Beatriz
de Vasconcellos Dias Miranda
Este texto toma
como fontes para estudo os testamentos que estão registrados no Livro dos
Defuntos da Freguesia de Nossa Senhora da Conceyção de Ibitipoca (1750/1779).
Os testamentos são importantes fontes documentais, ricos em informações sobre a
preparação da boa morte, da organização social e das vivências religiosas. Para este trabalho escolhemos especificamente
três testamentos: o de Diogo Gomes Pereira (1771), de João Gomes da Silva
(1772) e de Manoel Gomes da Costa (1771)
No final do
século XVII os paulistas encontraram ouro em Minas, em função disso o eixo da
vida da Colônia deslocou-se para o centro sul, especialmente para o Rio de
Janeiro. A economia mineradora gerou uma certa articulação entre áreas
distantes da colônia , na medida em que se expandiu nas regiões de Minas, de
Mato Grosso e Goiás.
Para
alcançar Minas Gerais e permitir mais fácil acesso às minas criaram-se
estradas: o Caminho dos Currais do Sertão para a Bahia, o Caminho Velho que
ligava o rio das Mortes e o arraial da Vila Rica aos portos de Santos e Parati,
e o Caminho Novo para o Rio de Janeiro, passando pelos rios Paraibuna, Irajá e
Iguaçu.Esta última acabou se tornando a estrada mais importante e mais
utilizada na medida em que o Rio de Janeiro era a capital do Vice-Reino e por
ser o caminho por onde entravam escravos e suprimentos e por onde saía o ouro
das minas.
Diferentemente
do resto da colônia, Minas se distinguiu pela formação urbana: a proibição de
lavouras que concorressem com a extração mineradora fez da região um extenso
mercado consumidor, isso associado à possibilidade de negócios internos com
ouro em pó resultaram na proliferação de mercadores, negociantes, artesãos,
boticários, taberneiros, estalajeiros, advogados, barbeiros, e tropeiros.A vida
social concentrou-se nas cidades, centro de residência, de negócios, de festas,
nelas se formou uma sociedade diferenciada.
A
vila de Nossa Senhora da Conceição de Ibitipoca foi criada ainda no século XVII
e fazia parte deste circuito de vilas de Minas Gerais que surgiram no roteiro
do ouro que partia de Taubaté. Em agosto de 1750 foi criado o curato de N. Sra
da Conceição de Ibitipoca desmembrado da freguesia de Borba do Campo. A sua
igreja matriz é de 1768.
Nessa
sociedade colonial morrer era tão natural quanto viver. A morte espreitava o
dia a dia: em função das precárias condições de higiene, das dificuldades da
vida e dos poucos recursos da medicina a expectativa de vida era baixa, de
aproximadamente 45 anos. Além disso, a mortalidade infantil era muito alta:
metade das crianças morria antes de completar 10 anos de idade e dessas 68%
morriam antes de 1 ano.
Assim,
a morte fazia parte do cotidiano das pessoas, convivia-se com ela e não era
possível esquecê-la. Os homens sentiam sua própria limitação diante das
dificuldades da vida: a chuva, a seca, o fogo, os animais, as epidemias, as
doenças. Diante desses desafios, entre todas as respostas, a explicação
religiosa era a que ocupava posição de destaque. Os homens de então acreditavam que as
dificuldades e desafios da vida aconteciam por vontade divina, assim, o melhor
era rezar, fazer jejuns, procissões e outras manifestações de temor e adoração
a Deus e aos santos para garantir proteção. Por tudo isso, as pessoas se
preocupavam com o bem morrer, ou seja, em ter uma boa morte.
A
cultura funerária da época mesclava tradições portuguesas e africanas. Nessas
culturas era recorrente a idéia de que o indivíduo devia preparar-se para
morrer, arrumando bem a sua vida, acertando contas com os santos de sua devoção
ou fazendo sacrifícios para os seus deuses ancestrais. Nesse processo de preparação para o bem
morrer um momento importante era o da elaboração do testamento.
Morrer
subitamente era uma lástima, “a boa morte era a esperada, a vagarosa, de modo a
permitir que a pessoa colocasse em ordem os assuntos terrenos, se arrependesse
de seus pecados e tomasse providências para que a alma ficasse pouco tempo no
purgatório e se encaminhasse ao paraíso.”
