Dom Vital João Wilderink,
OCarm.
A experiência mística só
acontece em pessoas concretas, pessoas que têm as suas limitações, seus
problemas, suas alegrias e tristezas. Não são pessoas exóticas. O exotismo
sempre recorre a métodos, lança mão de
todo um instrumental. Se alguma coisa de “extraordinário” possa existir no
místico, é a sua receptividade, sua atitude de mãos abertas e vazias. Atitude
preliminar que não traduz nenhuma exigência com respeito à própria experiência
mística. Teresa de Ávila escreve: “Quando Sua Majestade o quer, nos ensina o
todo num instante de uma maneira que me espanta”.[1]
É a partir dos escritos que os místicos nos deixaram que é possível descrever,
de certa maneira, as características da experiência mística. Descrições que não são categóricas no sentido
de não admitir nenhum variável. A leitura de textos místicos é muitas vezes
difícil porque neles está descrito o que não foi escrito.
Um conhecimento sem mediações
Nas experiências
relatadas no Prólogo e em outras experiências semelhantes, as coisas já
conhecidas revelam uma realidade que é maior. Realidade que se desvela como se
fosse ao clarão de um relâmpago, mas que vem do interior. É um conhecimento por uma presença. Não é um
conhecimento adquirido através dos
sentidos, ou do discurso, dos conceitos ou das imagens. É uma presença
direta e sem mediações. Não é só conhecimento, é vida. É que as palavras de
Deus são obras.[2]
Talvez o fenômeno tenha
mais clareza para nós quando se trata de uma experiência semelhante em pessoas
que alimentam sua vida com as verdades da fé cristã, embora Deus não se deixe
condicionar na sua iniciativa de amor por nada e ninguém. Hadewijch de
Antuérpia dizia que Deus pode escolher até pecadores e pessoas a-religiosas.
Aliás, quem teria coragem de colocar-se completamente fora dessas categorias!
Mas há pessoas que buscam a presença de Deus e tentam ser fiéis a Ele, com
todas as dificuldades que têm em manter a sua fé. De repente, Deus está ali!
Não que tenham pensado nele com maior intensidade ou que tenham provado um amor
mais profundo por Ele. Mas elas sentem, como um raio que lhes atravessa, algo
de estranho, de completamente novo. Parece que um muro desabou. Assim aconteceu
com Dag Hammarskjoeld que foi secretário
geral das Nações Unidas nos anos 50. Depois de sua morte num desastre de avião,
encontraram no seu apartamento em Nova York seu diário espiritual. Em uma das
páginas ele escreve: “... naquele momento eu vi que o muro nunca tinha
existido, que o ‘inaudito’ se encontra
aqui e agora, não outra coisa, que ‘o sacrifício’ está aqui e agora, sempre e
em toda parte; só isto: estar entregue
ao que Deus - em mim - dá de si mesmo a si mesmo”.[3]
Nos exemplos citados a
experiência mística é descrita como um conhecer a Deus sem mediações, sem
idéias ou conceitos. Normalmente o conhecimento que o ser humano tem de Deus
sempre é através de algo que não é Deus. Qualquer um, dotado ou não, precisa
sempre de indicações, de sinais. Pode haver momentos em que sentimos uma
consolação, uma alegria profunda rezando ou refletindo diante de Deus. Mas é
algo que sentimos por Deus, não de Deus como sendo o Outro. Continua
havendo como que um biombo entre Deus e o ser humano em busca de Deus. Na
experiência mística essa mediação é afastada. Este tipo de encontro com a
presença de Deus é tão novo, tão incomparável que, de início, pode assustar e provocar dúvidas. Mas no seu
interior profundo o místico tem uma certeza: “É Deus!”. É uma primeira
característica da experiência mística. Santa Teresa de Ávila a descreve com a
vivacidade que lhe é peculiar:
No
princípio, atingiu-me uma ignorância de não saber que Deus está em todas as
coisas, e que, como Ele me parecia estar tão presente, eu achava ser
impossível. Eu não podia deixar de crer que Ele estivesse ali, pois achava
quase certo que percebera a sua presença. Os que não tinham letras me diziam
que Ele só estava ali mediante a graça. Eu não podia acreditar nisso, porque,
como digo, sentia a Sua presença. Por isso ficava aflita. Um grande teólogo da
Ordem do glorioso São Domingos me tirou dessa dúvida, ensinando-me que o Senhor
está presente e se comunica conosco, o que me trouxe imenso consolo.[4]
A experiência mística
faz perceber, sentir diretamente a presença de Deus. Isto não significa que se
trata de um conhecimento claro. Por isto o termo conhecimento talvez não seja o
mais adequado. Dizer que o místico tem consciência da presença direta de Deus
elimina um pouco a noção de categorias que sempre acompanham o conhecimento
humano. A percepção mística vai além de categorias e referências, mesmo
doutrinais e teológicas. Na reflexão dos próprios místicos sobre a sua
experiência encontramos constantemente uma teologia negativa. Falam de trevas,
da nuvem do não-saber, ou, como diz João da Cruz: “Estando a alma naquele
excesso de altíssima sabedoria de Deus, toda a sabedoria humana torna-se
evidentemente baixa ignorância”.[5]
Mais forte ainda é a expressão do Pseudo-Dioníso: ”Deus é tudo aquilo que é e
nada daquilo que é”.[6]
A passividade
A descrição do primeiro
traço característico da experiência mística já deixa prever um segundo: ela é
