Frei James Boyce, O.Carm.
A Espiritualidade litúrgica dos primeiros
carmelitas
Oração individual e comunitária
Um aspecto singular da
antiga liturgia carmelitana é que, enquanto a missa era celebrada em comum, a
recitação do Ofício Divino era deixada ao eremita (indivíduo) como parte de sua
contínua vida de oração diária. Assim, no que diz respeito aos salmos, a oração
dos eremitas era individual em vez de comunitária, não sendo portanto,
litúrgica no sentido próprio do termo. Como resultado, o que quer que fosse
expresso comunitariamente deveria ser feito em relação à Missa, em vez do
Ofício. As preocupações litúrgicas modernas, buscando expressar o espírito da
comunidade que celebra, pode ou não ter sido conscientemente operante dentro da
primeira comunidade de eremitas no Monte Carmelo. As antigas celebrações deles
buscavam a integração das regras da Igreja oficial ao estilo de vida de um
eremita assim como eles a compreendiam.
A Regra e a observância litúrgica no Monte Carmelo
A Regra dada
aos primeiros eremitas por Alberto, patriarca de Jerusalém, entre os anos
1206-14[i] mostra uma abundância de referências bíblicas
que revelam nela um entusiasmo pela vida espiritual. A armadura de Cristo que
deveria ser vestida para as batalhas espirituais, parte da vida diária do
eremita, dava um sentido de prontidão ao modo de vida que eles adotaram e
estabeleceu o ritmo para as observâncias específicas que caracterizariam sua
vida.
A Regra e o modo de vida eremítico
A Regra
destina-se claramente a pessoas que vivem uma vida de eremita. Não apenas na
recitação pessoal dos salmos, mas também na aridez do lugar e na vida solitária
dos primeiros carmelitas. Como a Regra nos fala alguma coisa sobre a
observância litúrgica no Monte Carmelo, podemos presumir muito sobre a vida
comunitária deles. Os primeiros carmelitas faziam parte de uma ampla tradição
de vida eremítica na área do Monte Carmelo.[ii] A rotina da vida de oração do eremita,
esclarecida na regra que pediram e receberam do patriarca local, era parte
desta ampla tradição na qual os carmelitas se inseriram. A sacralidade da área,
santificada pela presença do profeta Elias e de seus seguidores,[iii] não poderia ser descrita adequadamente em
palavras. Apesar disso, fazia parte de sua experiência de oração.
Apesar de a
Regra prescrever que a Missa diária fosse celebrada comunitariamente, nada de
específico estava indicado quanto ao modo de sua apresentação. Na verdade, a
prescrição de uma Missa diária para um grupo de eremitas era incomum. Ela nos
diz que pelo menos um dos primeiros carmelitas era ordenado, já que não há
menção sobre trazer um celebrante de fora da comunidade. Isso também indica que
atribuíam grande importância à celebração Eucarística. Podemos seguramente
presumir que os primeiros carmelitas seguiram o ritual do Santo Sepulcro no que
diz respeito ao ano litúrgico e aos detalhes da observância diária.
Quanto ao
Ofício Divino, a regra de Alberto indica apenas que os salmos devem ser
recitados por aqueles que sabem ler e que uma quantidade de Pai Nossos deve ser
rezada por aqueles que não sabem.[iv] Esta era uma prática usada também por outras
Ordens durante este período.[v] A influência do uso da liturgia local na recitação
dos salmos era mínima, já que não prevaleceu nenhuma tradição do ofício para os
carmelitas neste tempo.
O Ritual do Santo Sepulcro
O rito local
do Reino Latino deriva seu nome da igreja em Jerusalém onde se acreditava ser o
local do túmulo do Senhor.[vi] A descoberta do possível túmulo de Nosso
Senhor iguala-se a outras descobertas tão antigas quanto a da Cruz Verdadeira
por Santa Helena, no século quarto. O primeiro santuário cristão foi assim
objeto de constantes batalhas para possuí-lo e gozava de um prestígio
inigualável na Cristandade. Devemos lembrar que Luís IX construiu a Santa
Capela de Paris para guardar as relíquias da Coroa de Espinhos.[vii] Isto nos dá uma idéia do significado para a
cristandade medieval dos artefatos relacionados ao Senhor. A Igreja do Santo
Sepulcro precisa ser vista dentro deste contexto para avaliarmos seu
significado litúrgico. O próprio ritual é uma adaptação de ritos franceses,
pois foram os cruzados franceses que se estabeleceram inicialmente na Terra
Santa. São ritos com forte influência agostiniana, já que os cônegos da igreja
adotaram a regra de Santo Agostinho em 1114.[viii] Uma característica litúrgica deste rito é a
festa da Celebração da Ressurreição, celebrada no último Domingo do ano
litúrgico.[ix] Uma série de festas particulares,
relacionadas a personagens e eventos da Terra Santa incluindo, por exemplo, a
entrada de Noé na arca, também caracterizavam esta liturgia.[x] Algumas destas festas continuaram na liturgia
carmelitana.