Escrever o próprio testamento era um procedimento importante, nele o
testador estabelecia suas últimas vontades, acertava a vida, dizia como
desejava ser enterrado.
Os
testamentos eram registrados nos Livros dos Defuntos das igrejas, o mesmo no
qual se registravam os óbitos. Até a República, todos os registros da vida
civil eram feitos pela Igreja: o nascimento era registrado pela certidão de
batismo, casamento era o religioso e a morte era registrada pelo recebimento
dos últimos sacramentos e pelo testamento.Era a celebração religiosa, com o
devido registro, que dava legitimidade a esses atos.
Os testamentos eram redigidos segundo
uma forma comum, obedecendo a certa padronização: uma parte dedicada às
questões religiosas e outra às materiais, constituía um instrumento legal.
Começavam com um preâmbulo no qual se especificava a data, o nome do testador,
a razão de ser do testamento e o local no qual era registrado:
“Saibam quantos este instrumento de
testamento, e ultima vontade virem como anno do Nascimento de Nosso senhor
Jesus Christo de mil sete sentos, e sententa e dois aos des dias do mês de
janeiro do dito anno navizinhança da Capella de Sta Rita felial da Borda do
campo eu João Gomes da Silva estando em meu perfeito Juizo e entendimento q’
Nosso senhor medeo doente de enfermidade q’o mesmo senhor foi servido darme
tendome da morte e desejando pôr minha alma no caminho da salvação por não
saber o q’o Nosso senhor demim disporá, e quando será servido levarme para si
faço este testamento na forma seguinte...”
Pelo
texto acima podemos verificar que a razão de se fazer o testamento é o fato de
que, em função da doença, a morte se tornou uma possibilidade concreta. Como
dissemos anteriormente, em função das precárias condições da medicina da época,
a certeza da morte era muito maior do que a da cura.Assim era preciso estar
pronto para a morte, caso ela chegasse. Tanto quanto o tempo pertencia a Deus
(... anno do nascimento de Nosso senhor...), assim também a vida de cada homem.
Todas as coisas eram compreendidas como parte da vontade divina: a morte, mas
também a doença e até a possível cura.A doença era vista, em geral, como um
castigo de Deus para o pecador e, portanto, a cura só aconteceria se fosse
vontade divina. Por isso era preciso rezar, fazer penitência, mas estar atento
para a possibilidade da morte.
A
morte era entendida como uma passagem a caminho do céu, o paraíso. Mas em
função dos pecados o espírito logo depois da morte do corpo, ia para o
purgatório, situação intermediária entre o céu e o inferno, onde o espírito
sofreria ardendo no fogo purificador, pagando suas penas pelos pecados veniais
cometidos em vida e que tornaria possível a sua passagem para o paraíso.
A provação do
purgatório poderia ser abreviada pela ajuda dos vivos através dos
sufrágios que supõem a formação de
longas solidariedades de um lado e de outro da morte, relações estreitas entre
vivos e defuntos. Instituições de
ligação entre vivos e mortos foram estabelecidas para garantir a prática dos
sufrágios, entre essas estava o testamento.
O moribundo se
preocupava em “pôr a alma a caminho da salvação” por isso, fazer o testamento,
e nele especificar todas as providências a serem tomadas depois da sua morte,
era um ato da maior importância.
O
homem sozinho, por si próprio, não poderia garantir a sua salvação. Sentindo-se
impotente diante do poder julgador de Deus solicitava a intercessão dos anjos e
dos santos para agirem como seus advogados na hora do julgamento divino. A
esses intercessores as pessoas encomendavam a própria alma:
“Primeiramente
encomendo a minha alma a santíssima trindade q’(sic) eterno Padre pela morte e
paixão de seu unigênito filho aqueira receber e a Virgem Maria senhora nossa e
ao Arcanjo São Miguel ea todo os santos e ao Sto de meu nome q’he de João sejão
meus intercesores qdo minha alma deste mundo partir para q foi creada, porq
como verdadeiro Christão protest viver, e morrer na Sta fé catholica e crer
tudo o q tem, ecre a Sta Madre Igreja Catholica Romana.”
