Publicamos a seguir a íntegra do
Relatório do Sínodo dos Bispos sobre a Família. O relatório pode ser lido no
original italiano aqui. A presente tradução foi feita por Família Cristã,
13-11-2014.
Eis o relatório.
INTRODUÇÃO
I
PARTE
A escuta: o contexto e os desafios sobre
a família
O contexto sociocultural
A relevância da vida afetiva
O desafio às pastorais
II
PARTE
O olhar em Cristo: o Evangelho da
família
O olhar em Jesus e a pedagogia divina na
história da salvação
A família no desígnio salvífico de Deus
A família nos documentos da Igreja
A indissolubilidade do matrimônio e a
alegria de viver junto
Verdade e beleza da família e
misericórdia para com as famílias feridas e fragilizadas
III
PARTE
O
confronto: perspectivas pastorais
Anunciar o Evangelho da família hoje nos
diferentes contextos
Guiar os nubentes no caminho de
preparação ao matrimônio
Acompanhar os primeiros anos da vida
matrimonial
Cuidados pastorais para com aqueles que
vivem o matrimônio civil ou em convivência
Curar as famílias feridas (separados,
divorciados não casados novamente, família monoparentais)
A atenção pastoral para com as pessoas
de orientação homosexual
A transmissão da vida e o desafio da
nãonatalidade
O desafio da educação e o papel da
família na evangelização
CONCLUSÃO
INTRODUÇÃO
1. O Sínodo dos Bispos, reunido com o
Papa, reflete sobre todas as famílias do mundo, com suas alegrias, fadigas e
esperanças. Ele sente, de modo particular, o dever de agradecer a Deus a
generosa fidelidade com que tantas famílias cristãs correspondem à sua vocação
e missão. E o fazem com alegria e fé, também quando o caminho lhe oferece
obstáculos, incompreensões e sofrimentos.
A essas famílias dirigimos o apreço, o
agradecimento e o encorajamento de toda a Igreja e deste Sínodo. Na vigília de
oração celebrada na Praça São Pedro, no sábado, 4 de outubro, sobre a família,
o Papa Francisco evocou de maneira simples e concreta a centralidade da
experiência da família na vida de todos. Disse o seguinte: “Já cai a noite
sobre a nossa assembleia. É hora em que se volta de boa vontade para casa, a
fim de reencontrar-se à mesma mesa, na segurança dos afetos, do bem realizado e
recebido, nos encontros que aquecem o coração e o fazem crescer, com o vinho
bom que antecipa nos dias do homem a festa que não termina. É também a hora
mais difícil para quem se reencontra com a própria solidão, no crepúsculo
amargo dos sonhos e dos projetos fracassados: quantas pessoas arrastam os dias
no beco sem saída da resignação, do abandono, ou mesmo do rancor; em quantas
casas falta o vinho da alegria, portanto, o sabor – a sabedoria mesma – da vida
[...] De uns e de outros, lembramos esta noite com a nossa oração, uma oração
por todos”.
2. Fonte de alegrias e de provas, de
afetos profundos e de relações, por vezes feridas, a família é de fato “escola
de humanidade” (Gaudium et Spes, 52), da qual se sente fortemente necessidade.
Não obstante sejam tantos os sinais de crise da instituição familiar nos vários
contextos da “aldeia global”, o desejo de família permanece vivo, especialmente
entre os jovens, e motiva a Igreja, especialista em humanidade e fiel à sua
missão, a anunciar constantemente e com profunda convicção o “Evangelho da
família”, que lhe foi confiado mediante a revelação do amor de Deus em Jesus
Cristo e, ininterruptamente, ensinado pelos Padres, pelos Mestres de espiritualidade
e pelo Magistério da Igreja.
Para a Igreja, a família assume uma
importância toda particular, e, no momento em que todos os fiéis são convidados
a sair de si mesmos, é preciso que a família se redescubra como sujeito
imprescindível para a evangelização. Lembramos o testemunho missionário de
tantas famílias.
3. Sobre a realidade da família,
decisiva e preciosa, o Bispo de Roma convidou o Sínodo dos Bispos a refletir na
Assembleia Geral Extraordinária de outubro de 2014, para aprofundar depois tal
reflexão na Assembleia Geral Ordinária, que acontecerá em outubro de 2015, além
do ano inteiro que decorre entre os dois eventos sinodais. “O próprio reunir-se
todos em torno do Bispo de Roma já é um evento de graça, em que a colegialidade
episcopal se manifesta num sentido de discernimento espiritual e episcopal.”
