A
história começa no dia 22 de julho de 1968, na costa do Pacífico, em Chimbote,
uma cidade de pescadores no norte do Peru, e encontra uma espécie de
cumprimento em Roma, na quarta-feira, 11 setembro, 2013, na Domus Sanctae
Martae, onde o papa, que renunciou ao Apartamento apostólico, se hospeda. A
reportagem é de Gian Guido Vecchi, publicada no caderno La Lettura, do jornal
Corriere della Sera, 22-09-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
No
hotel vaticano, há a capela em que Francisco celebra todas as manhãs uma missa
aberta a vários grupos de pessoas. Só no domingo e na quarta-feira é em forma
privada. Naquela manhã, porém, há um convidado especial do pontífice, um frei
dominicano de traços que revelam a sua origem quechua, a antiga população nativa
que preserva a língua dos incas.
É
um homem de porte pequeno e embranquecido pelos anos, mas nos olhos brilha o
olhar do jovem teólogo peruano que, naquela cidade portuária, há 45 anos, havia
sido convidado para dar uma conferência sobre a "teologia do desenvolvimento".
A Gustavo Gutiérrez, então com nem 40 anos, o tema não agradava: ele falou aos
catequistas de "teologia da libertação".
Três
anos mais tarde, publicou em Lima um livro que se intitulava assim, Teología de
la liberación, o texto que batizaria a corrente teológica mais discutida no fim
do século XX.
E
agora ei-los aqui, o pai da teologia da libertação e o papa. Do Vaticano, vazou
a confirmação da ''audiência privada", mas a concelebração da missa é algo
mais. Décadas de tensões, contrastes com a alma mais conservadora da Igreja,
obras sob processo pela Congregação para a Doutrina da Fé, o ex-Santo Ofício
(mas Gutiérrez nunca foi condenado).
Não
que isso tenha acontecido de improviso. Quem anunciou o encontro, aliás, poucos
dias antes, foi o arcebispo Gerhard Ludwig Müller, o prefeito do dicastério
chefiado por Joseph Ratzinger durante 23 anos. Müller falava no
Festivaletteratura de Mântua e, ao seu lado, o amigo e mestre Gutiérrez: eles
apresentavam juntos o livro Dalla parte dei poveri [Do lado dos pobres]
(Edizioni Messaggero de Pádua-Emi), a edição italiana de um livro a quatro mãos
publicado na Alemanha em 2004.
Eis:
justamente o sucessor de Ratzinger no ex-Santo Ofício é a figura-chave para
compreender o que aconteceu nos últimos anos. Nascido em Mainz-Finthen e filho
de um operário, Müller é um teólogo do altíssimo perfil, por 16 anos professor
da Universidade Ludwig-Maximilian de Munique. O próprio Bento XVI tinha
desejado que justamente ele, o aluno de Gutiérrez, fosse o editor da sua opera
omnia em 16 volumes (Joseph Ratzinger, Gesammelte Schriften), que é publicada
na Alemanha.
Ficou
claro que algo estava se movendo quando ele ainda era bispo de Regensburg, e o
L'Osservatore Romano, no dia 23 de dezembro de 2011, publicou um artigo seu que
agitou a parte mais conservadora da Cúria: Müller comentava dois textos
escritos nos anos 1980 por Ratzinger sobre a teologia da libertação, para
explicar como o então prefeito do ex-Santo Ofício não a havia condenado em si
mesma, mas sim nos seus desvios (Müller escrevia sobre "teologias" da
libertação) que "perderam de vista o sobrenatural" para se tornarem
"somente uma superestrutura de um projeto marxista" e
"revolucionário". Desse modo, escrevia o bispo, Ratzinger
"prepara o caminho para uma verdadeira teologia da libertação que está
ligada à doutrina social da Igreja e que, justamente hoje, deve levantar a sua
voz". Esse artigo no jornal da Santa Sé era a premissa do golpe de cena,
com tantas saudações a quem, em voz baixa, questionou a sua "ortodoxia".
Pouco
tempo depois, e justamente Ratzinger, que como "guardião da fé"
colocou na linha vários teólogos da libertação e que Leonardo Boff descrevia
como o mais temível dos inquisidores ("Eu tive que me sentar na cadeira
onde haviam se sentado Galileu Galilei e Giordano Bruno!"), justamente ele
nomeou Müller, no dia 2 de julho de 2012, à cúpula do ex-Santo Ofício. Para
dizer a estima que os une, Ratzinger deixou a ele o seu apartamento de cardeal,
em Borgo Pio, com parte dos amadíssimos livros.