Assim,
já no testamento o fiel encomendava a alma aos santos da sua devoção e
reafirmava a sua fé na Igreja Católica e nos seus ensinamentos doutrinários.
Isso era importante porque a concepção de Igreja vigente desde o Concílio de
Trento era a de Igreja sociedade perfeita e único sinal de salvação presente no
mundo. Por isso, afirmar a fé na Igreja era também garantir a própria salvação.
Entre todos os santos gostaríamos aqui
de destacar a devoção a São Miguel Arcanjo que foi muito difundida na América
portuguesa porque era visto como o árbitro das almas no purgatório,
personificando a luta entre as forças do mal e as do bem. Encomendar a alma a
este santo era importante porque poderia diminuir o tempo que a alma passaria
no purgatório, dirigindo-se mais rapidamente ao céu.
Outra devoção
popular era a Nossa Senhora, de tal forma que estava presente no imaginário,
nos sermões, nas preces, como titular das igrejas e capelas. A intercessão da
Santa era pedida em todos os momentos da vida e na hora de encomendar a alma.
Assim encontramos as devoções a N. Sra do Bom Parto, N. Sra do Leite, N. Sra
das Graças, N Sra dos Remédios, N Sra da Ajuda e N. Sra da Boa Morte.
O ardor da fé é
perceptível também nas determinações do testamentário quanto ao seu enterro: o
local, o tipo e a cor da mortalha, o lugar do sepultamento, as missas para a
própria alma. Muitas vezes determinavam até o padre e as pessoas que
acompanhariam o cortejo fúnebre: “Meu corpo será sepultado dentro da Igreja
Matriz desta Fregª, ou emoutra qualquer Capela mais visinha onde eu faleser,
amortalhado em abito de S. Francisco, avendo-o, e não se podendo axar em um
lensol, acompanhado plo Rdo Pároco, e os clérigos, q’na Fregª sepoderem
ajuntar, a qm se dará a esmola costumada e todos dirão por mª alma Missa de
Corpo prese, a qm se dará a esmola costumada e me farão um oficio de nove
lisoins de corpo presente, e caso pr algum empedimento se não posa fazer de
corpo presente, se fará logo no outro dia, ou terceiro, e caso eu falesa em
outra pe onde aja maior Nº de clérigos, não exederá o nº de dês.”
Na
preocupação com o bem partir o fiel, no testamento, fazia a parte que lhe cabia
garantindo os procedimentos necessários para a salvação da sua alma. No
entanto, como tudo deveria ser providenciado após a sua morte contava para isso
com a ajuda dos parentes e outras pessoas de confiança que fizessem cumprir
suas últimas vontades. Pessoa importante era o testamenteiro, deveria ser de
toda confiança para administrar honestamente a herança deixada pelo morto e
para fazer cumprir as suas derradeiras vontades. Aquele que aceitasse ser
testamenteiro era recompensado com um pagamento em rendas ou em espécie no
valor que era antecipadamente estabelecido pelo moribundo. “Declaro q’nomeio
pormeos Testamenteiros emprimo lugar ameu Irmão Manoel Gomes da Silva, em
segundo lugar a Antonio Rodrigues da Costa, em terceiro lugar a João da Cunha e
Souza (...)Declaro q’o testamenteiro q’aceitar onde eu falecer o constituo
administrador dos meus bens em geral para administrar dispor cobrar, erremeter
obrando tudo o que for precizo com todos os poderes gerais, e especiaes como
baste procurador (...) e lhe deixo de premio pello seu trabalho sincoenta mil
reis ...”
Entre as
importantes recomendações deixadas pelos que estavam à morte estava a
especificação do local a ser enterrado. Para nós hoje isso parece óbvio, mas
naquele momento não, porque os cemitérios ainda não eram popularizados como
hoje. As pessoas eram enterradas dentro das igrejas ou no terreno em volta
destas. Em seu testamento Diogo Gomes Pereira pede para ser enterrado dentro da
igreja matriz da freguesia em que mora o que evidencia que era uma pessoa de
posição social privilegiada, uma vez que apenas as pessoas mais ricas eram
enterradas dentro das igrejas porque era
preciso pagar por este direito, ou porque para ser enterrado na igreja matriz
era necessário ser membro da Irmandade ligada aquela igreja e sendo a mais
importante da cidade, estava restrita apenas às pessoas de melhor condição
social. Os mais pobres e os escravos eram enterrados do lado de fora das
igrejas, no adro.