Foi assim que o Papa Francisco descreveu a experiência do Sínodo, indicando-lhe
as finalidades na dúplice escuta dos sinais de Deus e da história dos homens e
na dúplice e única fidelidade que daí deriva.
4. À luz dessas palavras, recolhemos os
resultados de nossas reflexões e dos nossos diálogos, nas três partes que
seguem: a escuta, para contemplar a realidade da família hoje, na complexidade
de suas luzes e sombras; o olhar fixo em Cristo, a fim de repensar, com
renovado frescor e entusiasmo, tudo quanto a revelação, transmitida pela fé da
Igreja, nos diz sobre a beleza, sobre a finalidade e dignidade da família; o
confronto, à luz do Senhor Jesus, a fim de discernir os caminhos pelos quais
renovar a Igreja, e a sociedade, no seu empenho pela família, fundada sobre o
matrimônio entre homem e mulher.
I
PARTE
A
escuta: o contexto e os desafios sobre a família
O
contexto sociocultural
5. Fiéis ao ensinamento de Cristo,
contemplamos a realidade da família hoje, em toda a sua complexidade, nas suas
luzes e nas suas sombras. Pensamos nos pais, nos avós, nos irmãos e irmãs, nos
parentes próximos e distantes e nos laços entre duas famílias que todo
matrimônio une. A mudança antropológico-cultural influencia todos os aspectos
da vida e requer uma aproximação analítica e diversificada. Ressaltam-se, antes
de tudo, os aspectos positivos: maior liberdade de expressão e melhor
reconhecimento dos direitos da mulher e da criança, ao menos em algumas
regiões. Mas, por outro lado, é preciso considerar também o crescente perigo
representado pelo individualismo exasperado, que desnatura os laços familiares
e acaba por considerar cada membro da família como se fosse uma ilha, e faz
prevalecer em certos casos a ideia de um sujeito que se constrói segundo os
próprios desejos, assumidos como um absoluto. A isso, acrescenta-se a crise da
fé que atinge tantos católicos e, com frequência, está na origem das crises do
casamento e da família.
6. Uma das maiores pobrezas da cultura
atual é a solidão, fruto da ausência de Deus na vida das pessoas, bem como da
fragilidade das relações. Existe uma sensação geral de impotência, perante a
realidade socioeconômica que frequentemente acaba por destruir as famílias.
Dessa forma, é pela crescente pobreza e precariedade de trabalho que ela vive
por vezes como um verdadeiro pesadelo, ou por razão de um rigor por demais
pesado que certamente desencoraja os jovens para o matrimônio. Com frequência,
as famílias se sentem abandonadas pelo desinteresse ou pela pouca atenção da
parte das instituições. As consequências negativas do ponto de vista da
organização social são evidentes: da crise demográfica às dificuldades
educacionais, da dificuldade em acolher a vida nascente até o perceber a
presença dos anciãos como um peso, até mesmo a difundir um mal-estar afetivo
que chega por vezes até a violência. É responsabilidade do Estado criar
condições, através de leis e de trabalho a fim de garantir o futuro dos jovens
e ajudá-los a realizar seu projeto de fundar uma família.
7. Há contextos culturais e religiosos
que propõem desafios particulares. Em algumas sociedades, ainda vigora a
prática da poligamia e, em alguns contextos tradicionais, a prática do
“matrimônio por etapa”. Em outros contextos, permanece a prática dos
matrimônios combinados. Nos países em que a Igreja católica é minoritária, são
numerosos os matrimônios mistos e de disparidade de culto, com todas as
dificuldades que isto comporta em relação à configuração jurídica, ao batismo e
à educação dos filhos e ao recíproco respeito do ponto de vista da diversidade
da fé. Nesses matrimônios, pode existir o perigo do relativismo ou da
indiferença, mas pode haver também a possibilidade de favorecer o espírito
ecumênico ou o diálogo inter-religioso, numa harmoniosa convivência de
comunidade que vive no mesmo lugar. Em muitos contextos, e não somente no
Ocidente, vai-se difundindo amplamente a práxis da convivência que precede o
matrimônio, ou, ainda, de convivência não orientada para assumir a forma de um
vínculo institucional. A isso se acrescente frequentemente uma legislação civil
que compromete o matrimônio e a família. Por causa da secularização, em muitas
partes do mundo, a referência a Deus é fortemente diminuta e a fé não é mais
partilhada socialmente.
