ASSEMBLEIA DE ESPIRITUALIDADE DOS CARMELITAS
- Província Carmelitana de Santo Elias-
Belo Horizonte- MG. Casa de Retiro São José. De 26
-30 de janeiro-2015.
Tema: 500 Anos de Santa Teresa de Jesus.
Pregador:
Professor Francisco Catão, São Paulo.
A pedagogia
de Santa Teresa de Jesus vista por um teólogo nos dias de hoje
Por
Professor Francisco Catão, São Paulo.
3ª
Parte: O Caminho de Teresa.
Teresa completava 41 anos. Sua vida
espiritual atingira a maturidade. Assistida por diversos “letrados”, principalmente
dominicanos e jesuítas, sentira necessidade de harmonizar a vida conventual com
as exigências da oração.
Sonhou, então com um pequeno mosteiro em
que as religiosas não fossem tão numerosas, podendo se conhecer pessoalmente e
se amar de fato, umas às outras, ao contrário do mosteiro onde vivia, com quase 200 religiosas que
praticamente se ignoravam como pessoas, dando prioridade às observâncias
claustrais e ao culto, e em que as amizades pareciam sempre suspeitas.
O importante para Teresa era que, na
comunidade, o amor tivesse sempre a primazia – “vede como se amam!” dizia-se dos primeiros cristãos – amor sobre
cujas bases as religiosas pudessem edificar sua vida pessoal de intimidade com
Deus, que vem a nós na pessoa do próximo.
É importante registrar essa percepção de
Teresa, como que antecipando nossos tempos, em que a necessidade de centrar o
Evangelho no amor do próximo é posta em evidência pelo papa Francisco, que vê,
no segundo mandamento, o caminho que nos leva ao primeiro de acordo o Evangelho,
que o qualifica de “semelhante ao primeiro”(cf.
Mt 22,39).
Além de favorecer a perfeição da
santidade, um convento assim constituído seria como que um reduto da fidelidade
a Jesus, capaz de sustentar espiritualmente a Igreja no combate que travava
contra o assédio dos reformadores. Cumprir-se-ia assim a missão de intercessão,
que já os monges antigos se atribuíam, de sustentáculo do mundo -
No sonho de Teresa, despontavam a
segurança teológica, carisma da futura Doutora da Igreja, a lucidez e a coragem,
a habilidade e a perseverança da fundadora. O novo mosteiro nasceu na própria
Ávila, São José, como primeiro de um rosário de 17 fundações até a de Alba de
Torres, pouco antes de sua morte, em 1582.
Para realizar seu projeto, Teresa adota
a “regra primitiva”, que justifica a volta ao monaquismo das origens
carmelitas. Interpreta-a, porém a seu modo, pondo em prática seu gênio de
priora e formadora, contando, principalmente, com sua própria experiência, mais
do que com qualquer teoria ou ideal preconcebido.
Nada mais simples: visa diretamente às
jovens monjas de São José, que convencem Teresa a colocar por escrito seus
ensinamentos e conselhos sobre a oração, dando origem à sua primeira obra
espiritual destinada a ser divulgada. Sanciona, de próprio punho, o título sob
o qual passa a ser conhecida: O caminho de perfeição (1566/7).
A
caminho da perfeição.
O caminho
de perfeição, nas suas duas redações e em seus primeiros apógrafos, foi
acompanhado de perto pela autora, como nenhum outro escrito teresiano,
reconhecem-no os especialistas (cf. Tomás
Álvarez, p. 165).
Ela mesma segue os ensinamentos que
transmite no desempenho de suas funções de superiora e priora, conferindo-lhes
uma autoridade única, como norma a ser observada nos carmelos reformados,
primeiro femininos e depois, também masculinos. Daí se poder considerar o Caminho, como expressão fidedigna do
ensinamento espiritual de Teresa. Nele nos baseamos.
Comecemos pelo título. Aparece pela
primeira vez no autógrafo original, conhecido como Manuscrito de Valladolid, inserido no título que
lhe havia dado Teresa, que o sancionou, porém, quando reviu a cópia manuscrita
de Toledo, em 1579, nos últimos anos de sua vida (ib.). Temos o direito de nos perguntar que entendia Teresa por
“caminho de perfeição”?