Essa proximidade
física entre mortos e vivos era desejada, pois quando os vivos fossem à igreja
rezar, o cheiro dos mortos faria com que lembrassem que deveriam também orar
para os que do mundo terreno partiam. Alguns achavam mesmo que o cheiro dos
mortos era bom para os vivos, pois faria com que lembrassem também que o
destino de todos era a morte.
Segundo os
costumes do Brasil colonial a pessoa era enterrada diretamente na terra,
embrulhada em um lençol e usando uma roupa própria para o momento da morte, a
mortalha. Ainda nesse gesto deixava-se evidenciar a fé e o desejo de ser mais
facilmente aceito no céu, já que era comum as pessoas pedirem para serem
enterradas com o hábito de uma Ordem religiosa, com o hábito usado pelo santo
de sua devoção ou com o da Irmandade religiosa a que pertencia. Os hábitos mais
valorizados eram os de S. Francisco de Assis e de Nossa Senhora do Carmo,
irmandades mais importantes da época. Acreditava-se que com esse gesto o santo
intercederia pelo morto: “Meu corpo sera emvolto emhabito de Nossa Senhora do
Carmo, e em falta delle em hú lençol, e sepultado onde mais comodamente no adro
da Igreja, ou capella mais vizinha donde for meu falecimento.”
E ainda: “Meu corpo sera sepultado
dentro da Igreja Matriz desta fregª, ou emoutra qualquer capela mais visinha
onde eu faleser, amortalhado em abito de S. Farncisco, avendo-o, e não se
podendo axar em um lensol, acompanhado plo Rdo Pároco, e os clérigos, q’na
Fregª sepoderem ajuntar, a qm se dará a esmola costumada e todos dirão por mª
alma Misa de Corpo prese, a qm se dará a esmola costumada e me farão um oficio
de nove lisoins (...)
Na hora da morte
a presença do padre era importante, vista como uma graça, para garantir que o
doente receberia os últimos sacramentos: penitência, comunhão e a
extrema-unção. Arrependido de seus pecados e em dia com os sacramentos o fiel
aumentava as suas chances de salvação, estava preparado para o momento final.A
morte e o seu cerimonial traduzem bem a idéia corrente na época, de que ninguém
poderia esperar obter a salvação sozinho: além do padre faziam-se presentes a
família, os amigos mais próximos e os confrades da Irmandade. Essas eram presenças
ativas, rezavam “com fervor para que o moribundo se saísse vitorioso nos
últimos embates com o demônio.”
Cabia também ao
padre celebrar a missa de corpo presente e tantas outras que seriam celebradas
em memória do morto nos dias seguintes ao enterro. O bem da alma estaria
assegurado pelo número de missas encomendadas, cantadas, com vésperas e
ladainhas e outras com oficio de nove lições .
Depois de rezar a missa de corpo
presente o padre, juntamente com a família, acompanharia o cortejo até o local
do enterro, sempre rezando e pedindo pela salvação do morto. A presença do
padre, como representante oficial do sagrado aumentava a possibilidade da
salvação, por isso, um maior número de sacerdotes era desejável.
Assim como
encomendar missas, dar esmola também era garantia de boa partida. A esmola para
os pobres e para a Igreja era demonstração de caridade, generosidade, mas
também de gratidão porque ao dar o fiel estava reconhecendo e retribuindo a
gratuidade e as bênçãos recebidas de Deus em sua vida. A boa ação fazia o homem
justo e digno da salvação oferecida por Deus. Dava-se esmolas aos pobres e
fazia-se doações à Igreja e às Irmandades: “Declaro q’ sou irmão da irmande do
Ssmo desta Fregª a qm rogo me acompanhem meu corpo a sepultura, e lhe fasaó os
sufrágios do compromisso. Declaro, q’ meu corpo será conduzido na tumba da
Irmande das Almas, acompanhada da mma Irmande, a qm se dará a Esmola de
Compromisso. Declaro, q’taóbem devo para as obras da Capela de N. Sra do
Rosário, q’se faz no Arral desta Fregª a qtia de vinte mil reis ...”