8. Muitas são as crianças que nascem
fora do casamento, especialmente em alguns países, e muitas crescem com um só
dos pais, ou num contexto familiar alargado ou reconstituído. O número de
divórcios é crescente e, não raro, é o caso de escolhas determinadas unicamente
por fatores de ordem econômica. As crianças são frequentemente objeto de
contendas entre os pais, e os filhos são as verdadeiras vítimas das
dilacerações familiares. Os pais frequentemente estão ausentes, não só por
questões econômicas, em situações em que se percebe a necessidade de
assumiremclaramente a responsabilidade pelos filhos e pela família. A dignidade
da mulher precisa ser defendida e promovida. De fato, hoje, em muitos contextos
a mulher é objeto de discriminação e, ainda, o dom da maternidade é com
frequência penalizado, e não apresentado como valor. Não são nem mesmo
esquecidos os crescentes fenômenos de violência dos quais a mulher é a vítima,
e por vezes até mesmo no seio da família, e a grave e difundida mutilação
genital da mulher em algumas culturas. O desfrute sexual da infância constitui
uma realidade das mais escandalosas e perversas da sociedade atual. Também as
sociedades atingidas pela violência por causa da guerra, do terrorismo ou da
presença da criminalidade organizada, assistem a situações familiares
deterioradas, sobretudo nas grandes metrópoles; e nas suas periferias cresce o
assim chamado fenômeno das crianças prostituídas. A migração também representa
outro sinal dos tempos a ser enfrentada com toda a carga de consequências na
vida familiar.
A
relevância da vida afetiva
9. Diante desse quadro social delineado,
encontram-se em muitas partes do mundo, nos particulares, uma necessidade maior
de cuidar da própria pessoa, de conhecer-se interiormente, de viver melhor em
sintonia com as próprias emoções e os próprios sentimentos, de buscar relações
afetivas de qualidade; essa justa aspiração pode levar ao desejo de empenhar-se
na construção de relações de doação e reciprocidades criativas, responsáveis e
solidárias, tais como as familiares. O perigo do individualismo e o risco de
viver de forma egoísta são grandes. O desafio para a Igreja é de ajudar os
casais no amadurecimento da dimensão emocional e o desenvolvimento afetivo,
mediante a promoção do diálogo, da virtude e da confiança no amor
misericordioso de Deus. O pleno desenvolvimento exigido pelo matrimônio cristão
pode ser um forte antídoto contra a tentação do individualismo egoísta.
10. No mundo de hoje, não faltam
tendências culturais que parecem impor uma afetividade sem limites, de que se
querem explorar todas as consequências, também aquelas mais complexas. De fato,
a questão da fragilidade afetiva é de grande atualidade: uma afetividade
narcisista, instável e mutável, que nem sempre ajuda os sujeitos a atingirem
maior maturidade. É preocupante certa divulgação da pornografia e da
comercialização do corpo, favorecida também pelo uso distorcido da internet e
que denuncia a situação daquelas pessoas que são obrigadas a praticar a
prostituição. Nesse contexto, os casais são por vezes inseguros, hesitantes, e
têm de se esforçar para encontrar as maneiras de crescer. Muitos são aqueles
que tendem a permanecer nos estados primários da vida emocional e sexual. A
crise dos casais desestabiliza a família e pode levar até à separação, e os
divórcios produzem sérias consequências sobre os adultos, os filhos e a
sociedade, enfraquecendo o indivíduo e os laços sociais. Também a queda
demográfica, causada por uma mentalidade contrária à natalidade e promovida por
uma política mundial de saúde reprodutiva, não somente determina uma situação
em que a sucessão das gerações não é mais assegurada, mas arrisca conduzir ao
longo do tempo um empobrecimento econômico e a uma perda de esperança no
futuro. O desenvolvimento das biotecnologias têm tido também um forte impacto
na natalidade.
O
desafio às pastorais
11. Nesse contexto, a Igreja sente
necessidade de dizer uma palavra de verdade e de esperança. É preciso partir da
convicção de que o homem vem de Deus e, por isso, uma reflexão capaz de propor
as grandes perguntas, sobre o significado de ser homem, possa encontrar terreno
fértil nas expectativas mais profundas da humanidade. Os grandes valores do
matrimônio e da família cristã correspondem à busca que perpassa a existência
humana ainda mesmo num tempo assinalado pelo individualismo e pelo hedonismo. É
preciso acolher a pessoa na sua existência concreta, saber sustentar a busca,
encorajar o desejo de Deus e a vontade de sentir-se plenamente parte da Igreja,
também em quem experimentou o fracasso ou se encontra em situações de
segregação. A mensagem cristã traz sempre em si a realidade e a dinâmica da
misericórdia e da verdade, que convergem para Cristo.