fruto de uma iniciativa gratuita de Deus. Não é uma conquista humana, de
emoções intensas ou de uma intensa atividade intelectual, nem mesmo de uma conduta moral exemplar. A
experiência mística é um sofrer a
irrupção de Deus (patiens Deum). É a passividade mística. Por isto o Mistério
só é compreendido na medida em que Ele se deixa compreender. Não é o
conhecimento que ilumina o Mistério, é o Mistério que ilumina o conhecimento,
inclusive o conhecimento da fé. Essa passividade já tem uma raiz na própria fé
enquanto virtude teologal, dom de Deus. A experiência é mística quando a
iniciativa e o conduzir pertencem ao Outro. Por esta razão na mística afetiva
(o Amado é meu e eu sou do Amado) o caráter passivo da experiência aparece mais
claramente. O mesmo pode ser dito da mística da glória que em certos místicos
se entrelaça com a mística do amor.[7]
A “passividade” não tem
nenhuma conotação de não-liberdade humana. O receber não é menos livre que o
fazer. Receber de Deus é fonte de liberdade. Não existe apelo mais exigente à
liberdade humana que a gratuidade de Deus porque ela é transformadora. É
permitir a Deus que Ele seja Deus na nossa vida. Nesta perspectiva Teresa de
Lisieux se expressa numa oração: “Para
amar-vos como me amais, preciso tomar de empréstimo o vosso próprio amor”.[8]
A passividade indica que
o místico já não é o centro da sua própria existência e percebe que é movido
por Deus. Não há dúvida que ele mesmo pode ter feito um trabalho (ascese) para reduzir esse ego-centrismo
que comanda sua vida cotidiana. Não se trata só de um egocentrismo em sentido
moral, mas da tendência das faculdades humanas sempre ativas em buscar e
apropriar-se os seus objetos específicos. O toque divino atinge além do domínio
do ego, um ponto ou uma região que nos escritos dos místicos recebe vários
nomes de acordo com a visão que têm da estrutura da psique humana: essência da
alma, centro da alma, núcleo definitivo do ser humano. Mas a presença mística
de Deus é pura gratuidade. Ela nunca é fruto de uma preparação ascética, mesmo
realizada com a ajuda da graça de Deus, embora nos escritos dos grandes
místicos a mística apareça freqüentemente como coroação de uma caminhada,
nunca, porém, como fruto e prêmio.
Na mística da criação a
passividade é menos acentuada. Nela há um despertar de uma consciência à medida
em que o místico desce no fundo do seu próprio ser, que tem como o outro lado
da medalha, o Ser Incriado. O indizível e o arrebatador deste experiência têm
conotações diferentes.[9]
União com Deus
A presença de Deus
percebida na experiência mística envolve o místico de tal maneira que desaparece a relação sujeito-objeto,
entre o que vê e o que é visto. Esta união ou unidade mística é o terceiro e mais importante traço
característico. União essa que não pode ser descrita porque não é alcançada
pela atividade das faculdades humanas (sentidos, intelecto, vontade). A própria
fonte original da ação humana é deslocada em Deus. É por isto que o místico
entra numa nuvem escura: “É no silêncio que se aprendem os segredos destas
trevas... que brilha com a luz mais fulgurante, enche de esplendores mais belos
da beleza as inteligências que sabem fechar os olhos”.[10]
É um descer no abismo do amor. A descrição desta união com Deus é feita pelos
místicos em linguagem simbólica. Há imagens e expressões que aparentemente
desfazem a distinção entre Deus e a criatura., embora não seja esta a intenção
dos próprios místicos. É conseqüência da limitação inerente a qualquer
expressão por ser uma incarnação imperfeita do inexprimível. Mas por isto mesmo vale a pena ser dita.
[1]
Livro da vida, 12, 6, Obras Completas, São Paulo, Ed. Loyola,
1995.
[2]
Ibidem, 25,18.
[3] Merkstenen, Brugge-Utrecht, 1965, p.
104. Citado por Paul Momaers, em Wat is
Mystiek, pp. 45-46.
[4] Livro de vida, cap. 18, 15, em Obras Completas, São Paulo, Ed. Loyola,
1995, pp.117-118. No seu escrito Cuentas de conciencia (66,10) Santa
Teresa afirma que é impossível duvidar da presença das três Pessoas divinas.
Presença que traz tantos bens que não é necessário tecer considerações para
saber que Deus está ali.
[5]
Cântico espiritual, Canção XXVI, 13.
São Paulo, Ed. Paulinas, 1980, p.183.
[6]
Citada por Jean Daniélou no prefácio do seu livro Dieu et nous, na coleção Livre
de vie, Paris, 1956.
[7]
“No estado de matrimônio espiritual de que vamos falando, quando a alma chega a
este grau, embora não tenha ainda a perfeição e amor que terá na glória,
contudo, há nela uma viva imagem e vislumbre daquela perfeição, a qual é
totalmente inefável” (João da Cruz, Cântico
espiritual, XXXVIII, 4). No Diário
Espiritual de Maria Crocifissa Cúrcio, Fundadora das Carmelitas
Missionárias de S. Teresa do Menino Jesus, aparece em muitas
páginas essa passagem da mística do amor para a mística da glória.
[8]
Teresa do Menino Jesus e da Sagrada Face,
Obras completas, Edições
Loyola,, São Paulo, 1997, p.262. Manuscrito C 35f.
[9]
Kees Waaijman, Spiritualiteit, pp.
846-847.
[10]
Dionísio Areopagita Teologia mística,
I,1. Citado por João Paulo II na alocução catequética em 19.01.2000, em L’Osservatore Romano, ed. portuguesa,
22.01.2000.
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