Enquanto os
carmelitas viveram no Monte Carmelo, a celebração do Rito do Santo Sepulcro era
simplesmente o costume da região e, portanto, não era extraordinário. No
entanto, a preservação deste rito, ou de aspectos dele, uma vez que os
carmelitas não moravam mais na Palestina, distinguia-os de seus vizinhos na
Europa ocidental.
A mendicância da Ordem
O longo e
árduo processo para obter a aprovação oficial para a Ordem foi bem documentado.[xi] Já que o Quarto Concílio Lateranense de 1215
proibiu a proliferação de regras ou de modos de vida,[xii] os carmelitas tiveram que provar que se
estabeleceram antes do Concílio e, por isso, deveriam ser considerados isentos.
Esta condição foi reconhecida por Honório III em 30 de janeiro de 1226 nos
seguintes termos:
Para que vós e vossos
sucessores, até onde forem capazes com a ajuda de Deus, possam observar no
futuro a regra de vida regular escrita pelo falecido Patriarca de Jerusalém,
que dizeis terem recebido humildemente antes do Concílio Geral, a impomos sobre
vós para a remissão de vossos pecados.[xiii]
Vários outros
documentos papais reconheceram os carmelitas como uma Ordem religiosa,
preparando o caminho para a carta apostólica Quae Honorem Conditoris de Inocêncio IV em 01 de outubro de 1247,
que continha o texto atenuado da regra.[xiv] As migrações do Monte Carmelo para o ocidente
começaram por volta de 1238,[xv] de modo que a regra revisada de Inocêncio era
dirigida agora para uma comunidade internacional de carmelitas e não mais para
um pequeno grupo de eremitas vivendo num determinado lugar. Uma das principais
distinções com a Regra de Inocêncio está nos nn. 12-13, que diz respeito à
recitação dos salmos. Enquanto a Regra de Alberto prescreveu que
Os que conhecem as letras e sabem ler os
salmos, devem recitá-los, nas várias horas, conforme estabeleceram os Santos
Padres e segundo o costume aprovado da Igreja...[xvi]
A versão de Inocêncio diz
Os que sabem dizer as horas canônicas com os
clérigos devem recitá-las conforme estabeleceram os Santos Padres e segundo o
costume aprovado da Igreja.[xvii]
A recitação das horas canônicas é normalmente um
costume do clero e a injunção aqui é que os carmelitas, que não são clérigos
mas sabem como recitar as horas canônicas, deveriam unir-se ao clero para
recitá-las como a Igreja pede. Não há referência na Regra de Alberto a qualquer
carmelita ordenado, apesar de alguns já terem recebido as ordens. No processo
de aprovação pela Santa Sé, os carmelitas assumiram o modo de vida mendicante,
incluindo a recitação do ofício em comum, pelo menos por aqueles que estavam
aptos a fazê-lo. O oposto ao que era realizado em particular no Monte Carmelo.
Por um lado,
esta revisão da Regra por Inocêncio significa que os ideais eremíticos estavam
diminuindo diante das novas circunstâncias e pela necessidade de harmonizar com
as estruturas eclesiásticas estabelecidas. Por outro lado, a recitação do
ofício em comum significava agora que os carmelitas podiam dar expressão
litúrgica à sua identidade religiosa de um modo que era impossível
anteriormente.
A rápida expansão da Ordem
Junto com a
mudança de identidade, passando de uma Ordem eremítica para uma mendicante,
veio a mudança na localização, passando de uma pequena área do Reino Latino
para um grupo mais amplo vivendo tanto no Reino Latino (pelo menos até 1291),
como em muitas partes da Europa ocidental. As Constituições do Capítulo Geral
de Londres de 1281 registra a Terra Santa como a primeira de dez províncias
formando agora a Ordem. As outras eram Sicília, Inglaterra, Provença, Toscana,
Lombardia, França, Alemanha, Aquitânia e Espanha.[xviii] Esta experiência de internacionalidade era
apenas uma expansão geográfica, mas afetou toda a auto-compreensão da Ordem.
O desenvolvimento da liturgia carmelitana medieval
Virtualmente todos os
manuscritos litúrgicos carmelitanos referem-se ao Rito do Santo Sepulcro. O que
foi simplesmente assumido no próprio Monte Carmelo agora tinha que ser definido
e explicado, já que este rito não era conhecido fora do Reino Latino. Isto deve
ter dado aos carmelitas europeus uma sensação de estarem separados das outras
ordens, já que sua liturgia combinava tanto influências orientais quanto
ocidentais. Apesar de o próprio rito do Santo Sepulcro basear-se em ritos
franceses, alguns de seus acréscimos e festas singulares o distinguia das
tradições litúrgicas ocidentais. O simples fato dos carmelitas estarem
intimamente associados a este rito separava-os de seus contemporâneos.
Desde a
revisão da Regra por Inocêncio, entre 1247 até 1291, quando os últimos
carmelitas foram forçados a abandonar a Terra Santa,[xix] havia a mesma observância litúrgica, tanto no
Reino Latino quanto na Europa ocidental. Este vínculo unindo os carmelitas na
Terra Santa a seus irmãos na Europa ocidental continuou por aproximadamente
meio século.