Vemos, portanto,
que os testamentos exprimem os vínculos com o grupo social e o papel que tinha
o morto no seio da sua comunidade . Praticamente todas as pessoas, pobres e
ricas, livres e escravas pertenciam a uma irmandade. Em Minas Gerais as
irmandades tiveram singular importância, nelas é que se manifestava o espírito
religioso da população já que tinha nas cerimônias do culto sua ocupação
predileta. A religião era divertimento, através das grandes festividades que se
multiplicavam o ano todo e era também convívio.Promotoras da vida religiosa as
irmandades também se ocupavam de papéis originalmente destinados ao Estado,
tais como a construção de templos e cemitérios.
As irmandades
tinham ainda como objetivo a prestação de assistência social e securitária a
seus filiados através de diversos tipos de benefícios: auxílio à velhice,
doença, sepultamento, celebração de missas.Isso era importante porque as
despesas com todas essas coisas eram altas e podiam ser quase impossíveis para
as pessoas pobres.
As irmandades, de modo geral, estavam
identificadas com os grupos étnicos e sociais: Irmandade do Santíssimo
Sacramento, Almas, Ordens Terceiras do Carmo e São Francisco eram dos homens
brancos e em geral ricos. Irmandade de N. Sra do Rosário, São Benedito, Santa
Efigênia dos negros. Irmandade de N. Sra das Mercês dos mulatos.Assim somos
levados a acreditar que o nosso testamentário Diogo era pessoa de boa situação
porque era membro das Irmandades do Santíssimo Sacramento e das Santas Almas.
Ao fazer doações à Irmandade de N. Sra do Rosário parece que estava não apenas
fazendo uma boa ação, mas também mantendo, mesmo depois de morto, o seu lugar
de prestígio na sociedade em que vivia.
No testamento a
pessoa enumerava os bens que possuía, algumas vezes especificava a origem
desses bens, ou seja, se eram herdados ou adquiridos com o próprio trabalho e
ainda a atividade que desempenhava. “Declaro, q’ao fazer deste me tttº mandei o
meu camarada da Tropa pª as geraes dispor uma carregam de molhados, o q’se xama
José Rodrigues Santarém, e tenho no caminho do Mato do Rio de Janiero outro
carregam de sal, e molhados, q’o mesmo camarada dirá o q’é.Declaro q’ devo
varias dividas por créditos, assim nestas Minas, como no Rio de Janº “
Diogo Pereira era comerciante
tropeiro, proprietário de uma tropa de mulas para o transporte de mercadorias.
Esta se tornou a principal forma de transporte terrestre com a descoberta do
ouro em Minas Gerais. Esses comerciantes traziam as mercadorias do litoral (Rio
de Janeiro) para o interior, pelo Caminho Novo. As mercadorias eram adquiridas
dos grandes comerciantes na capital, conhecidos também como “negociantes de
grosso trato”, que importavam os produtos da Europa e com os quais o tropeiro,
muitas vezes contraía dívidas para pagar depois da venda dos produtos no
interior.
Comerciantes
volantes, os tropeiros transportavam nos lombos das mulas os secos e molhados,
esses últimos eram os produtos comestíveis que vinham de Portugal para Minas,
tais como: vinagre, vinho, azeite, bacalhau, queijo flamengo, manteiga de
Flandres, sal, pêra seca, passas, nozes, etc.
Pouco
se sabe sobre as origens social e econômica dos tropeiros, mas há indícios de
que o comércio de mulas proporcionou para alguns rendimentos de vulto,
transformando tropeiros em “homens bons” ou “principais da terra”.
A
vida do tropeiro era cercada de aventura já que passavam a vida percorrendo os
caminhos montanhosos entre Minas e Rio de Janeiro que eram, na maioria das
vezes, perigosos. Esses homens estavam constantemente expostos a assaltos,
animais selvagens e outros imprevistos, por isso, havia entre eles o temor de
morrerem longe de casa e não estarem sob a proteção de alguma instituição que
lhes permitissem os ritos necessários à elevação da alma na hora da sua
morte.
