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quarta-feira, 22 de julho de 2015

*O Bem Morrer: Um olhar sobre a dualidade entre vida e morte na história do Brasil.

Beatriz de Vasconcellos Dias Miranda

Este texto toma como fontes para estudo os testamentos que estão registrados no Livro dos Defuntos da Freguesia de Nossa Senhora da Conceyção de Ibitipoca (1750/1779). Os testamentos são importantes fontes documentais, ricos em informações sobre a preparação da boa morte, da organização social e das vivências religiosas.  Para este trabalho escolhemos especificamente três testamentos: o de Diogo Gomes Pereira (1771), de João Gomes da Silva (1772) e de Manoel Gomes da Costa (1771)
No final do século XVII os paulistas encontraram ouro em Minas, em função disso o eixo da vida da Colônia deslocou-se para o centro sul, especialmente para o Rio de Janeiro. A economia mineradora gerou uma certa articulação entre áreas distantes da colônia , na medida em que se expandiu nas regiões de Minas, de Mato Grosso e Goiás.
            Para alcançar Minas Gerais e permitir mais fácil acesso às minas criaram-se estradas: o Caminho dos Currais do Sertão para a Bahia, o Caminho Velho que ligava o rio das Mortes e o arraial da Vila Rica aos portos de Santos e Parati, e o Caminho Novo para o Rio de Janeiro, passando pelos rios Paraibuna, Irajá e Iguaçu.Esta última acabou se tornando a estrada mais importante e mais utilizada na medida em que o Rio de Janeiro era a capital do Vice-Reino e por ser o caminho por onde entravam escravos e suprimentos e por onde saía o ouro das minas.
            Diferentemente do resto da colônia, Minas se distinguiu pela formação urbana: a proibição de lavouras que concorressem com a extração mineradora fez da região um extenso mercado consumidor, isso associado à possibilidade de negócios internos com ouro em pó resultaram na proliferação de mercadores, negociantes, artesãos, boticários, taberneiros, estalajeiros, advogados, barbeiros, e tropeiros.A vida social concentrou-se nas cidades, centro de residência, de negócios, de festas, nelas se formou uma sociedade diferenciada.
            A vila de Nossa Senhora da Conceição de Ibitipoca foi criada ainda no século XVII e fazia parte deste circuito de vilas de Minas Gerais que surgiram no roteiro do ouro que partia de Taubaté. Em agosto de 1750 foi criado o curato de N. Sra da Conceição de Ibitipoca desmembrado da freguesia de Borba do Campo. A sua igreja matriz é de 1768.
            Nessa sociedade colonial morrer era tão natural quanto viver. A morte espreitava o dia a dia: em função das precárias condições de higiene, das dificuldades da vida e dos poucos recursos da medicina a expectativa de vida era baixa, de aproximadamente 45 anos. Além disso, a mortalidade infantil era muito alta: metade das crianças morria antes de completar 10 anos de idade e dessas 68% morriam antes de 1 ano.
            Assim, a morte fazia parte do cotidiano das pessoas, convivia-se com ela e não era possível esquecê-la. Os homens sentiam sua própria limitação diante das dificuldades da vida: a chuva, a seca, o fogo, os animais, as epidemias, as doenças. Diante desses desafios, entre todas as respostas, a explicação religiosa era a que ocupava posição de destaque.  Os homens de então acreditavam que as dificuldades e desafios da vida aconteciam por vontade divina, assim, o melhor era rezar, fazer jejuns, procissões e outras manifestações de temor e adoração a Deus e aos santos para garantir proteção. Por tudo isso, as pessoas se preocupavam com o bem morrer, ou seja, em ter uma boa morte.
            A cultura funerária da época mesclava tradições portuguesas e africanas. Nessas culturas era recorrente a idéia de que o indivíduo devia preparar-se para morrer, arrumando bem a sua vida, acertando contas com os santos de sua devoção ou fazendo sacrifícios para os seus deuses ancestrais.  Nesse processo de preparação para o bem morrer um momento importante era o da elaboração do testamento.