A ideia de caminho para designar o curso
que segue nossa vida pessoal e da comunidade cristã é genuinamente bíblica.
Prende-se, talvez à condição nômade do povo hebreu: Abrão se pôs a caminho a
chamado de Deus (Gn 12,1-5). A metáfora ganhou toda sua importância com a
narrativa fundadora do Êxodo e da marcha através do deserto até a terra
prometida.
Mais tarde, os salmos e toda a literatura
sapiencial, falam do caminho a ser trilhado por todo verdadeiro israelita: o
Ensinamento (Torá) de Deus, lembrando
que qualquer outro caminho conduz à ruína e ao fracasso.
No Novo Testamento, no entanto, o
Caminho é Jesus como o reconhece o quarto evangelista (cf. Jo 14,6). Teríamos o direito de nos perguntar até que ponto
Teresa se refere a Jesus, quando escreve o caminho? Somos pela resposta
afrmativa, pelo menos indiretamente, pois é Jesus que lhe inspira o caminho, na
sua estrutura e até nas particularidades de suas observações sobre as
exigências da perfeição, assim como a fidelidade a Jesus, no seio do judaísmo,
levou as primeiras comunidades cristãs a se designarem simplesmente como o
caminho (cf. At 9,2; 18,25; 24,22),
velando de certo modo o mistério da Igreja, ainda no seio do judaísmo.
Para exprimir a novidade de seu projeto,
sem romper com a tradição carmelita vigente no seu Mosteiro da Encarnação,
Teresa adotou a designação de caminho para caracterizar seu escrito, velando o
alcance fundador de seus ensinamentos.
São José de Ávila e todas as fundações
que se seguiram, são comprovações práticas de
O Caminho: mosteiros
organizados em vista da perfeita união com o Esposo. Concebiam-se como um
caminho de perfeição, a ser livre e generosamente abraçado por todos os que se
sentissem chamados a seguir Jesus até o fim, até o Horto e a Cruz, colocando a
oração no centro de sua vida, em outros termos, a viver toda a vida centrada na
intimidade com Deus, buscando verdadeiramente a Deus – si revera Deum quaerit – na expressão da Regra Monástica (Regra de são Bento, c. 58).
Mas o que entende Teresa por perfeição? Ela
certamente se deixou impressionar pelo ensinamento de Jesus no sermão da
montanha: “Sede perfeitos como vosso Pai celeste é perfeito” (Mt 5,48), que
ocupa no Novo Testamento lugar equivalente ao “Sereis santos porque Eu sou
santo” (Lv 11,45; 19,2) da Torá.
Teresa conhece a interpretação
generalizada na tradição teológica, que vê a santidade a que somos chamados
como participação na vida de Deus. Mas vai além. Não se detém na esfera do ser,
ocupa-se da perfeição do agir. Mudança de perspectiva nem sempre levada em
conta pelos intérpretes, que comanda, por outro lado, grande parte da renovação
do pensamento teológico, bem assim como filosófico: não basta explicar o ser, é
preciso descrever o agir, comoo procura fazer a fenomenologia.
Teresa segue Jesus não apenas no seu
ser, na Encarnação, no natal, mas sobretudo no seu agir, na sua Paixão, na
páscoa, que antecipa a ressurreição e manifesta de maneira espetacular, é seu
lado barroco, a exigência de total e exclusiva fidelidade de cada um de nós à
vontade divina. A perfeição, que coroa o agirm, é fruto de nosso livre e
efetivo acolhimento à divina vontade do Pai.
É o que explica longamente no seu
comentário ao “venha o teu Reino e faça-se a tua vontade” da petição do Pai
nosso. Não basta pedir.
Fazendo
o Pai aquilo que Lhe pedis, nos dá a possibilidade de cumprir aquilo que nos
ensina a pedir, pois feita a terra céu, será possível fazer-se em nós a sua
vontade. Sem esta transformação da terra em céu, não é possível compreender
como se faria na minha, a tua vontade (cf.
Caminho, 32,2)
O dom do Reino, a graça, comunicação da
santidade divina, torna possível agir divinamente na terra, cumprir livremente
a vontade divina e alcançar assim, psicológica e moralmente, a perfeição, nossa
libertação.