A
última passagem é o conclave, com a eleição de Jorge Mario Bergoglio, o cardeal
que andava de ônibus e, à noite, visitava incógnito a favela Villa 21 de Buenos
Aires, o bispo de Roma que escolheu se chamar Francisco ("Lembre-se dos
pobres!", lhe disse na Capela Sistina o cardeal franciscano Cláudio
Hummes, seu grande amigo) e, recém-eleito, declarou que queria "uma Igreja
pobre e para os pobres".
Na
formação do papa jesuíta, a "teologia do povo" argentina tem uma
parte importante, cuja relação com a teologia da libertação é objeto de
discussões taxonômicas entre os especialistas. Mas o padre Juan Carlos
Scannone, máximo teólogo argentino, além de aluno de Karl Rahner, outro
jesuíta, explicou ao jornal Corriere: "Muitos consideram a teologia
argentina do povo como uma corrente da teologia da libertação com
características próprias, assim como Gutiérrez. Eu mesmo já defendi isso em um
artigo de 1982, retomado por Dom Quarracino" (Nota da IHU On-Line: cardeal
argentino, foi arcebispo de Buenos Aires)
Palavras
importantes, até porque o padre Scannone, 81 anos, foi professor de grego e de
literatura do jovem Bergoglio no seminário da Companhia de Jesus em Buenos
Aires e desde então permaneceu como um ponto de referência no pensamento do
ex-aluno. O padre Scannone lembra que, em 1984, foi o arcebispo Antonio
Quarracino, antecessor e mentor de Bergoglio em Buenos Aires, que explicou
"por que a Instrução da Congregação para a Doutrina da Fé falava no plural
de 'teologias' da libertação: não criticava todas elas, criticava aquelas que
usavam a análise marxista da sociedade e da história". A "teologia do
povo", em suma, "não usa a análise social marxista, mas sim uma
análise histórico-cultural, sem ignorar o socioestrutural". Também por
isso "outros a distinguem da teologia da libertação".
Em
todo caso, "todas as correntes assumem a 'opção preferencial pelos pobres'
das conferências do episcopado latino-americano de Medellín e Puebla", a
mesma "reiterada por Bento XVI no discurso inaugural de Aparecida e pela
própria conferência": a da qual o cardeal Bergoglio escreveu as
conclusões.
Assim,
o livro de Müller e Gutiérrez tem um subtítulo significativo: "Teologia da
libertação, teologia da Igreja". Quando foi publicado, o L'Osservatore
Romano lhe dedicou as duas páginas centrais. O artigo do padre Ugo Sartorio
começa assim: "Com um papa latino-americano, a teologia da libertação não
podia permanecer por muito tempo no cone de sombra a que foi relegada há alguns
anos, ao menos na Europa...".
No
livro, Müller escreve: "A teologia da libertação não morrerá enquanto
houver homens que se deixem contagiar pelo agir libertador de Deus e fizerem da
solidariedade para com os sofredores, cuja humanidade é pisoteada, a medida da
sua fé e a motivação do seu agir na sociedade". E fala do
"mal-entendido que une simpatizantes e adversários", a ideia de uma
teologia que se concentra na "dimensão social e política" e perde de
vista "a relação entre homem e Deus". Mas Jesus disse, lembra Müller:
"Tudo o que vocês fizeram a um dos menores de meus irmãos, foi a mim que o
fizeram". O capítulo 25 de Mateus que Francisco, juntamente com as
Bem-Aventuranças, indicava como "plano de ação" aos jovens do Rio:
"Ali está tudo".
Certamente,
haverá aprofundamentos e não faltarão resistências. O cardeal peruano Juan Luis
Cipriani, membro do Opus Dei e adversário histórico de Gutiérrez, há poucos
dias definiu Müller como "um bom alemão, um bom teólogo, um pouco
ingênuo", repetindo seco: "A teologia da libertação causou danos à
Igreja".
Mas a audiência e a missa em Santa Marta são a imagem de uma nova temporada. No dia do encontro com Francisco, o L'Osservatore voltava a celebrar Gutiérrez com uma entrevista. "O que eu vou dizer a Francisco? Obrigado pelo seu testemunho".
O
dominicano citava ironicamente uma piada do arcebispo brasileiro Hélder Câmara:
"Quando dou um pão a uma pessoa com fome, dizem que eu sou um santo.
Quando eu pergunto por que essa pessoa tem fome, dizem que eu sou um
comunista".
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