II
PARTE
O
olhar em Cristo: o Evangelho da família
O
olhar em Jesus e a pedagogia divina na história da salvação
12. Com a finalidade de “verificar o
nosso passo no terreno dos desafios contemporâneos, a condição decisiva é a de
manter fixo o olhar em Jesus Cristo, manter-se na contemplação e na adoração da
sua face [...]. De fato, toda vez que voltamos à fonte da experiência cristã,
abrem-se de imediato novos caminhos e possibilidades impensadas” (Papa
Francisco, Discurso de 4 de outubro de 2014). Jesus olhou com amor e ternura as
mulheres e os homens que encontrou, acompanhando os seus passos com verdade,
paciência e misericórdia, ao anunciar-lhes as exigências do Reino de Deus.
13. Dado que a ordem da criação é
determinada a orientar-se para Cristo, ocorre distinguir, sem separar, os
diferentes graus mediante os quais Deus comunica à humanidade a graça da
aliança. Em razão da pedagogia divina, cuja ordem da criação envolve o da redenção
através de etapas sucessivas, é preciso compreender a novidade do sacramento
nupcial cristão, em continuidade com o matrimônio natural das origens. É assim
que se entende o modo de agir salvífico de Deus, seja na criação, seja na vida
cristã. Na criação: pois tudo foi feito por meio de Cristo e em vista dele (cf.
Cl 1,16), os cristãos “alegram-se por descobrir e prontos para respeitar
aqueles germes do Verbo que se encontram aí escondidos; devem seguir
atentamente a transformação profunda que se verifica no meio dos povos” (Ad
Gentes,11). Na vida cristã: ao passo que no batismo o crente é inserido na
Igreja mediante a Igreja doméstica, que é a sua família, ele empreende aquele
“processo dinâmico que avança gradualmente com a progressiva integração dos
dons de Deus” (Familiaris Consortio, 11), mediante a conversão contínua ao
amor, que salva do pecado e dá plenitude à vida.
14. O mesmo Jesus, referindo-se ao
desígnio primeiro do casal humano, reafirma a união indissolúvel entre o homem
e a mulher, embora dizendo que “pela dureza de vossos corações, Moisés
permitiu-vos repudiar vossas mulheres, mas no princípio não foi assim” (Mt
19,8). A indissolubilidade do matrimônio (“Portanto, aquilo que Deus uniu o
homem não separe” (Mt 19,6), não deve ser interpretada, antes de tudo como um
“jugo” imposto aos homens mas, sim, como um “dom” feito às pessoas unidas em
matrimônio. Desse modo, Jesus mostra como a condescendência divina acompanha
sempre o caminho humano, cura e transforma com a sua graça o coração endurecido,
orientando para o princípio, através do caminho da cruz. Dos Evangelhos emerge
claramente o exemplo de Jesus, que é modelo para a Igreja. De fato, Jesus
assumiu uma família, deu início aos sinais na festa nupcial de Caná, anunciou a
mensagem referente ao significado do matrimônio como plenitude da revelação,
que recupera o projeto original de Deus (cf. Mt 19,3). Mas, ao mesmo tempo, pôs
em prática a doutrina ensinada, manifestando assim o verdadeiro significado da
misericórdia. Isso aparece claramente nos encontros com a samaritana ( cf. Jo
4,1-30) e com a adúltera (cf. Jo 8,1-11), em que Jesus, numa atitude de amor
para com a pessoa pecadora, leva ao arrependimento e à conversão (“vai e não
peques mais”), condição para o perdão.
A
família no desígnio salvífico de Deus
15. As palavras de vida eterna que Jesus
deixou aos seus discípulos compreendiam o ensinamento sobre o matrimônio e a
família. Tal ensinamento de Jesus nos permite distinguir em três etapas
fundamentais o projeto de Deus sobre o matrimônio e a família. No início, há a
família de origem, quando Deus criador instituiu o primeiro matrimônio entre
Adão e Eva, como sólido fundamento da família. Deus não somente criou o ser
humano macho e fêmea (cf. Gn 1,27), mas os abençoou a fim de que fossem
fecundos e se multiplicassem (cf. Gn 1,28). Por isso, “o homem deixará seu pai
e sua mãe e se unirá à sua mulher, e os dois serão uma só carne” (Gn 2,24).