Arrumar
a vida antes de morrer era sinal de dignidade, assim reconhecer as dívidas era
relevante num testamento. Além disso, acreditava-se que se o morto estivesse
devendo dinheiro a alguém e não
providenciasse o pagamento antes de morrer, o credor iria amaldiçoá-lo, o que
faria com que sua alma demorasse mais no purgatório.
Aliviar
a consciência e evitar ir para o inferno implicava em pagar as dívidas,
reconhecer as faltas cometidas, reparar erros e injustiças ou ainda reconhecer
a gratidão. Buscando praticar o derradeiro ato de justiça antes de morrer,
muitos garantiam no testamento a alforria de seus escravos. Não a todos, mas
aquele ao qual se devia algum agradecimento ou reconhecimento, como podemos
ver, por exemplo, no testamento de Manoel Gomes da Costa: “Declaro que deixo ao
meu escravo por nome Manoel Mina, forro, em atenção aos bons serviços que me
tem feito, Declaro que deixo ao meu escravo Manoel Mina Barbeiro cortado em
trinta mil reis pelo tempo de quatro annos epeço ao meu testamenteiro vide
algum favor p’may comodamente poder satisfazer a referida quantia.”
O
momento de preparar-se para morrer permitia ainda um retrospecto da vida em que
se desnudavam as relações sociais e familiares que a tinham marcado e por isso os testamentos refletem essa
necessidade de repartir corretamente os bens, reconhecer publicamente os
herdeiros e a legitimidade do direito de herança.“Declaro q’tenho meu Irmão
Manoel Gomes da Silva nestas minas, e em Portugal na freguesia onde nasci hua
Irmã Por nome Custodia da Silva cazada com Domingos Martins estes dous Irmãos
instituo p’meus erdeiros.”
Algumas vezes o testamento era também
o momento de reconhecer parentescos e relações não assumidos ou não
legalizados: “Declaro q’sou casado por carta d’ametade com Maria Mora, de quem
tenho uma filha por nome Francisca, e como foi tida antes do meu resebimento se
lhes fes o asento do bautismo por engeitada, mas na realidade é ma filha, e
como tal minha legitima erdeira.”
Antes
de morrer Diogo Pereira se preocupa em reconhecer publicamente o seu casamento
e a paternidade de sua filha Francisca
que foi registrada como enjeitada por ocasião do seu batismo, ou seja,
nasceu antes do casamento e naquele momento não foi reconhecida pelo pai.
Estava, portanto, numa situação de ilegitimidade.
O
casamento considerado legítimo era aquele realizado na Igreja, dava
respeitabilidade e prestígio e por isso mesmo, entre as pessoas ricas era um
acordo entre famílias. No entanto, os acordos matrimoniais nem sempre
correspondiam aos desejos dos noivos, que às vezes tinham feito outras
escolhas. Nesses casos “se o casal
conseguisse provar que a honra da mulher tinha sido atingida então a única
solução para remediar a situação era a autorização para casar apesar da
oposição paterna”
A
situação de ilegitimidade da filha e o fato de Diogo ter se casado por carta
d’ametade com Maria Moreira nos faz
pensar que possivelmente não havia o
desejo por parte de uma das famílias com o casamento. Viver maritalmente antes
do casamento, inclusive com o nascimento de uma filha, dava conhecimento
público à relação. Essa foi muitas vezes uma estratégia utilizada pelos casais
cujos esforços para casar tinham encontrado a oposição familiar.
Nessas
situações a Igreja, na maioria das vezes, tomava a posição de obrigar o
casamento para salvar a honra da moça e embora tenha insistido sempre na
moralização e respeito ao sacramento do matrimônio o concubinato era muito
comum, em especial nos meios populares.
Esse
pequeno estudo quis destacar a riqueza dos testamentos registrados nos livros
de óbitos que enquanto fontes eclesiásticas desvelam para nós não apenas as
formas da organização institucional mas também a vivência religiosa, os ritos
da vida privada, e ainda as relações familiares e sociais. A partir deles
percebemos que a ordem das coisas visíveis partia também de compreensões do
mundo invisível.
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