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domingo, 22 de março de 2015

500 Anos de Santa Teresa de Jesus. (3ª Parte)


ASSEMBLEIA DE ESPIRITUALIDADE DOS CARMELITAS
- Província Carmelitana de Santo Elias-
Belo Horizonte- MG. Casa de Retiro São José. De 26 -30 de janeiro-2015.
Tema: 500 Anos de Santa Teresa de Jesus.
Pregador: Professor Francisco Catão, São Paulo.


A pedagogia de Santa Teresa de Jesus vista por um teólogo nos dias de hoje
Por Professor Francisco Catão, São Paulo.


3ª Parte: O Caminho de Teresa.

Teresa completava 41 anos. Sua vida espiritual atingira a maturidade. Assistida por diversos “letrados”, principalmente dominicanos e jesuítas, sentira necessidade de harmonizar a vida conventual com as exigências da oração.
Sonhou, então com um pequeno mosteiro em que as religiosas não fossem tão numerosas, podendo se conhecer pessoalmente e se amar de fato, umas às outras, ao contrário do mosteiro onde  vivia, com quase 200 religiosas que praticamente se ignoravam como pessoas, dando prioridade às observâncias claustrais e ao culto, e em que as amizades pareciam sempre suspeitas.
O importante para Teresa era que, na comunidade, o amor tivesse sempre a primazia – “vede como se amam!” dizia-se dos primeiros cristãos – amor sobre cujas bases as religiosas pudessem edificar sua vida pessoal de intimidade com Deus, que vem a nós na pessoa do próximo.
É importante registrar essa percepção de Teresa, como que antecipando nossos tempos, em que a necessidade de centrar o Evangelho no amor do próximo é posta em evidência pelo papa Francisco, que vê, no segundo mandamento, o caminho que nos leva ao primeiro de acordo o Evangelho, que o qualifica de “semelhante ao primeiro”(cf. Mt 22,39).
Além de favorecer a perfeição da santidade, um convento assim constituído seria como que um reduto da fidelidade a Jesus, capaz de sustentar espiritualmente a Igreja no combate que travava contra o assédio dos reformadores. Cumprir-se-ia assim a missão de intercessão, que já os monges antigos se atribuíam, de sustentáculo do mundo -
No sonho de Teresa, despontavam a segurança teológica, carisma da futura Doutora da Igreja, a lucidez e a coragem, a habilidade e a perseverança da fundadora. O novo mosteiro nasceu na própria Ávila, São José, como primeiro de um rosário de 17 fundações até a de Alba de Torres, pouco antes de sua morte, em 1582.
Para realizar seu projeto, Teresa adota a “regra primitiva”, que justifica a volta ao monaquismo das origens carmelitas. Interpreta-a, porém a seu modo, pondo em prática seu gênio de priora e formadora, contando, principalmente, com sua própria experiência, mais do que com qualquer teoria ou ideal preconcebido.
Nada mais simples: visa diretamente às jovens monjas de São José, que convencem Teresa a colocar por escrito seus ensinamentos e conselhos sobre a oração, dando origem à sua primeira obra espiritual destinada a ser divulgada. Sanciona, de próprio punho, o título sob o qual passa a ser conhecida: O caminho de perfeição (1566/7).