Essa união foi prejudicada pelo pecado e tornou-se a forma histórica do
matrimônio do Povo de Deus, pelo que Moisés concedeu a possibilidade de dar um
atestado de divórcio (cf. Dt 24,1ss). Tal forma era vigente no tempo de Jesus.
Com seu advento e a reconciliação do mundo decaído, graças à redenção por Ele
operada, terminou a era inaugurada com Moisés.
16. Jesus, que reconciliou consigo todas
as coisas, deu ao matrimônio sua forma original (cf. Mc 10,1-12). A família e o
matrimônio foram redimidos por Cristo (cf. Ef 5,21-32), foram restaurados à
imagem da Santíssima Trindade, mistério do qual surge todo amor verdadeiro. A
aliança esponsal, inaugurada na criação e revelada na história da salvação,
recebe a plena revelação do seu significado em Cristo e na sua Igreja. Por
Cristo, através da Igreja, o matrimônio e a família recebem a graça necessária
para testemunhar o amor de Deus e viver a vida de comunhão. O Evangelho da
família atravessa a história do mundo desde a criação do homem à imagem e
semelhança de Deus (cf. Gn 1,26-27) até o cumprimento do mistério da Aliança em
Cristo, e no fim dos séculos, com as núpcias do Cordeiro (cf. Ap 19,9; João
Paulo II, Catechesi sull´amore umano).
A
família nos documentos da Igreja
17. “No decurso dos séculos, a Igreja
não deixou faltar seu constante ensinamento sobre o matrimônio e a família. Uma
das mais altas expressões desse Magistério foi proposta pelo Concílio Ecumênico
Vaticano II, na Constituição Pastoral Gaudium et Spes, que dedica um capítulo
inteiro sobre a promoção da dignidade matrimonial e a família (cf. Gaudium et
Spes, 47-52). Este definiu o matrimônio como comunidade de vida e de amor (cf.
Gaudium et Spes, 48), pondo o amor no centro da família, e mostrou, ao mesmo
tempo, a verdade desse amor perante as diversas formas de reducionismo presente
na cultura contemporânea. O “verdadeiro amor entre homem e mulher” (Gaudium et
Spes, 49) implica mútua doação de si, inclui e integra a dimensão sexual e a
afetividade, correspondendo ao desígnio divino (cf. Gaudium et Spes, 48-49).
Além disso, Gaudium et Spes, 48, sublinha o enraizamento dos esposos em Cristo:
Cristo Senhor “Vem ao encontro dos esposos cristãos no sacramento do
matrimônio” e com eles permanece. Na encarnação, ele assume o amor humano,
purifica-o e leva-o à plenitude, e doa aos esposos, mediante o seu Espírito, a
capacidade de vivê-lo, impregnando toda a sua vida de fé, de esperança e de
caridade. Dessa forma, os esposos são como que consagrados e, mediante uma
graça própria, edificam o Corpo de Cristo e constituem uma Igreja doméstica
(cf. Lumen Gentium, 11), de modo que a Igreja, embora conservando plenamente o
seu mistério, defende a família cristã, que o manifesta de modo genuíno”
(Instrumentum Laboris, 4).
18. “Nos passos do Concílio Vaticano II,
o Magistério pontifício aprofundou a doutrina sobre o matrimônio e sobre a
família. De modo particular, Paulo VI, com a Encíclica sobre a encíclica
Humanae Vitae, evidenciou a íntima ligação entre amor conjugal e geração da
vida. São João Paulo II dedicou à família uma atenção particular através das
suas catequeses sobre o amor humano, a Carta às Famílias (Gratissimam Sane) e,
sobretudo, com a Exortação Apostólica Familiaris Consortio. Nesses documentos,
o Pontífice definiu a família como ‘caminho da Igreja’; deu uma visão de
conjunto sobre a vocação ao amor do homem e da mulher; propôs as linhas fundamentais
para a pastoral da família e para a presença da família na sociedade. De modo
particular, ao tratar da caridade conjugal (cf. Familiaris Consortio, 13),
descreveu o modo em que os cônjuges, no seu mútuo amor, recebem o dom do
Espírito de Cristo e vivem o seu chamado à santidade” (Instrumentum Laboris,
5).
19. “Bento XVI, na Encíclica Deus
Caritas Est, ele voltou ao tema da verdade do amor entre homem e mulher, que
acende-se totalmente, só à luz do amor de Cristo crucificado (cf. Deus Caritas
Est, 2). Ele salienta, que: ‘O matrimônio baseado num amor exclusivo e
definitivo torna-se o ícone do relacionamento entre Deus e seu povo e
vice-versa: maneira de Deus amar torna-se a medida do amor humano’ (Deus
Caritas Est, 11) . Além disso, na Encíclica Caritas In Veritate, destaca a
importância do amor como princípio da vida em sociedade (cf. Caritas In
Veritate, 44), um lugar onde você aprende a experiência do bem comum”
(Instrumentum Laboris, 6) .
