*A ORAÇÃO NA VIDA CARMELITANA: Reflexões e textos de autores carmelitanos sobre a Comunhão com Deus e
a Oração no Carmelo(1ª Parte).
De: Edith Stein (“Na força da Cruz”, São Paulo, 1984)
Será que é impossível dispor
de urna horinha de manhã, na qual sem distração se recolhe, na qual, sem
consumir-se, procura-se ganhar força para passar o dia inteiro? Sim, exige-se
mais do que uma hora. Deve-se viver de uma tal hora para outra de um jeito em
que se possa retomar. Não há mais possibilidade para um caminhar sem objetivo,
nem por tempo limitado. Não podemos nos esquivar do juízo daqueles com quem nos
relacionamos diariamente. Mesmo que nenhuma palavra seja trocada, percebemos a
atitude dos outros para conosco. Tentaremos acomodar-nos ao ambiente e, quando
isto não é possível, a convivência torna-se então um martírio. Desta forma,
sentimos também a convivência diária com o Senhor! A sensibilidade torna-se
cada vez mais aguçante para aquilo que Lhe agrada ou não. Se antes eu me
encontrava mais ou menos satisfeito comigo mesmo, a situação agora muda.
Acha-se tanto o que é mau, e procura-se mudar na medida do possível.
Descobre-se algo que se pode achar feio e ruim e também a dificuldade em mudar.
Aí então, pouco a pouco, ficamos muito pequenos e humildes, pacientes e indulgentes
contra os ciscos em olhos alheios, porque ainda temos muito trabalho com a
trave no nosso próprio olho. Aprendemos finalmente também a suportar-nos a nós
mesmos na luz inexorável da presença divina e a entregar-nos à misericórdia
divina, que poderá sanar tudo isso, que é tão impossível para nossas forças. WS
22
Pode-se mostrar ainda como o
domingo deveria ser uma porta larga, pela qual pudesse entrar vida eterna para
os dias da semana e força para o trabalho da semana inteira, e como as grandes
festas, os tempos de festas e tempos de jejum, vivenciados no espírito da
Igreja, fazem amadurecer o homem de ano para ano mais e mais para a eterna paz
do Sabbat. Será tarefa essencial de cada um de nós refletir como planejar o
decurso do dia e do ano, conforme dotes e estilo de vida de cada um de nós,
para preparar os caminhos do Senhor. A distribuição externa deverá ser
diferente para cada um e no decorrer dos anos deverá acomodar-se elasticamente
à variedade das situações. Também a situação íntima da alma vária na
diversidade das pessoas. Os meios ideais para estar em sintonia com o Eterno,
para ficar atento ou também para renovar-se — como meditação, leitura
espiritual participação litúrgica, devoções populares, etc. — não são todos
igualmente de proveito para cada um e em todas as fases e épocas. A meditação,
por exemplo, não pode ser exercida por todos e sempre de maneira igual. É
importante encontrar, no entanto, o mais eficaz e dele tirar proveito. WS 49
Existem, evidentemente, dois
caminhos para a união plena com Deus e com isso para a perfeição do amor: um
subir penoso, feito alpinista, por esforço próprio, logicamente com a ajuda
divina da graça, e “um ser carregado para o alto, que requer muito estorço
próprio, cuja preparação e conseqüência íntima exigem, no entanto, enormes
esforços da vontade própria. WP 50
Na infância da vida
espiritual, quando iniciamos entregar nos à direção de Deus, aí sentimos a mão
que guia bem forte e firme. Claro como o sol, está diante de nós o que devemos
fazer ou deixar de fazer. Más isto não fica sempre assim. Quem pertence a
Cristo, deve viver total e inteiramente a vida de Cristo. Ele deve crescer na
maturidade de Cristo e também galgar o caminho da cruz, indo por Getsêmani e
Gólgota. E todos os sofrimentos vindos de fora não são nada em comparação com a
noite escura da alma, quando a luz divina não mais ilumina e a voz do Senhor já
não fala mais. Deus está aí, mas Ele está escondido e fica em silêncio. WS l8f
E um caminho longo de
auto-satisfação de um “bom católico” que “cumpre seus deveres”, lê um “bom
jornal”, “vota corretamente”, etc., mas de resto faz o que lhe agrada, até uma
vida na mão divina e pela mão divina, na simplicidade da criança e na humildade
do cobrador de ônibus. Mas quem percorreu uma vez esse caminho, não dá mais um
passo para trás. WS 22 f
Por natureza, nosso interior é
plenificado por muitas maneiras. Tanto é que um fato sempre reprime o outro e o
mantém em constante movimento, muitas vezes em tempestade e tumulto. Quando
pela manhã acordamos, deveres e preocupações do dia já nos querem cercar (caso
já não tiverem atrapalhado a tranqüilidade do sono da noite). Aí aparece a
inquietante pergunta: Como poderei vencer isso tudo num só dia? Quando poderei
fazer isto. quando aquilo? E como poderei resolver isto, como aquilo? A gente
gostaria de agitar e começar tempestivamente. Mas significa que devemos tomar
as rédeas na mão e dizer: Devagar! Em primeiro lugar, agora nada deverá
perturbar-me. Minha primeira hora matutina pertence ao Senhor. “Quero iniciar o
trabalho do dia-a-dia que ele me manda fazer. E Ele me dará a força paia
executá-lo. Assim desejo caminhar para o altar de Deus. Ali não se trata de
minhas pequenas preocupações, mas sim, do grande sacrifício de reconciliação,
WS 46f
Agora começa o trabalho do
dia: talvez servir na escola quatro ou cinco horas, uma atrás da outra.