            Morrer subitamente era uma lástima, “a boa morte era a esperada, a vagarosa, de modo a permitir que a pessoa colocasse em ordem os assuntos terrenos, se arrependesse de seus pecados e tomasse providências para que a alma ficasse pouco tempo no purgatório e se encaminhasse ao paraíso.”  Escrever o próprio testamento era um procedimento importante, nele o testador estabelecia suas últimas vontades, acertava a vida, dizia como desejava ser enterrado.
            Os testamentos eram registrados nos Livros dos Defuntos das igrejas, o mesmo no qual se registravam os óbitos. Até a República, todos os registros da vida civil eram feitos pela Igreja: o nascimento era registrado pela certidão de batismo, casamento era o religioso e a morte era registrada pelo recebimento dos últimos sacramentos e pelo testamento.Era a celebração religiosa, com o devido registro, que dava legitimidade a esses atos.
Os testamentos eram redigidos segundo uma forma comum, obedecendo a certa padronização: uma parte dedicada às questões religiosas e outra às materiais, constituía um instrumento legal. Começavam com um preâmbulo no qual se especificava a data, o nome do testador, a razão de ser do testamento e o local no qual era registrado:
“Saibam quantos este instrumento de testamento, e ultima vontade virem como anno do Nascimento de Nosso senhor Jesus Christo de mil sete sentos, e sententa e dois aos des dias do mês de janeiro do dito anno navizinhança da Capella de Sta Rita felial da Borda do campo eu João Gomes da Silva estando em meu perfeito Juizo e entendimento q’ Nosso senhor medeo doente de enfermidade q’o mesmo senhor foi servido darme tendome da morte e desejando pôr minha alma no caminho da salvação por não saber o q’o Nosso senhor demim disporá, e quando será servido levarme para si faço este testamento na forma seguinte...”
            Pelo texto acima podemos verificar que a razão de se fazer o testamento é o fato de que, em função da doença, a morte se tornou uma possibilidade concreta. Como dissemos anteriormente, em função das precárias condições da medicina da época, a certeza da morte era muito maior do que a da cura.Assim era preciso estar pronto para a morte, caso ela chegasse. Tanto quanto o tempo pertencia a Deus (... anno do nascimento de Nosso senhor...), assim também a vida de cada homem. Todas as coisas eram compreendidas como parte da vontade divina: a morte, mas também a doença e até a possível cura.A doença era vista, em geral, como um castigo de Deus para o pecador e, portanto, a cura só aconteceria se fosse vontade divina. Por isso era preciso rezar, fazer penitência, mas estar atento para a possibilidade da morte.
            A morte era entendida como uma passagem a caminho do céu, o paraíso. Mas em função dos pecados o espírito logo depois da morte do corpo, ia para o purgatório, situação intermediária entre o céu e o inferno, onde o espírito sofreria ardendo no fogo purificador, pagando suas penas pelos pecados veniais cometidos em vida e que tornaria possível a sua passagem para o paraíso.
A provação do purgatório poderia ser abreviada pela ajuda dos vivos através dos sufrágios  que supõem a formação de longas solidariedades de um lado e de outro da morte, relações estreitas entre vivos e defuntos.  Instituições de ligação entre vivos e mortos foram estabelecidas para garantir a prática dos sufrágios, entre essas estava o testamento.
O moribundo se preocupava em “pôr a alma a caminho da salvação” por isso, fazer o testamento, e nele especificar todas as providências a serem tomadas depois da sua morte, era um ato da maior importância.
            O homem sozinho, por si próprio, não poderia garantir a sua salvação. Sentindo-se impotente diante do poder julgador de Deus solicitava a intercessão dos anjos e dos santos para agirem como seus advogados na hora do julgamento divino. A esses intercessores as pessoas encomendavam a própria alma:
            “Primeiramente encomendo a minha alma a santíssima trindade q’(sic) eterno Padre pela morte e paixão de seu unigênito filho aqueira receber e a Virgem Maria senhora nossa e ao Arcanjo São Miguel ea todo os santos e ao Sto de meu nome q’he de João sejão meus intercesores qdo minha alma deste mundo partir para q foi creada, porq como verdadeiro Christão protest viver, e morrer na Sta fé catholica e crer tudo o q tem, ecre a Sta Madre Igreja Catholica Romana.”
