
liderança.
No nível do humano, o voto de obediência levanta a questão de como
usamos nosso poder e nossa liberdade, tanto comunitária como pessoalmente. A
última metade do século XX viu a queda do patriarcado como vimos nos anos 60 e
70 com as revoltas estudantis, nos blocos comerciais unindo muitas nações
ocidentais, o fim dos regimes coloniais, militares e outros regimes repressores
e o crescimento do feminismo. Concomitantemente, este período também
testemunhou um individualismo excessivo e uma obsessão pela auto-realização,
especialmente no hemisfério ocidental, que causou forte impacto em muitas
partes do mundo.
Estes fatores históricos e culturais influenciam nossa compreensão e o
exercício do poder,[xvii] a esfera política da vida, que interfere no
voto de obediência. Ao assumir este voto nos confrontamos com as mesmas perguntas
que qualquer outro ser humano faz. Que poder tenho sobre os outros? Que esforço
comum posso utilizar? Qual minha contribuição para a vida da sociedade e da
comunidade? Qual minha influência em determinar direções comuns? Embora todos
os cristãos se engajem nestas questões, o contexto em que elas se realizam
varia muito. Para os religiosos, o contexto é a comunidade com a qual estão
comprometidos.
Professando a obediência os religiosos dizem que querem usar sua
capacidade de dialogar com os outros na busca pela vontade de Deus. O poder
deles é mais humano e eficaz quando ouvem e agem de acordo com as inspirações
pessoais que Deus lhes oferece. Estas inspirações vêm através de muitos meios.
Basicamente, a obediência vem pela ponderação da Palavra de Deus e pelos sinais
da presença de Deus em nosso mundo, de acordo com nossos irmãos e irmãs no
Carmelo e com aqueles que escolhemos para liderar a comunidade.
Em primeiro lugar, a obediência exige um confronto contínuo com a
Palavra de Deus. As Escrituras, refletidas individual e comunitariamente, nos
dão acesso à revelação da presença de Deus no meio das comunidades
judeu-cristãs do passado. É a revelação de como Deus se comunicou com seu povo
e é uma fonte de discernimento da presença de Deus entre nós hoje. Devemos
conhecer as Escrituras com nossos corações e nossas mentes para penetrar no
coração e na mente de Deus.
Em segundo lugar, a vontade de Deus também está presente nos sinais dos
tempos. A meditação da Palavra de Deus deve ser feita no contexto de nossa
realidade para conhecermos a vontade de Deus. Nossas circunstâncias históricas
devem dialogar com as Escrituras, para discernirmos o lugar para onde a
obediência nos chama. Estas circunstâncias históricas têm muitos níveis: o
individual/pessoal, o apostólico, a comunidade local e provincial, as
lideranças locais e provinciais e o social. Qualquer uma destas áreas pode
exigir mais atenção e significado numa determinada hora, dependendo da
situação. Então a obediência se torna mais desafiadora e o discernimento da
vontade de Deus requer maior disciplina e humildade.
Num terceiro ponto vemos que a obediência se realiza no diálogo com
nossa comunidade e sua liderança. O chamado para a vida comunitária é
fundamental para o carisma carmelitano. Desse modo, acreditamos que o Espírito
de Deus se move através da voz coletiva da comunidade e daqueles que escolhemos
para liderá-la. Qualquer discernimento da vontade de Deus deve incluir
necessariamente nossa escuta da comunidade. Além disso, a obediência religiosa pode
ser um verdadeiro testemunho evangélico, pela compreensão do poder que ela
transmite, especialmente em nossas estruturas governamentais. Muitas
comunidades, principalmente as congregações femininas, estão trabalhando rumo a
estruturas mais participativas. Surgem novos modelos de governo, tais como
grupos regionais que se encontram regularmente, capítulos onde todos os membros
participam ativamente, líderes engajados num processo comunitário de tomar
decisões. Desta forma, eles revelam uma maneira diferente de exercer o poder e
a autoridade, longe do antigo modelo hierárquico e patriarcal. Estes modelos
participativos permitem que cada membro possa discernir a vontade de Deus assim
como exercer o poder coletivo na comunidade.