20. “O Papa Francisco, na Encíclica
Lumen Fidei, sobre a ligação entre a família e a fé, escreve: “O encontro com
Cristo, o deixar-se guiar pelo seu amor, alarga o horizonte da existência,
doa-lhe uma esperança sólida que não desilude. A fé não é um refúgio para as
pessoas sem coragem, mas a dilatação da vida. Ela faz descobrir um grande
chamado, a vocação para o amor, e assegura que esse amor é confiável, que vale
a pena entregar-se a ele, porque o seu fundamento se encontra na fidelidade a
Deus, que é mais forte do que toda a nossa fragilidade” (Lumen Fidei, 53)”.
(Instrumentum Laboris,7).
A
indissolubilidade do matrimônio e a alegria de viver junto
21. O dom recíproco, que constitui o
matrimônio sacramental, está radicado na graça do batismo, que estabelece a
aliança fundamental de toda pessoa com Cristo na Igreja. No recíproco
acolhimento e com a graça de Cristo, os nubentes prometem-se dom total,
fidelidade e abertura para a vida, eles reconhecem como elementos constitutivos
do matrimônio os dons que Deus lhes oferece, tomando a sério o seu recíproco
empenho, em seu nome e perante a Igreja. Ora, na fé, é possível assumir os bens
do matrimônio como empenhos melhor sustentáveis, mediante a ajuda da graça do
sacramento. Deus consagra o amor dos esposos e o confirma com a
indissolubilidade, oferecendo-lhes ajuda para viver a fidelidade, a integração
recíproca e a abertura à vida. Portanto, o olhar da Igreja volta-se para os
esposos como ao coração da família inteira, que volta, também ela, o olhar para
Jesus.
22. Nessa mesma perspectiva, fazendo
nosso o ensinamento do Apóstolo, segundo o qual toda a criação foi pensada em
Cristo e em vista dele (cf. Cl 1,16), o Concílio Vaticano II quis exprimir seu
apreço ao matrimônio natural e aos elementos válidos presentes em outras
religiões (cf Nostra Aetate, 2) e nas culturas, não obstante os limites e as
insuficiências (cf Ad Gentes,11), poderia ser aplicada, por alguns aspectos,
também à realidade matrimonial e familiar de tantas culturas e de pessoas não
cristãs. Portanto, há elementos válidos também em algumas formas fora do
matrimônio cristão −, e entretanto, fundados em relações estáveis e verdadeiras
entre um homem e uma mulher −, e que, em todo caso, consideramos sejam a ele
orientados. Com o olhar voltado para a sabedoria humana dos povos e das
culturas, a Igreja reconhece também essa família como a célula básica e fecunda
da convivência humana.
Verdade
e beleza da família e misericórdia para com as famílias feridas e fragilizadas
23. Com íntima e profunda consolação, a
Igreja contempla as famílias que permanecem fiéis aos ensinamentos do
Evangelho, agradecendo-as e encorajando-as pelo testemunho que oferecem. De
fato, graças a elas, a beleza do matrimônio indissolúvel e fiel permanece
acreditável e fiel para sempre. Na família, “que se poderia chamar de Igreja
doméstica” (Lumen Gentium, 11), amadurece a primeira experiência eclesial de
comunhão entre as pessoas, na qual se reflete, pela graça, o mistério da Santa
Trindade. “É aqui que se aprende o esforço e a alegria do trabalho, o amor
fraterno, o perdão generoso, sempre renovado e, sobretudo, o culto divino
através da oração e da oferta da própria vida” (Catecismo da Igreja Católica,
1657). A Santa Família de Nazaré é o modelo admirável, em cuja escola nos
“compreendemos porque devemos ter uma disciplina espiritual, se quisermos
seguir a doutrina do Evangelho e tornar-nos discípulos de Cristo” (Paulo VI,
Discurso sobre Nazaré, 5 de janeiro 1964). O Evangelho da família alimenta
também aquelas sementes que ainda esperam para amadurecer e deve cuidar
daquelas árvores que se tornaram áridas e necessitam de cuidados.