            Assim, já no testamento o fiel encomendava a alma aos santos da sua devoção e reafirmava a sua fé na Igreja Católica e nos seus ensinamentos doutrinários. Isso era importante porque a concepção de Igreja vigente desde o Concílio de Trento era a de Igreja sociedade perfeita e único sinal de salvação presente no mundo. Por isso, afirmar a fé na Igreja era também garantir a própria salvação.
Entre todos os santos gostaríamos aqui de destacar a devoção a São Miguel Arcanjo que foi muito difundida na América portuguesa porque era visto como o árbitro das almas no purgatório, personificando a luta entre as forças do mal e as do bem. Encomendar a alma a este santo era importante porque poderia diminuir o tempo que a alma passaria no purgatório, dirigindo-se mais rapidamente ao céu.
Outra devoção popular era a Nossa Senhora, de tal forma que estava presente no imaginário, nos sermões, nas preces, como titular das igrejas e capelas. A intercessão da Santa era pedida em todos os momentos da vida e na hora de encomendar a alma. Assim encontramos as devoções a N. Sra do Bom Parto, N. Sra do Leite, N. Sra das Graças, N Sra dos Remédios, N Sra da Ajuda e N. Sra da Boa Morte.
O ardor da fé é perceptível também nas determinações do testamentário quanto ao seu enterro: o local, o tipo e a cor da mortalha, o lugar do sepultamento, as missas para a própria alma. Muitas vezes determinavam até o padre e as pessoas que acompanhariam o cortejo fúnebre: “Meu corpo será sepultado dentro da Igreja Matriz desta Fregª, ou emoutra qualquer Capela mais visinha onde eu faleser, amortalhado em abito de S. Francisco, avendo-o, e não se podendo axar em um lensol, acompanhado plo Rdo Pároco, e os clérigos, q’na Fregª sepoderem ajuntar, a qm se dará a esmola costumada e todos dirão por mª alma Missa de Corpo prese, a qm se dará a esmola costumada e me farão um oficio de nove lisoins de corpo presente, e caso pr algum empedimento se não posa fazer de corpo presente, se fará logo no outro dia, ou terceiro, e caso eu falesa em outra pe onde aja maior Nº de clérigos, não exederá o nº de dês.”
            Na preocupação com o bem partir o fiel, no testamento, fazia a parte que lhe cabia garantindo os procedimentos necessários para a salvação da sua alma. No entanto, como tudo deveria ser providenciado após a sua morte contava para isso com a ajuda dos parentes e outras pessoas de confiança que fizessem cumprir suas últimas vontades. Pessoa importante era o testamenteiro, deveria ser de toda confiança para administrar honestamente a herança deixada pelo morto e para fazer cumprir as suas derradeiras vontades. Aquele que aceitasse ser testamenteiro era recompensado com um pagamento em rendas ou em espécie no valor que era antecipadamente estabelecido pelo moribundo. “Declaro q’nomeio pormeos Testamenteiros emprimo lugar ameu Irmão Manoel Gomes da Silva, em segundo lugar a Antonio Rodrigues da Costa, em terceiro lugar a João da Cunha e Souza (...)Declaro q’o testamenteiro q’aceitar onde eu falecer o constituo administrador dos meus bens em geral para administrar dispor cobrar, erremeter obrando tudo o que for precizo com todos os poderes gerais, e especiaes como baste procurador (...) e lhe deixo de premio pello seu trabalho sincoenta mil reis ...”

Entre as importantes recomendações deixadas pelos que estavam à morte estava a especificação do local a ser enterrado. Para nós hoje isso parece óbvio, mas naquele momento não, porque os cemitérios ainda não eram popularizados como hoje. As pessoas eram enterradas dentro das igrejas ou no terreno em volta destas. Em seu testamento Diogo Gomes Pereira pede para ser enterrado dentro da igreja matriz da freguesia em que mora o que evidencia que era uma pessoa de posição social privilegiada, uma vez que apenas as pessoas mais ricas eram enterradas dentro das igrejas  porque era preciso pagar por este direito, ou porque para ser enterrado na igreja matriz era necessário ser membro da Irmandade ligada aquela igreja e sendo a mais importante da cidade, estava restrita apenas às pessoas de melhor condição social. Os mais pobres e os escravos eram enterrados do lado de fora das igrejas, no adro.