A caminho da perfeição.
O caminho de perfeição, nas suas duas redações e em seus primeiros apógrafos, foi acompanhado de perto pela autora, como nenhum outro escrito teresiano, reconhecem-no os especialistas (cf. Tomás Álvarez, p. 165).
Ela mesma segue os ensinamentos que transmite no desempenho de suas funções de superiora e priora, conferindo-lhes uma autoridade única, como norma a ser observada nos carmelos reformados, primeiro femininos e depois, também masculinos. Daí se poder considerar o Caminho, como expressão fidedigna do ensinamento espiritual de Teresa. Nele nos baseamos.
Comecemos pelo título. Aparece pela primeira vez no autógrafo original, conhecido como Manuscrito de Valladolid, inserido no título que lhe havia dado Teresa, que o sancionou, porém, quando reviu a cópia manuscrita de Toledo, em 1579, nos últimos anos de sua vida (ib.). Temos o direito de nos perguntar que entendia Teresa por “caminho de perfeição”?
A ideia de caminho para designar o curso que segue nossa vida pessoal e da comunidade cristã é genuinamente bíblica. Prende-se, talvez à condição nômade do povo hebreu: Abrão se pôs a caminho a chamado de Deus (Gn 12,1-5). A metáfora ganhou toda sua importância com a narrativa fundadora do Êxodo e da marcha através do deserto até a terra prometida.
 Mais tarde, os salmos e toda a literatura sapiencial, falam do caminho a ser trilhado por todo verdadeiro israelita: o Ensinamento (Torá) de Deus, lembrando que qualquer outro caminho conduz à ruína e ao fracasso.
No Novo Testamento, no entanto, o Caminho é Jesus como o reconhece o quarto evangelista (cf. Jo 14,6). Teríamos o direito de nos perguntar até que ponto Teresa se refere a Jesus, quando escreve o caminho? Somos pela resposta afrmativa, pelo menos indiretamente, pois é Jesus que lhe inspira o caminho, na sua estrutura e até nas particularidades de suas observações sobre as exigências da perfeição, assim como a fidelidade a Jesus, no seio do judaísmo, levou as primeiras comunidades cristãs a se designarem simplesmente como o caminho (cf. At 9,2; 18,25; 24,22), velando de certo modo o mistério da Igreja, ainda no seio do judaísmo.
Para exprimir a novidade de seu projeto, sem romper com a tradição carmelita vigente no seu Mosteiro da Encarnação, Teresa adotou a designação de caminho para caracterizar seu escrito, velando o alcance fundador de seus ensinamentos.
São José de Ávila e todas as fundações que se seguiram, são comprovações práticas de  O Caminho: mosteiros organizados em vista da perfeita união com o Esposo. Concebiam-se como um caminho de perfeição, a ser livre e generosamente abraçado por todos os que se sentissem chamados a seguir Jesus até o fim, até o Horto e a Cruz, colocando a oração no centro de sua vida, em outros termos, a viver toda a vida centrada na intimidade com Deus,  buscando  verdadeiramente a Deus – si revera Deum quaerit – na expressão da Regra Monástica (Regra de são Bento, c. 58).
Mas o que entende Teresa por perfeição? Ela certamente se deixou impressionar pelo ensinamento de Jesus no sermão da montanha: “Sede perfeitos como vosso Pai celeste é perfeito” (Mt 5,48), que ocupa no Novo Testamento lugar equivalente ao “Sereis santos porque Eu sou santo” (Lv 11,45; 19,2) da Torá.
Teresa conhece a interpretação generalizada na tradição teológica, que vê a santidade a que somos chamados como participação na vida de Deus. Mas vai além. Não se detém na esfera do ser, ocupa-se da perfeição do agir. Mudança de perspectiva nem sempre levada em conta pelos intérpretes, que comanda, por outro lado, grande parte da renovação do pensamento teológico, bem assim como filosófico: não basta explicar o ser, é preciso descrever o agir, comoo procura fazer a fenomenologia.
Teresa segue Jesus não apenas no seu ser, na Encarnação, no natal, mas sobretudo no seu agir, na sua Paixão, na páscoa, que antecipa a ressurreição e manifesta de maneira espetacular, é seu lado barroco, a exigência de total e exclusiva fidelidade de cada um de nós à vontade divina. A perfeição, que coroa o agirm, é fruto de nosso livre e efetivo acolhimento à divina vontade do Pai.
É o que explica longamente no seu comentário ao “venha o teu Reino e faça-se a tua vontade” da petição do Pai nosso. Não basta pedir.
Fazendo o Pai aquilo que Lhe pedis, nos dá a possibilidade de cumprir aquilo que nos ensina a pedir, pois feita a terra céu, será possível fazer-se em nós a sua vontade. Sem esta transformação da terra em céu, não é possível compreender como se faria na minha, a tua vontade (cf. Caminho, 32,2)
O dom do Reino, a graça, comunicação da santidade divina, torna possível agir divinamente na terra, cumprir livremente a vontade divina e alcançar assim, psicológica e moralmente, a perfeição, nossa libertação.
Teresa passa então a descrever o que é a vontade de Deus:
Quero agora avisá-las  e recordar  em que consiste a vontade de Deus [...] Para ver como o Pai procede com os que Lhe pedem  que se cumpra a sua vontade, perguntem-no a seu glorioso Filho. Na oração do Horto, vendo a determinação do Filho, o Pai cumpriu sua vontade nEle: deu Lhe trabalhos, dores, injúrias e perseguições, até que se Lhe acabou a vida, com a morte da cruz (cf. Caminho, 32,6).
Não basta pedir que se cumpra a vontade do Pai, é preciso agir segundo a vontade do Pai, acolher com amor todos os trabalhos que nos oferece, a exemplo de Jesus que, no horto, acolheu a paixão e a morte na cruz.
Todos os avisos que lhes tenho dado neste livro, O Caminho, vão dirigidos a nos darmos de todo ao Criador, e pôr a nossa vontade na Sua; desapegarmo-nos das criaturas [...] a fim de nos dispormos para percorrer rápidos o caminho e beber da água viva. Sem nos darmos totalmente à sua vontade, jamais nos dará a beber dessa água, que  é a contemplação, sobre a qual vocês me pediram lhes escrevesse (ib. 32,9).
Observe-se aqui a nota de totalidade, e o sentido do termo contemplação que significa oração, o “trato de amizade com Deus”, a que está ordenada toda a vida conventual, que favorece o acolhimento do dom de colocar toda vontade própria na vontade do Senhor.
Ó irmãs minhas, que força tem este dom! Quando se vai com a determinação com que se deve ir, não pode menos do que trazer o Todo-Poderoso a ser um com a nossa baixeza e transformar-nos em Si, faz a união do Criador com a criatura (cf. Caminho, 32,11).
Dou-lhes, porém, este aviso: não pensem chegar aqui por sua força e diligência. É inútil. Mesmo que antes sentissem devoção, ficariam frias. É indispensável, para tudo vencer, dizer, com simplicidade e humildade: fiat voluntas tua! (ib. 32,14).
O caminho de Teresa são, pois, as experiências subjetivas pelas quais interiormente aceitamos de ser preparados por Deus para viver desde agora, nessa vida mortal, na intimidade, habitando na morada mais secreta de nossa alma, onde está a Trindade, como vai expor nas Moradas, seu segundo grande manual de espiritualidade.