24. A Igreja, como mestra segura e mãe
solícita, embora reconheça que para os batizados não haja outro vínculo nupcial
senão o do batismo, e que toda ruptura deste é contra a vontade de Deus, tem
consciência da fragilidade de muitos de seus filhos que sentem dificuldade no
caminho da fé. “Portanto, sem diminuir o valor do ideal evangélico, precisa
acompanhar com misericórdia e paciência as possíveis etapas de crescimento das
pessoas que se vão construindo dia por dia. [...] Um pequeno passo, em meio aos
grandes limites humanos, pode ser mais agradável a Deus do que uma vida
externamente correta que transcorre seus dias sem enfrentar maiores
dificuldades. A todos deve chegar o consolo e o estímulo do amor salvífico de
Deus, que age misteriosamente em cada pessoa, não obstante seus defeitos e suas
quedas” (Evangelii Gaudium, 44).
25. Sobre uma aproximação pastoral das
pessoas que contraíram matrimônio civil, e que são divorciados e casados pela
segunda vez, ou que simplesmente convivem, compete à Igreja revelar-lhes a
pedagogia divina da graça na sua vida e ajudá-las a chegar à plenitude no plano
de Deus para elas. Seguindo o olhar de Cristo, cuja luz brilha em todo homem
(cf. Jo,1,9; Gaudium et Spes, 22), a Igreja volta-se amorosamente para aqueles
que participam de sua vida de modo incompleto, e reconhece que a graça de Deus
age também em suas vidas, dando-lhes coragem para fazer o bem, para cuidar com
amor um do outro e estar a serviço da comunidade na qual vivem e trabalham.
26. A Igreja olha com apreensão a
desconfiança de tantos jovens para com o compromisso conjugal, sofre com a
precipitação com que tantos fiéis decidem pôr fim ao vínculo conjugal,
assumindo outros. Tais fiéis, que fazem parte da Igreja, precisam de uma
atenção pastoral misericordiosa e encorajadora, que distinga adequadamente as
situações. Os jovens batizados são encorajados a não hesitarem diante da
riqueza que o sacramento do matrimônio oferece aos seus projetos de amor,
fortes pela sustentação que lhes dá a graça de Cristo e pela possibilidade de
participarem plenamente da vida da Igreja.
27. Nesse sentido, uma nova dimensão da
atual pastoral familiar consiste em dar atenção à realidade dos matrimônios
civis entre homem e mulher, aos matrimônios tradicionais e, feitas as devidas
diferenças, também às convivências. Quando a união atinge uma estabilidade
notável através de um vínculo público, tem uma conotação de afeto profundo, de
responsabilidade em relação à prole, à capacidade de superar as provações pode
ser vista então como uma ocasião de acompanhar um desenvolvimento para o
sacramento do matrimônio. Mas com frequência, ao invés, a convivência se
estabelece não em vista de um futuro matrimônio, sem intenção alguma de
estabelecer uma relação institucional.
28. Conforme o olhar misericordioso de
Jesus, a Igreja deve acompanhar com atenção e solicitude os seus filhos mais
frágeis, marcados pelo amor ferido e desviado, dando-lhes novamente confiança e
esperança, como a luz do farol de um porto ou de uma chama posta no meio das
pessoas, a fim de iluminar aqueles que se desviaram da rota ou se encontram em
meio à tempestade. Conscientes de que a misericórdia maior é dizer a verdade
com amor, vamos para além da compaixão. O amor misericordioso, assim como atrai
e une, também transforma e eleva. Convida à conversão. Do mesmo modo,
entendemos a atitude do Senhor, que não condena a adúltera, mas lhe pede que
não peque mais (cf. Jo 8,1-11).
III
PARTE
O
confronto: perspectivas pastorais
Anunciar
o Evangelho da família hoje nos diferentes contextos
29. O diálogo do Sínodo considerou
atentamente algumas instâncias pastorais mais urgentes a serem confiadas à
concretização em cada Igreja local, na comunhão cum Petro et sub Petro. O
anúncio do Evangelho da família constitui uma urgência para a Nova Evangelização.
A Igreja é chamada a atuá-lo com ternura de mãe e clareza de mestra (cf. Ef
4,15), na fidelidade à kenosis misericordiosa de Cristo. A verdade se encarna
na fragilidade humana não para condená-la, mas para salvá-la (cf. Jo 3,1-17).
30. Evangelizar é responsabilidade de
todo o povo de Deus, cada qual segundo o próprio ministério e carisma. Sem o
testemunho alegre dos cônjuges e das famílias, igrejas domésticas, o anúncio,
ainda que correto, arrisca a ser incompreendido ou a afogar-se no mar de
palavras que caracteriza a nossa sociedade (cf. Novo Milennio Ineunte, 50). Os
Padres sinodais sublinharam várias vezes que as famílias católicas, em força da
graça do sacramento nupcial, são chamadas a ser, elas mesmas, sujeitos ativos
da Pastoral Familiar.