Essa proximidade física entre mortos e vivos era desejada, pois quando os vivos fossem à igreja rezar, o cheiro dos mortos faria com que lembrassem que deveriam também orar para os que do mundo terreno partiam. Alguns achavam mesmo que o cheiro dos mortos era bom para os vivos, pois faria com que lembrassem também que o destino de todos era a morte.
Segundo os costumes do Brasil colonial a pessoa era enterrada diretamente na terra, embrulhada em um lençol e usando uma roupa própria para o momento da morte, a mortalha. Ainda nesse gesto deixava-se evidenciar a fé e o desejo de ser mais facilmente aceito no céu, já que era comum as pessoas pedirem para serem enterradas com o hábito de uma Ordem religiosa, com o hábito usado pelo santo de sua devoção ou com o da Irmandade religiosa a que pertencia. Os hábitos mais valorizados eram os de S. Francisco de Assis e de Nossa Senhora do Carmo, irmandades mais importantes da época. Acreditava-se que com esse gesto o santo intercederia pelo morto: “Meu corpo sera emvolto emhabito de Nossa Senhora do Carmo, e em falta delle em hú lençol, e sepultado onde mais comodamente no adro da Igreja, ou capella mais vizinha donde for meu falecimento.”
E ainda: “Meu corpo sera sepultado dentro da Igreja Matriz desta fregª, ou emoutra qualquer capela mais visinha onde eu faleser, amortalhado em abito de S. Farncisco, avendo-o, e não se podendo axar em um lensol, acompanhado plo Rdo Pároco, e os clérigos, q’na Fregª sepoderem ajuntar, a qm se dará a esmola costumada e todos dirão por mª alma Misa de Corpo prese, a qm se dará a esmola costumada e me farão um oficio de nove lisoins (...)
Na hora da morte a presença do padre era importante, vista como uma graça, para garantir que o doente receberia os últimos sacramentos: penitência, comunhão e a extrema-unção. Arrependido de seus pecados e em dia com os sacramentos o fiel aumentava as suas chances de salvação, estava preparado para o momento final.A morte e o seu cerimonial traduzem bem a idéia corrente na época, de que ninguém poderia esperar obter a salvação sozinho: além do padre faziam-se presentes a família, os amigos mais próximos e os confrades da Irmandade. Essas eram presenças ativas, rezavam “com fervor para que o moribundo se saísse vitorioso nos últimos embates com o demônio.”
Cabia também ao padre celebrar a missa de corpo presente e tantas outras que seriam celebradas em memória do morto nos dias seguintes ao enterro. O bem da alma estaria assegurado pelo número de missas encomendadas, cantadas, com vésperas e ladainhas e outras com oficio de nove lições .
Depois de rezar a missa de corpo presente o padre, juntamente com a família, acompanharia o cortejo até o local do enterro, sempre rezando e pedindo pela salvação do morto. A presença do padre, como representante oficial do sagrado aumentava a possibilidade da salvação, por isso, um maior número de sacerdotes era desejável.
Assim como encomendar missas, dar esmola também era garantia de boa partida. A esmola para os pobres e para a Igreja era demonstração de caridade, generosidade, mas também de gratidão porque ao dar o fiel estava reconhecendo e retribuindo a gratuidade e as bênçãos recebidas de Deus em sua vida. A boa ação fazia o homem justo e digno da salvação oferecida por Deus. Dava-se esmolas aos pobres e fazia-se doações à Igreja e às Irmandades: “Declaro q’ sou irmão da irmande do Ssmo desta Fregª a qm rogo me acompanhem meu corpo a sepultura, e lhe fasaó os sufrágios do compromisso. Declaro, q’ meu corpo será conduzido na tumba da Irmande das Almas, acompanhada da mma Irmande, a qm se dará a Esmola de Compromisso. Declaro, q’taóbem devo para as obras da Capela de N. Sra do Rosário, q’se faz no Arral desta Fregª a qtia de vinte mil reis ...”