Significa estar atento e presente ao que se está fazendo, pois cada hora tem
sua tarefa diferente. Nessa ou naquela hora (escolar) não se consegue o que se
queria, talvez em nenhuma. Cansaço próprio, interrupções imprevistas, algo do
que as crianças não entendem, alguns dissabores, algo revoltante, algo
angustiante.
Ou serviço burocrático:
relacionamento com propostos e colegas desagradáveis, exigências não
satisfeitas, censuras injustas, miséria humana, talvez necessidades várias. Vem
a hora do almoço. Chega-se em casa exausto e cansado e esperam-se eventualmente
novas improcedências. Onde está agora a renovação da alma, vivida na manhã? De
novo queremos ferver e estourar; indignação, aborrecimento, arrependimento. E
tanto ainda por fazer até a noite: Não devemos ir logo adiante? Não, enquanto
não tiver encontrado novamente por um momento a serenidade e a paz. WS 47f
Quando o intelecto alcança o
seu máximo, ele chega aos seus próprios limites. Ele tenta encontrar a verdade
mais sublime e última, e descobre que todos os nossos conhecimentos são apenas
fragmentos. Então, quebra-se o orgulho e enxergamos duas coisas; ou ele cai no
desespero ou coloca-se em humildade e temor diante da verdade impenetrável e
recebe, humildemente na fé, o que não pode ser conquistado pela” atividade
natural do intelecto. Então o intelecto chega, na luz da verdade divina, à
correia sintonia para com seu próprio intelecto. Ele enxerga que as verdades mais
sublimes e últimas não podem ser desvendadas por intelecto humano e que nas
questões mais essenciais, e por isso na forma e comportamento da vida prática,
uma simples criança pode estar em situação superior ao maior sábio pela
iluminação mais sublime. Por outro lado, ele reconhece a esfera legítima da
atividade intelectual natural e cumpre aqui seu trabalho, como o agricultor
lavra seu campo, como algo que é bom e útil, mas que é cercado por limites
estreitos como toda e qualquer obra humana.
Quem chegar a tal ponto, não
olhará mais as pessoas “de cima para baixo”. Ele terá aquele sentimento humano
simples e natural, a profunda modéstia sem hipocrisia, que atravessa todas as
barreiras livre e desimpedidamente. Ele poderá falar sem medo sua linguagem intelectual
em meio do povo, porque lhe é tão natural como a do povo e porque ele
manifestadamente não o sobreestima. E ele poderá seguir seus problemas
intelectuais, porque faz parte de seu ambiente natural. Ele usará o seu
intelecto da mesma forma que o carpinteiro — mão e plaina — e, quando puder ser
útil aos outros com seu trabalho, estará sempre pronto para ajudar. E, como
todo trabalho honesto, que é feito pela vontade divina e para glória de Deus,
também esse pode ser um instrumento de santificação. Assim me imagino Santo
Tomás de Aquino: um homem que tinha recebido de Deus como seu tesouro um
extraordinário intelecto para com ele pulular; que caminhara silenciosamente e
sem exigências o seu caminho e se aprofundara nos seus problemas enquanto o
deixava em paz; sempre pronto a quebrar a cabeça, dando as devidas informações,
quando lhe faziam perguntas difíceis. Assim ele se toma um dos maiores guias,
justamente porque não desejara. WS 74f
Cada um deve conhecer a si
mesmo para saber onde e como poderá encontrar a serenidade e a paz. O melhor é
jogar todas as preocupações, por curto tempo, diante do Santíssimo, frente ao
Sacrário, para quem não é possível, para quem é necessário talvez um repouso
corporal, uma pausa em seu próprio quarto. E quando não há possibilidade para
um repouso exterior, porque não existe lugar para onde se retirar, quando
deveres irrecusáveis impedem a hora silenciosa, pelo menos fecharemos o nosso
interior por um momento contra todo resto e nos refugiaremos no Senhor. Ele
está aí e nos oferece nesse único momento aquilo de que precisamos. Assim
continuará o resto do dia, talvez com muito cansaço e labuta, mas tranqüilo e
em paz. E, quando a noite vier e mostrar o retrospecto de que tudo só fora algo
em pedaços e muita coisa ficou para fazer do que se pretendia, e (anta coisa
nos chama para a vergonha e arrependimento, então, tudo aceitar como é: colocar