A liderança em tais modelos é realmente um chamado ao serviço (Lc
22,26-27). Ela exige um novo jeito de administrar a complexidade da vida
religiosa, a habilidade em conduzir a atenção da comunidade para uma visão
partilhada que unirá os esforços individuais, inspirados pela missão da
província e da comunidade local, e a capacidade de formular estratégias para
alcançar tudo isso.[xviii] Esta liderança pede a habilidade de entender
as estruturas subjacentes, os modelos e as forças que devem ser avaliados para
se ir de um ponto ao outro.
Finalmente, a obediência é realmente o cultivo de uma união amorosa com
Deus. Esta união se torna a base de todas as nossas escolhas que, por sua vez,
nos une profundamente com Deus. Ao estarmos conscientemente mais unidos com
Deus, começamos a ver tudo com os olhos de Deus e a buscar a verdade no amor.
Em muitas circunstâncias pode existir apenas uma escolha para nós. No entanto,
em outras situações podem existir várias escolhas. Nem sempre existe uma
escolha que é melhor do que as outras. Nem é o caso de Deus ter pré-julgado o
que devemos fazer. Buscar a vontade de Deus, obedecer a Deus é fazer as
escolhas e tomar a decisão mais amorosa que podemos em qualquer momento. A
longo prazo, a obediência consiste formalmente no como e no porquê fazemos uma
certa escolha, em vez de o que realmente escolhemos.[xix]
Como carmelitas caminhando nas pegadas de Jesus Cristo, a obediência
deveria nos levar à liberdade para escolher a vida como Jesus o fez. Em
qualquer circunstância em que ele se encontrava – na festa de casamento em
Caná, com a samaritana junto ao poço, na morte de seu amigo Lázaro ou na sua
própria morte – ele escolheu fazer a vontade de seu Pai, mesmo quando ele não a
compreendia. O contexto no qual buscamos a vontade de Deus é essencialmente
contemplativo. É um meio de sondar e procurar, um modo de escutar e de orar que
é transformador. Os anseios do Espírito de Deus em nós, a comunidade, a
liderança comunitária, o povo e o tempo ao qual servimos, deveriam nos levar a
uma maior generosidade e liberdade, para melhor testemunharmos a presença
amorosa de Deus no mundo.
[i] D. Senior, C. P. “Vivendo neste ínterim:
princípio bíblico para a vida religiosa”. Em P. Philibert, O.P., (ed.), Vivendo
neste ínterim. Mahwah, NJ: Paulist Press, 1994, p. 63.
[vii] D. A. Fleming, S.M. Anotações do peregrino:
uma experiência de vida religiosa. Maryknoll, NY: Orbis, 1992, p. 35.
[xv] Kees Waarjman, O.Carm., A identidade
carmelitana a partir da perspectiva da Regra, 13º Conselho das Províncias
(Nantes). Publicações Carmelitanas: Melbourne, 1994, p. 48.
[xvii] Congregação para Institutos de Vida
Consagrada e Sociedades de Vida Apostólica. Diretivas sobre a formação nos
institutos religiosos, # 12. Origens, 19 (20 de março de 1992).
[xviii] D. Nygren e M. Ukeritis, ‘O futuro das ordens
religiosas nos Estados Unidos’. Origens 22 (1992), 267. Os autores relatam que
a incapacidade de formular uma estratégia para alcançar um propósito ou uma
missão é a fraqueza mais surpreendente entre os líderes atuais.
[xix] S. M. Schneiders, I.H.M. Odres novos:
Reimaginando a vida religiosa hoje. Mahwah, NJ: Paulist Press, 1986, p. 142.
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