Vemos, portanto, que os testamentos exprimem os vínculos com o grupo social e o papel que tinha o morto no seio da sua comunidade . Praticamente todas as pessoas, pobres e ricas, livres e escravas pertenciam a uma irmandade. Em Minas Gerais as irmandades tiveram singular importância, nelas é que se manifestava o espírito religioso da população já que tinha nas cerimônias do culto sua ocupação predileta. A religião era divertimento, através das grandes festividades que se multiplicavam o ano todo e era também convívio.Promotoras da vida religiosa as irmandades também se ocupavam de papéis originalmente destinados ao Estado, tais como a construção de templos e cemitérios.
As irmandades tinham ainda como objetivo a prestação de assistência social e securitária a seus filiados através de diversos tipos de benefícios: auxílio à velhice, doença, sepultamento, celebração de missas.Isso era importante porque as despesas com todas essas coisas eram altas e podiam ser quase impossíveis para as pessoas pobres.
As irmandades, de modo geral, estavam identificadas com os grupos étnicos e sociais: Irmandade do Santíssimo Sacramento, Almas, Ordens Terceiras do Carmo e São Francisco eram dos homens brancos e em geral ricos. Irmandade de N. Sra do Rosário, São Benedito, Santa Efigênia dos negros. Irmandade de N. Sra das Mercês dos mulatos.Assim somos levados a acreditar que o nosso testamentário Diogo era pessoa de boa situação porque era membro das Irmandades do Santíssimo Sacramento e das Santas Almas. Ao fazer doações à Irmandade de N. Sra do Rosário parece que estava não apenas fazendo uma boa ação, mas também mantendo, mesmo depois de morto, o seu lugar de prestígio na sociedade em que vivia.
No testamento a pessoa enumerava os bens que possuía, algumas vezes especificava a origem desses bens, ou seja, se eram herdados ou adquiridos com o próprio trabalho e ainda a atividade que desempenhava. “Declaro, q’ao fazer deste me tttº mandei o meu camarada da Tropa pª as geraes dispor uma carregam de molhados, o q’se xama José Rodrigues Santarém, e tenho no caminho do Mato do Rio de Janiero outro carregam de sal, e molhados, q’o mesmo camarada dirá o q’é.Declaro q’ devo varias dividas por créditos, assim nestas Minas, como no Rio de Janº  “
            Diogo Pereira era comerciante tropeiro, proprietário de uma tropa de mulas para o transporte de mercadorias. Esta se tornou a principal forma de transporte terrestre com a descoberta do ouro em Minas Gerais. Esses comerciantes traziam as mercadorias do litoral (Rio de Janeiro) para o interior, pelo Caminho Novo. As mercadorias eram adquiridas dos grandes comerciantes na capital, conhecidos também como “negociantes de grosso trato”, que importavam os produtos da Europa e com os quais o tropeiro, muitas vezes contraía dívidas para pagar depois da venda dos produtos no interior.
            Comerciantes volantes, os tropeiros transportavam nos lombos das mulas os secos e molhados, esses últimos eram os produtos comestíveis que vinham de Portugal para Minas, tais como: vinagre, vinho, azeite, bacalhau, queijo flamengo, manteiga de Flandres, sal, pêra seca, passas, nozes, etc.
            Pouco se sabe sobre as origens social e econômica dos tropeiros, mas há indícios de que o comércio de mulas proporcionou para alguns rendimentos de vulto, transformando tropeiros em “homens bons” ou “principais da terra”. 
            A vida do tropeiro era cercada de aventura já que passavam a vida percorrendo os caminhos montanhosos entre Minas e Rio de Janeiro que eram, na maioria das vezes, perigosos. Esses homens estavam constantemente expostos a assaltos, animais selvagens e outros imprevistos, por isso, havia entre eles o temor de morrerem longe de casa e não estarem sob a proteção de alguma instituição que lhes permitissem os ritos necessários à elevação da alma na hora da sua morte. 