nas mãos de Deus e entregar-Lho. Assim se poderá repousar nEle, descansar de
verdade e começar o novo dia como uma nova vida. WS 48
Ninguém penetrou de uma tal
forma nas profundezas da alma como aquelas pessoas que abraçam o mundo com um
coração cheio de calor e então, libertadas, pela mão forte de Deus, de todo
laço externo, foram atraídas para o próprio íntimo é interior. Ao lado de Teresa
de Ávila está aqui, em primeiro lugar, Santo Agostinho que com ela se parece
profundamente e por isso tanto a influenciou. Para estes mestres do
auto-conhecimento e auto-apresentação iluminaram-se as misteriosas profundezas
da alma: não somente os fenômenos, a movimentada superfície da vida da alma
constituíram o inegável fato experimentar, mas também as forças, que ativam
conscientemente a vida da alma e, finalmente, até a essência de Deus. WS 66f
O caminho para a vida interior
é Cristo. Seu sangue é a cortina, pela qual entramos no santíssimo da divina
vida. No batismo e no sacramento da penitência Ele nos purifica do pecado,
abre-nos os olhos para a luz eterna, torna atentos os ouvidos para colher a
palavra divina e os lábios para o louvor, oração de expiação, pedido e
agradecimento - todas formas diferentes de adoração; isto é, a criatura presta
homenagem diante do Onipotente e do infinitamente Bondoso. No sacramento do
crisma, Ele confirma e fortifica o militante de Cristo para a franca e corajosa
confissão. Antes de tudo, no entanto, é o sacramento no qual o próprio Cristo está presente e nos torna
membros de seu corpo. Compartilhando o sacrifício e a cela, alimentados pela
carne e sangue de Jesus, nós mesmos nos tornamos sua própria carne e seu próprio
sangue. Na medida em que somos membros de seu corpo, pode animar-nos o espírito
de Jesus e em nós reinar. WS43
No diálogo silencioso de
pessoas consagradas a Deus antecipam-se os acontecimentos visíveis da história
da igreja, os quais renovam a face da terra. A Virgem, que conservava cada
palavra em seu coração, é exemplo das pessoas que escutam e nas quais o coração
sacerdotal de Jesus se repete sempre de novo. Mulheres, que se esqueciam de si
mesmas na imitação da vida e sofrimento de Cristo, o Senhor as escolhia de
preferência como instrumento para grandes obras na Igreja: uma Santa Brígida,
Catarina de Sena e Santa Teresa, a grande reformadora de sua ordem em tempo de
grande perda da fé, a qual, querendo ajudar a Igreja, via como meio eficaz para
tal a verdadeira renovação da vida interior. WS 36f
O ponto central da alma é o lugar de onde se escuta a voz da
consciência, é o lugar da livre decisão pessoal. Porque a entrega livre e
pessoal é assim e porque é essencial para a união amorosa com Deus, por isso o
lugar da decisão livre deve ser ao mesmo tempo o lugar da união livre com Deus.
Daí se entende também por que Teresa de Ávila vê na entrega da vontade ao
Divino o mais fundamental para a união com Ele: a entrega de nossa vontade é o
que Deus exige de todos nós e é o que podemos produzir. Ela é a medida de
santidade. Ao mesmo tempo, ela é a condição para a união mística, sobre a qual
não temos poder, mas é graça pura e livre de Deus. Por isso temos também a
possibilidade de fazer da nossa alma o ponto central, de formar a si mesmo e
sua vida, sem ter também recebido especificamente a graça da mística. WP 67f
Dentro da Igreja existem experiências comunitárias de formas variadas:
devoção, entusiasmo, obras de misericórdia, etc., mas a Igreja não deve a todos
eles sua existência. E sim, que cada um de modo singular situa-se diante de
Deus na força contrária ou unida da liberdade divina e humana, em que lhe é
dada a força de estar ao lado de todos. E esse “cada um por todos e todos por
um” faz com que a Igreja seja Igreja. Quanto mais alguém é plenificado pelo
amor divino, tanto mais ele estará capacitado a entrar em substituição de cada
um. WP 163
Na aridez e no vazio, a alma
tornar-se-á humilde. O orgulho anterior desaparece, quando não se encontra mais
nada dentro de si, que poderia ser motivo de olhar com certo desprezo para com
os outros. Pelo contrário, agora os outros parecem-nos muito mais perfeitos.