A intercessão
Antes de analisarmos o caminho de Teresa em si mesmo, voltado para a contemplação, a intimidade com Deus, convém registrar o perfil de austeridade de que historicamente se revestiu a tradição carmelita, no seio da tradição monástica.
A austeridade carmelita, para Teresa, não é fruto de sua visão essencial da vida espiritual, culminando na perfeita intimidade com Deus, mas uma forma de se associar à vida da Igreja, que combatia em duas frentes, a externa, em face dos desafios das descobertas do novo mundo, e a interna, contra as pretensões dos reformadores.
Já mencionamos as raízes monásticas da ideia reformadora de Teresa: ela quer um mosteiro de verdade, que volte às origens da Ordem. Procuraremos mostrar em seguida o alcance desse princípio. Mencionamos também o reconhecimento, pelo monaquismo, de seu papel intercessor. Mas nos parece necessário sublinhar desde já a fisionomia própria que esse papel adquire no projeto teresiano.
Basta ler, na verdade, o primeiro capítulo do Caminho:
No princípio da fundação deste mosteiro (pelos motivos referidos no livro que escrevi e onde referi algumas grandezas do Senhor, em que Ele deu a entender o muito que seria servido nesta casa), não era minha intenção que houvesse tanto rigor no exterior, nem que fosse sem renda; antes quisera que houvesse possibilidades para que nada nos faltasse (Caminho, 1,1).
Teresa, embora reconheça que não procurava sua própria comodidade fundando seu mosteiro, também não pensava, ao que deixa transparecer, em dar maior ênfase ao aspecto de austeridade, que acabou se destacando:
Agia como fraca e ruim, embora animada por bons intentos e não visasse tanto à minha satisfação (ib.)
Mas as condições históricas da Igreja reclamavam, aos olhos de Teresa, um empenho maior:
Neste tempo, chegaram-me notícias dos danos e prejuízos causados em França por estes luteranos e quanto crescia esta desventurada seita. Deu-me grande pesar e, como se eu pudesse ou fosse alguma coisa, chorava com o Senhor e suplicava-Lhe pusesse remédio a tanto mal.
Parecia-me que mil vidas daria para remédio de uma alma, das muitas que ali se perdiam. E, como me vi mulher, ruim e impossibilitada de trabalhar como eu quisera, no serviço do Senhor, toda a minha ânsia era, e ainda é, pois Ele tem tantos inimigos e tão poucos amigos, que estes fossem bons. Determinei-me, pois, fazer o pouco que está em minha mão: seguir os conselhos evangélicos com toda a perfeição que eu pudesse e procurar que estas poucas irmãs que aqui estão fizessem o mesmo (Caminho, 1,2).
Na sua relação pessoal com Deus, de uma forma bem feminina, ela pensa agradar ao seu esposo, que tantas agressões recebe dos hereges e que tanto sofre por causa das almas que se perdem, ao se determinar a deixar tudo, seguindo, de maneira radical, os conselhos evangélicos de pobreza, virgindade e obediência.
No convento, ainda que poucas, todas as irmãs,
 ocupadas em oração pelos defensores da Igreja e pregadores e letrados, ajudam como podem ao Senhor que faz tanto bem e é atribulado por estes traidores que parecem querer de novo pregá-lo na cruz (ib.)
Ó Redentor meu! Meu coração não pode vê-lo sem muito se afligir! Que é isto  agora cristãos? Hão de ser sempre os que mais Vos devem os que Vos aflijam? Aqueles a quem melhores obras fazeis, aos que escolheis para Vossos amigos, entre quem andais e Vos comunicais pelos Sacramentos? Não estão ainda fartos dos tormentos que por eles passastes? (Caminho, 1,3)
Convencida de que a determinação de viver totalmente para Deus faz-nos participar do ato de amor total do Filho Jesus, entregando-se ao Pai “por nós homens e por nossa salvação” (cf. Credo) que nos salvou, tornando-nos a todos agradáveis a Deus, Teresa completa o perfil de sua intercessão, vivendo a mesma totalidade do amor na prática radical dos conselhos evangélicos:
Ó irmãs minhas em Cristo! Ajudem-me a suplicar isto ao Senhor, que para isto as juntou Ele aqui. Esta é a sua vocação; estes hão de ser os seus negócios; estes hão de ser os seus desejos; aqui as suas lágrimas; estas as suas petições [...] O mundo está ardendo, querem tornar a condenar Cristo, como dizem, pois Lhe levantam mil falsos testemunhos; querem deitar por terra a sua Igreja, e havemos de gastar tempo em coisas do mundo? Não, minhas irmãs, não é tempo de tratar com Deus negócios de pouca importância (Caminho, 1,5).