            Arrumar a vida antes de morrer era sinal de dignidade, assim reconhecer as dívidas era relevante num testamento. Além disso, acreditava-se que se o morto estivesse devendo dinheiro a alguém  e não providenciasse o pagamento antes de morrer, o credor iria amaldiçoá-lo, o que faria com que sua alma demorasse mais no purgatório.
            Aliviar a consciência e evitar ir para o inferno implicava em pagar as dívidas, reconhecer as faltas cometidas, reparar erros e injustiças ou ainda reconhecer a gratidão. Buscando praticar o derradeiro ato de justiça antes de morrer, muitos garantiam no testamento a alforria de seus escravos. Não a todos, mas aquele ao qual se devia algum agradecimento ou reconhecimento, como podemos ver, por exemplo, no testamento de Manoel Gomes da Costa: “Declaro que deixo ao meu escravo por nome Manoel Mina, forro, em atenção aos bons serviços que me tem feito, Declaro que deixo ao meu escravo Manoel Mina Barbeiro cortado em trinta mil reis pelo tempo de quatro annos epeço ao meu testamenteiro vide algum favor p’may comodamente poder satisfazer a referida quantia.”
            O momento de preparar-se para morrer permitia ainda um retrospecto da vida em que se desnudavam as relações sociais e familiares que a tinham marcado  e por isso os testamentos refletem essa necessidade de repartir corretamente os bens, reconhecer publicamente os herdeiros e a legitimidade do direito de herança.“Declaro q’tenho meu Irmão Manoel Gomes da Silva nestas minas, e em Portugal na freguesia onde nasci hua Irmã Por nome Custodia da Silva cazada com Domingos Martins estes dous Irmãos instituo p’meus erdeiros.”
            Algumas vezes o testamento era também o momento de reconhecer parentescos e relações não assumidos ou não legalizados: “Declaro q’sou casado por carta d’ametade com Maria Mora, de quem tenho uma filha por nome Francisca, e como foi tida antes do meu resebimento se lhes fes o asento do bautismo por engeitada, mas na realidade é ma filha, e como tal minha legitima erdeira.”
            Antes de morrer Diogo Pereira se preocupa em reconhecer publicamente o seu casamento e a paternidade de sua filha Francisca  que foi registrada como enjeitada por ocasião do seu batismo, ou seja, nasceu antes do casamento e naquele momento não foi reconhecida pelo pai. Estava, portanto, numa situação de ilegitimidade.
            O casamento considerado legítimo era aquele realizado na Igreja, dava respeitabilidade e prestígio e por isso mesmo, entre as pessoas ricas era um acordo entre famílias. No entanto, os acordos matrimoniais nem sempre correspondiam aos desejos dos noivos, que às vezes tinham feito outras escolhas.  Nesses casos “se o casal conseguisse provar que a honra da mulher tinha sido atingida então a única solução para remediar a situação era a autorização para casar apesar da oposição paterna”
            A situação de ilegitimidade da filha e o fato de Diogo ter se casado por carta d’ametade  com Maria Moreira nos faz pensar  que possivelmente não havia o desejo por parte de uma das famílias com o casamento. Viver maritalmente antes do casamento, inclusive com o nascimento de uma filha, dava conhecimento público à relação. Essa foi muitas vezes uma estratégia utilizada pelos casais cujos esforços para casar tinham encontrado a oposição familiar.
            Nessas situações a Igreja, na maioria das vezes, tomava a posição de obrigar o casamento para salvar a honra da moça e embora tenha insistido sempre na moralização e respeito ao sacramento do matrimônio o concubinato era muito comum, em especial nos meios populares.

            Esse pequeno estudo quis destacar a riqueza dos testamentos registrados nos livros de óbitos que enquanto fontes eclesiásticas desvelam para nós não apenas as formas da organização institucional mas também a vivência religiosa, os ritos da vida privada, e ainda as relações familiares e sociais. A partir deles percebemos que a ordem das coisas visíveis partia também de compreensões do mundo invisível.  

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