Ainda que
pouco se saiba sobre a liturgia da Ordem durante o importante século XIII,
novas evidências sugerem que o Rito Carmelitano desenvolveu-se muito a partir
daquele do Santo Sepulcro.[xx] E como o ritual carmelitano tomou emprestado
muito material da tradição dominicana,[xxi]
seu desenvolvimento foi uniforme. Desta forma, a ordem das orações, dos salmos,
das antífonas e de outros elementos da liturgia foi mantida intacta para toda a
Ordem, de modo que o frade no Monte Carmelo dizia as mesmas orações, e do mesmo
modo, que seu companheiro europeu.
As Rubricas de Sibert de Beka
Com a
publicação em 1312, pelo Capítulo Geral de Londres, das Rubricas compiladas
pelo frade carmelitano Sibert de Beka[xxii] surgiu uma liturgia carmelitana padronizada
que durou toda a Idade Média. As rubricas estabeleceram o texto inicial de cada
oração, antífona, responsório, salmo e leitura a serem usados em cada hora do
ofício e em cada Missa diária. Assim, ele estabeleceu uma uniformidade
litúrgica absoluta para toda a Ordem.[xxiii]
[i] Isto é, algum tempo durante o patriarcado de
Alberto, que tornou-se patriarca em 1206 e foi morto em 1214; cf. Clarke e
Edwards (1973), pp. 12-13.
[ii] Assim, Friedman (1979) usa a título Eremitas
Latinos para distingui-los dos eremitas de outras tradições que, em certa
época, habitaram o local com o propósito de oração e solidão.
[iii] A presença de Elias no Monte Carmelo foi o
que atraiu os eremitas ao local para imitá-lo, de acordo com Jacques de Vitry;
Clarke e Edwards (1973), p. 12.
[iv] No Capítulo 9; cf. Clarke e Edwards (1973),
pp. 82-83.
[v] Por exemplo, os cistercienses também
prescreveram a recitação do Pai Nosso no lugar dos salmos; cf. Lekai (1953), p.
231.
[vi] Para um estudo da história da Igreja do Santo
Sepulcro, cf. Couasnon (1974).
[vii] A Sainte Chapelle foi construída para guardar
a relíquia da Santa Cruz em 1248; cf. Mead, NCE.
[viii] Buchtal (1957), p. xxx.
[ix] Esta festa é descrita em detalhes em
Zimmerman (1910), pp. 37-39.
[x] Cf. Buchtal (1957) para as festas no rito do
Santo Sepulcro e Zimmerman (1910) para uma comparação de tais festas com o rito
carmelitano
[xi]
Cf. Cicconnetti (1973) e Clarke e Edwards (1973).
[xii] Este decreto Ne nimia religionum está publicado no Conciliorum Oecumenicorum Decreta (1962), p. 218.
[xiii] Clarke e Edwards (1973), p. 19.
[xiv] A versão desta carta dos Arquivos do
Vaticano, Reg. Vat., no. 21, folhas 465v-466 foi publicada em Laurent (1948),
5-16.
[xv] Clarke e Edwards (1973, p. 21) citam 1238
como o começo desta migração para o Ocidente, baseados na evidência do
dominicano do século XIII, Vincent de Beauvais; Keith Egan cita o franciscano
Thomas de Eccleston, que afirma que Richard De Grey de Codnor trouxe os
carmelitas para a Inglaterra quanto voltava de sua cruzada em 1242; cf. Egan (1972),
78.
[xvi]
Clarke e Edwards (1973), p. 83.
[xvii]
Clarke e Edwards (1973), p. 83.
[xviii]
Saggi, (1950), 244.
[xix] Smet (1975), Vol. I, p. 30.
[xx] Isto anteriormente foi suposto mas não
documentado por uma comparação detalhada entre os breviários do Santo Sepulcro
e dos carmelitas. Um manuscrito (do Abade Victor Leroquais em seu catálogo de
breviários de manuscritos nas bibliotecas francesas) que pode ter pertencido
aos templários pode, de fato, ser um único elo, ou um entre vários elos, entre
a liturgia do Santo Sepulcro e a liturgia dos carmelitas. Meu artigo, A Busca
pelo antigo Breviário Carmelitano: Um Manuscrito Templário Relido, na Revista de Musicologia tratará desta
questão em detalhes.
[xxi] Bonniwell (1945) discute a influência
litúrgica dominicana sobre os carmelitas; isto não é uma surpresa, ao
considerarmos que entre aqueles encarregados de revisar a Regra Carmelitana
incluía os dominicanos.
[xxii] Sibert de Beka nasceu entre 1260 e 1270.
Entrou para o Carmelo de Colônia em 1280. Ele foi prior desta casa e, mais
tarde, provincial da Baixa Alemanha e mestre dos alunos de Paris. Morreu
provavelmente em 29 de dezembro de 1332 em Colônia e está sepultado na igreja
carmelitana desta cidade. Cf. Xiberta (1931), pp. 142ss.
[xxiii] A edição crítica do Ordinário de Sibert é encontrada
em Zimmerman (1910).
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