"O
declínio quantitativo das ordenações desenha, há dois séculos, uma curva
descendente diante da qual se fecham os olhos, especialmente aqueles que estão
sob uma mitra episcopal". O comentário é de Alberto Melloni, professor da Universidade
de Modena-Reggio Emilia e diretor da Fundação de Ciências Religiosas João
XXIII, em Bolonha, em artigo publicado por La Repubblica, 22-03-2017.
A tradução é de Ramiro Mincato.
Eis o artigo.
Alguns
grandes ciclos históricos terminaram com eventos estrondosos. Outros, ao
contrário, encerraram-se quase despercebidamente, embora não menos importantes
do que aqueles aos quais a ereção de um monumento ou uma linha de texto num
manual escolar concedem eterna glória. No silêncio exauriu-se um grande ciclo:
a do padre. Esta formidável invenção do século XVI, que moldou a cultura e
a política, a psicologia e a vida interior, a arte e a teologia do Ocidente e
das suas antigas colônias não desapareceu (são cerca de 420 mil padres no
mundo), mas, há mais de três séculos, está em crise: na Itália, em noventa
anos passamos de 15 mil para cerca de 2.700 seminaristas.
Claro que
fatores extrínsecos têm algum peso: amanhã a desgraça da pedofilia que
a lente da mídia faz parecer um crime específico dos padres; ontem, a preguiça
das autoridades em discutir o celibato eclesiástico; hoje, a simonia
soft que remunera presenteando dioceses - prêmios dados para quem
"fabrica" padres numerosos ou vistosos. Conta ainda nesta fase histórica
a reverberação sobre o clero da queda das qualidades intelectuais das classes
dirigentes às quais pertencem tanto aqueles que escolhem o sacerdócio como
aqueles que o conferem. A questão se encrava ainda mais profundamente na
história.
O padre que
conhecemos tem data precisa de nascimento: o Concílio de Trento, concluído em 1563. E o
enorme esforço com o qual tentou marcar uma cesura (contestada pelos
protestantes que, em vez, acusavam a Igreja Católica de continuidade
com o abuso) da reforma de Lutero. Tarde, mas com coragem,
o Concílio tentou inventar remédios desconhecidos: impôs, por exemplo, aos
bispos a residência na diocese, impedindo-os de assídua frequência à corte
papal. E inventou o padre: este, caçoado pela literatura e pelo cinema, o
homem feito sábio somente pelos insucessos, santificado pelo peso institucional
daquilo ao qual se doa.
O padre
que não tem filhos para criar, o padre formado com curso padrão, e muito longo,
o padre líder que leva os proletários a tornarem-se classe dirigente, o padre
que interpreta o "suprema lex salus animarum", que é a
misericórdia. Este "padre tridentino" parece atravessar o ponto de
viragem da modernidade sem danos: ao contrário, o nascimento das novas ordens e
das sociedades do clero do século XIX, o zelo em construir seminários grandes
como fábricas, parecem garantir que sua função permaneça intacta dentro da
mesma couraça institucional e teológica.
Mas, isso
não é verdade: a igreja que se encastela na defesa do seu próprio espaço cria
um funcionário cujo perfil interior desgasta-se pelo controle social. O
escrutínio da consciência de uma humanidade da qual não tem nenhuma experiência
enfraquece sua compaixão. Sua antiga ciência, em comparação à transmissão de
conhecimentos cada vez mais sofisticados, o faz um sub-educado. O zelo
eclesiástico em condenar tudo a que se pode colar o sufixo "ismo",
empobrece suas leituras e torna-o estranho aos “seus”, que se tornam, de
repente, "distantes". A perda do papel e a negligência afetiva o
expõe ao pior: da insípida exaltação do celibato que aprisiona a
sexualidade em busca de sublimação até atrair ao presbiterato pessoas não
resolvidas, ou mesmo doentes. Sua qualificação torna-se o nome de um vício
nunca combatido suficientemente: o clericalismo.
E na
recente história da Europa a profissão de padre é contratada, tais
como tarefas marginais, aos clérigos de importação, eleitos cuidadores de
comunidades abandonadas. Mesmo a discussão sobre as mulheres-padre (esquecendo-se
que o "sacerdócio" recebido no batismo as mulheres já o têm, o que
não é pouca coisa) mistura-se perigosamente a lógica toda machista que concede
ao outro gênero as tarefas tornadas obsoletas. O declínio quantitativo das
ordenações desenha, há dois séculos, uma curva descendente diante da qual se
fecham os olhos, especialmente aqueles que estão sob uma mitra episcopal. Não
seria, de fato, preciso e até mesmo urgente repensar o padre partindo
exatamente da eucaristia e da comunidade, e não de detalhes de vida ou de
gênero. Mas disso, no entanto, parece impossível falar, mesmo no último meio
século.
Não falou
o Vaticano II que se limitou em tentar
remover do padre aquele tom semimonástico que tinha. Não o papado,
que simplesmente confecciona uma poética do padre. Não falam os bispos que
empacotam as comunidades naquilo que na Itália se chamam de
"unidades pastorais", e condenam os padres a tornarem-se funcionários
esbaforidos, esmagados por uma poligamia comunitária onde ninguém os ama, e
eles são incapazes de amar, com risco de tornarem-se santos ou náufragos nas
rochas eróticas nem sempre cândidas.
Isso é
tão grave que nem mesmo o Papa Francisco fala. O próximo Sínodo,
na verdade, tem um tema genérico-geral como o do "jovem": como se até
mesmo o infatigável Papa reformador quisesse uma pausa às polêmicas. E se a
"próxima encíclica, como se diz, será sobre a religiosidade
"popular", terá também esta o mesmo limite.
Por outro
lado, a decisão mais importante do pontificado, contida na Evangelii Gaudium, ainda não foi recebida
pelos bispos: que as conferências episcopais têm "autêntica autoridade
doutrinal". Então, tocaria aos bispos, nas Conferências Episcopais,
levantar o tema sobre o qual se joga a vida de suas igrejas: mas a
"indolência prevalece, encorajada pela esperança de que amanhã a reforma
terá a mesma coragem daquela que "inventou o padre". Figura que,
enquanto evapora, acende as memórias e as lamentações de crentes, ex-crentes e
não-crentes. Fonte: www.ihu.unisinos.br
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