Amor e estima despertam o coração por eles. Estamos agora por demais
preocupados com a nossa própria miséria para olharmos para os outros. Pelo
desamparo e abandono, a alma torna-se submissa e obediente; ela anseia por
aconselhamento para chegar ao caminho certo. KW 47
O espírito e voto quer dizer
não somente o intelecto, mas também o coração está familiarizado por ocupar-se
continuamente com Deus, ele O conhece e O ama. Esse conhecimento e amor fazem
parte de seu ser, como o relacionamento de duas pessoas que convivem há longo
tempo juntas intimamente familiarizadas. Tais pessoas não precisam mais de
informações sobre a outra pessoa para se conhecerem mutuamente e convencerem-se
de sua amabilidade. Quase não precisam trocar palavras. Cada nova convivência,
no entanto, traz para elas um novo despertar e um crescimento de amor, talvez
um conhecimento mais profundo de alguns traços novos. Mas isto acontece
automaticamente, não precisando de maior esforço. Assim também é a convivência
de uma alma com Deus, depois de longo exercício na vida espiritual. Ela não
precisa mais de meditar, para conhecer a Deus e aprender a amá-Lo. O caminho já
está muito atrás dela, pois ela repousa nEle. Assim que ela começa a orar, está
em Deus e permanece, pela entrega amorosa, em sua presença. O silêncio da mesma
Lhe agrada mais do que muitas palavras. kw
103
É graça, quando nos alcança o
anúncio da fé, a divina verdade revelada. E graça, que nos oferece a força para
colher o anúncio da fé — mesmo que seja exigida de nós a decisão livre — e com
isso crescer na fé. Sem a ajuda da graça não existe oração e não é possível meditação.
Mesmo assim, exige-se a nossa liberdade e opera-se com a ajuda de nossas
próprias forças. Depende também de nós, se de que maneira e quanto tempo
demoramos em oração. KW103
A poderosa realidade do mundo
natural e de graças sobrenaturais deve ser movida por meio de uma realidade
mais poderosa ainda. Isto acontece na noite passiva (da alma), pois sem ela a
ativa nunca poderia chegar à meta. A mão forte do Deus vivo deve interferir
para soltar a alma dos laços de tudo que foi criado e para atraí-la a si. Esse
intervir é a escura e mística contemplação, ligada à privação de tudo aquilo
que até agora fora luz, sustento e consolo. kw
106
A alma se entrega a Deus para
operar nela aquilo que Ele deseja com tais comunicações sobrenaturais. Assim
mesmo, permanecerá na escuridão da fé, porque ela não somente aprendeu mas
experimentou que tudo isto não é Deus, que ela, no entanto, possui tudo na fé o
que lhe é preciso: o próprio Cristo, que é eterna sabedoria, e nEle o Deus
incompreensível. Ela estará pronta para tal renúncia e perseverança na fé tanto
mais quanto estiver purificada pela noite escura. kw 108
Porque o intelecto natural não
pode compreender a luz divina, deve o mesmo ser guiado pela contemplação na
escuridão. KW 114
Por isso, a alma pode
considerar a aridez e a escuridão quais sinais felizes: sinais que Deus está
operando nela, libertando-a de si; Ele tira das mãos suas forças da alma.
Certamente ela poderia ter trabalhado muito com isso, mas jamais tão perfeita,
segura e firmemente como agora, quando Deus a tomou na mão. Ele a guia como a
um cego por caminhos escuros sem e/a saber onde e para onde - por caminhos que
e/a mesma no caminhar mais feliz com o uso de seus próprios olhos e pés Jamais
poderia ter encontrado. Com isso ela progride muito, sem poder ainda imaginar a
si mesma, pois se encontra na convicção de estar perdida. KW 122
Já se tem pronunciado o
pensamento de que os sofrimentos da “noite escura” participam do sofrimento de
Cristo, em especial do sofrimento mais profundo: o abandono de Deus. “O canto
espiritual” (de São João da Cruz) deu sua impressionante confirmação, porque
aqui o desejo ardente pelo Deus escondido é o sofrimento que domina
integralmente o caminho místico. Nem mesmo acaba na beatitude de união dos
noivos; até aumenta com o crescimento do conhecimento e do amor divinos, porque
com os mesmos pressentimos cada vez maiores o que a clara contemplação de Deus
na glória nos poderá trazer. kw 227
*Encontros de Espiritualidade Carmelitana das Irmãs Carmelitas da
Divina Providência. JULHO - 1986 - Rio Janeiro.
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