Teresa passa então a descrever o que é a vontade de Deus:
Quero
agora avisá-las e recordar em que consiste a vontade de Deus [...] Para
ver como o Pai procede com os que Lhe pedem
que se cumpra a sua vontade, perguntem-no a seu glorioso Filho. Na
oração do Horto, vendo a determinação do Filho, o Pai cumpriu sua vontade nEle:
deu Lhe trabalhos, dores, injúrias e perseguições, até que se Lhe acabou a
vida, com a morte da cruz (cf. Caminho, 32,6).
Não basta pedir que se cumpra a vontade
do Pai, é preciso agir segundo a vontade do Pai, acolher com amor todos os
trabalhos que nos oferece, a exemplo de Jesus que, no horto, acolheu a paixão e
a morte na cruz.
Todos
os avisos que lhes tenho dado neste livro, O Caminho, vão dirigidos a
nos darmos de todo ao Criador, e pôr a nossa vontade na Sua; desapegarmo-nos
das criaturas [...] a fim de nos dispormos para percorrer rápidos o caminho e beber da água viva. Sem nos darmos
totalmente à sua vontade, jamais nos dará a beber dessa água, que é a contemplação, sobre a qual vocês me pediram
lhes escrevesse (ib. 32,9).
Observe-se aqui a nota de totalidade, e o sentido do termo contemplação que significa oração, o
“trato de amizade com Deus”, a que está ordenada toda a vida conventual, que
favorece o acolhimento do dom de colocar toda vontade própria na vontade do
Senhor.
Ó
irmãs minhas, que força tem este dom! Quando se vai com a determinação com que
se deve ir, não pode menos do que trazer o Todo-Poderoso a ser um com a nossa
baixeza e transformar-nos em Si, faz a união do Criador com a criatura (cf. Caminho, 32,11).
Dou-lhes,
porém, este aviso: não pensem chegar aqui por sua força e diligência. É inútil.
Mesmo que antes sentissem devoção, ficariam frias. É indispensável, para tudo
vencer, dizer, com simplicidade e humildade: fiat voluntas tua! (ib. 32,14).
O caminho de Teresa são, pois, as
experiências subjetivas pelas quais interiormente aceitamos de ser preparados
por Deus para viver desde agora, nessa vida mortal, na intimidade, habitando na
morada mais secreta de nossa alma, onde está a Trindade, como vai expor nas Moradas, seu segundo grande manual de espiritualidade.
A
intercessão
Antes de analisarmos o caminho de Teresa
em si mesmo, voltado para a contemplação, a intimidade com Deus, convém
registrar o perfil de austeridade de que historicamente se revestiu a tradição
carmelita, no seio da tradição monástica.
A austeridade carmelita, para Teresa,
não é fruto de sua visão essencial da vida espiritual, culminando na perfeita
intimidade com Deus, mas uma forma de se associar à vida da Igreja, que
combatia em duas frentes, a externa, em face dos desafios das descobertas do
novo mundo, e a interna, contra as pretensões dos reformadores.
Já mencionamos as raízes monásticas da
ideia reformadora de Teresa: ela quer um mosteiro de verdade, que volte às
origens da Ordem. Procuraremos mostrar em seguida o alcance desse princípio.
Mencionamos também o reconhecimento, pelo monaquismo, de seu papel intercessor.
Mas nos parece necessário sublinhar desde já a fisionomia própria que esse
papel adquire no projeto teresiano.
Basta ler, na verdade, o primeiro
capítulo do Caminho:
No
princípio da fundação deste mosteiro (pelos motivos referidos no livro que
escrevi e onde referi algumas grandezas do Senhor, em que Ele deu a entender o
muito que seria servido nesta casa), não era minha intenção que houvesse tanto
rigor no exterior, nem que fosse sem renda; antes quisera que houvesse
possibilidades para que nada nos faltasse (Caminho, 1,1).
Teresa, embora reconheça que não
procurava sua própria comodidade fundando seu
mosteiro, também não pensava, ao que deixa transparecer, em dar maior
ênfase ao aspecto de austeridade, que acabou se destacando:
Agia
como fraca e ruim, embora animada por bons intentos e não visasse tanto à minha
satisfação
(ib.)