Concluindo
A distinção operada por Teresa no início do Caminho, entre o rigor no exterior (sem renda e clausura), desde que a forma adotada permitisse que nada lhes faltasse (Caminho, 1,1) e sua decisão final, dada a situação histórica em que se encontrava a Igreja, exprime, em germe, uma preocupação que vai atravessar a vida da Igreja na modernidade e que se tornou explícita no Vaticano II: pensar a vida consagrada, inclusive contemplativa, levando em conta as exigências da época em que vivemos.
Essa preocupação se prende à nossa condição histórica, como veio a ser colocada: é o cerne da questão da relação da Igreja com o mundo. Não se pode hoje falar em renovação da Igreja nem de vida consagrada ou de espiritualidade cristã, sem ter em vista as condições da humanidade no tempo em que vivemos.

Essa visão realista das condições históricas da humanidade é talvez o traço mais profundo da vinculação de Teresa à tradição monástica, mas das menos visíveis na leitura de sua obra, sobretudo pelos autores que buscam explicações de ordem puramente culturais, históricas, culturais, psicológicas ou mesmo psiquiátricas de suas experiências espirituais. O tema pode até parecer polêmico, mas não podemos deixar de abordá-lo, quando nos propomos fazer uma análise teológica de sua pedagogia espiritual. Dedicamos-lhe, em seguida, breve reflexão.

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