Mas as condições históricas da Igreja
reclamavam, aos olhos de Teresa, um empenho maior:
Neste
tempo, chegaram-me notícias dos danos e prejuízos causados em França por estes
luteranos e quanto crescia esta desventurada seita. Deu-me grande pesar e, como
se eu pudesse ou fosse alguma coisa, chorava com o Senhor e suplicava-Lhe
pusesse remédio a tanto mal.
Parecia-me
que mil vidas daria para remédio de uma alma, das muitas que ali se perdiam. E,
como me vi mulher, ruim e impossibilitada de trabalhar como eu quisera, no serviço
do Senhor, toda a minha ânsia era, e ainda é, pois Ele tem tantos inimigos e
tão poucos amigos, que estes fossem bons. Determinei-me, pois, fazer o pouco
que está em minha mão: seguir os conselhos evangélicos com toda a perfeição que
eu pudesse e procurar que estas poucas irmãs que aqui estão fizessem o mesmo (Caminho, 1,2).
Na sua relação pessoal com Deus, de uma
forma bem feminina, ela pensa agradar ao seu esposo, que tantas agressões
recebe dos hereges e que tanto sofre por causa das almas que se perdem, ao se determinar a deixar tudo, seguindo, de
maneira radical, os conselhos evangélicos de pobreza, virgindade e obediência.
No convento, ainda que poucas, todas as
irmãs,
ocupadas em oração pelos defensores da Igreja
e pregadores e letrados, ajudam como podem ao Senhor que faz tanto bem e é
atribulado por estes traidores que parecem querer de novo pregá-lo na cruz (ib.)
Ó
Redentor meu! Meu coração não pode vê-lo sem muito se afligir! Que é isto agora cristãos? Hão de ser sempre os que mais
Vos devem os que Vos aflijam? Aqueles a quem melhores obras fazeis, aos que
escolheis para Vossos amigos, entre quem andais e Vos comunicais pelos Sacramentos?
Não estão ainda fartos dos tormentos que por eles passastes? (Caminho, 1,3)
Convencida de que a determinação de
viver totalmente para Deus faz-nos participar do ato de amor total do Filho
Jesus, entregando-se ao Pai “por nós homens e por nossa salvação” (cf. Credo) que nos salvou, tornando-nos
a todos agradáveis a Deus, Teresa completa o perfil de sua intercessão, vivendo
a mesma totalidade do amor na prática radical dos conselhos evangélicos:
Ó
irmãs minhas em Cristo! Ajudem-me a suplicar isto ao Senhor, que para isto as
juntou Ele aqui. Esta é a sua vocação; estes hão de ser os seus negócios; estes
hão de ser os seus desejos; aqui as suas lágrimas; estas as suas petições [...]
O mundo está ardendo, querem tornar a condenar Cristo, como dizem, pois Lhe
levantam mil falsos testemunhos; querem deitar por terra a sua Igreja, e
havemos de gastar tempo em coisas do mundo? Não, minhas irmãs, não é tempo de
tratar com Deus negócios de pouca importância (Caminho, 1,5).
Concluindo
A distinção operada por Teresa no início
do Caminho, entre o rigor no exterior (sem renda e
clausura), desde que a forma adotada permitisse
que nada lhes faltasse (Caminho, 1,1) e sua decisão final, dada
a situação histórica em que se encontrava a Igreja, exprime, em germe, uma
preocupação que vai atravessar a vida da Igreja na modernidade e que se tornou
explícita no Vaticano II: pensar a vida consagrada, inclusive contemplativa,
levando em conta as exigências da época em que vivemos.
Essa preocupação se prende à nossa
condição histórica, como veio a ser colocada: é o cerne da questão da relação
da Igreja com o mundo. Não se pode hoje falar em renovação da Igreja nem de
vida consagrada ou de espiritualidade cristã, sem ter em vista as condições da
humanidade no tempo em que vivemos.
Essa visão realista das condições
históricas da humanidade é talvez o traço mais profundo da vinculação de Teresa
à tradição monástica, mas das menos visíveis na leitura de sua obra, sobretudo
pelos autores que buscam explicações de ordem puramente culturais, históricas,
culturais, psicológicas ou mesmo psiquiátricas de suas experiências
espirituais. O tema pode até parecer polêmico, mas não podemos deixar de
abordá-lo, quando nos propomos fazer uma análise teológica de sua pedagogia
espiritual. Dedicamos-lhe, em seguida, breve reflexão.
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