31. Será decisivo ressaltar o primado da
graça, e, portanto, a possibilidade de que o Espírito Santo a conceda no
sacramento. Trata-se de fazer a experiência de que o Evangelho da família é
alegria que “enche o coração e a vida inteira”, porque em Cristo “somos
libertados do pecado, da tristeza, do vazio interior e do isolamento”
(Evangelii Gaudium,1). À luz da parábola do semeador (cf. Mt 13,3), é nossa
tarefa cooperar na semeadura: o restante é obra de Deus. Não é preciso nem
mesmo esquecer que a Igreja que prega sobre a família é sinal de contradição.
32. É por isso que se requer de toda a
Igreja uma conversão missionária: é preciso não se manter num anúncio meramente
teórico e desligado dos problemas reais das pessoas. Jamais se esqueça de que a
crise de fé é que trouxe a crise do matrimônio e da família; e, como
consequência, interrompeu-se com frequência a transmissão da mesma fé dos pais
para os filhos. Perante uma fé forte, a imposição de algumas perspectivas
culturais que enfraquecem a família e o matrimônio não encontra espaço.
33. A conversão deve estender-se também
à linguagem, para que seja de fato significativa. O anúncio deve fazer
experimentar que o Evangelho da família é resposta às atitudes mais profundas
da pessoa humana: à sua dignidade e à plena realização na reciprocidade, na
comunhão e na fecundidade. Não se trata apenas de apresentar uma norma, mas de
propor valores, respondendo à necessidade de que isso aconteça também nos
países mais secularizados.
34. A Palavra de Deus é fonte de vida e
espiritualidade para a família. Toda a pastoral familiar deverá se deixar
modelar interiormente e formar membros da Igreja doméstica, mediante a leitura
orante e eclesial da Sagrada Escritura. A Palavra de Deus não é somente uma boa
notícia para a vida particular da pessoa, mas também um critério de julgamento
e uma luz para discernir nos vários desafios que enfrentam os cônjuges e as
famílias enfrentam.
35. Ao mesmo tempo, muitos Padres
sinodais insistiram num aspecto mais positivo das riquezas das várias
experiências religiosas, sem calar sobre suas dificuldades. Nessas diversas
realidades religiosas e na grande diversidade cultural que caracteriza as nações,
é oportuno apreciar primeiro as possibilidades positivas e, à luz destas,
avaliar seus limites e carências.
36. O matrimônio cristão é uma vocação
que se recebe com uma adequada preparação num itinerário de fé, com
discernimento maduro, e não deve ser considerado apenas como uma tradição
cultural ou uma exigência social ou jurídica. Portanto, é preciso realizar
percursos que acompanhem a pessoa e o casal, de modo que à comunicação dos
conteúdos da fé se acrescente a experiência de vida de toda a comunidade
eclesial.
37. Foi repetidamente lembrada a
necessidade de uma renovação radical da práxis pastoral à luz do Evangelho da
família, que supere a ótica individualista que ainda a caracteriza. Por isso se
tem insistido sobre a renovação da formação dos presbíteros, dos diáconos, dos
catequistas e de outros agentes de pastoral, mediante um maior envolvimento das
próprias famílias.
38. Ao mesmo tempo, encareceu-se a
necessidade de uma evangelização que denuncie com franqueza os condicionamentos
culturais, sociais, políticos e econômicos, como o excessivo espaço dado à
lógica do mercado, o qual impede uma verdadeira vida familiar,= e que determina
discriminação, pobreza, exclusões e violência. Por isso, desenvolvam-se um
diálogo e uma cooperação com as estruturas sociais e encorajem-se e
sustentem-se os leigos que se empenham, como cristãos, em âmbito cultural e
sociopolítico.
Guiar
os nubentes no caminho de preparação ao matrimônio
39. A complexa realidade social e os
desafios que a família de hoje deve enfrentar requerem um empenho maior de toda
a comunidade cristã, em preparação dos nubentes ao matrimônio. É preciso
lembrar a importância das virtudes. Entre elas, a castidade, como condição
preciosa para o genuíno crescimento do amor interpessoal. Relativamente a essa
necessidade, os Padres sinodais concordam em sublinhar a exigência de um maior
envolvimento de toda a comunidade, privilegiando o testemunho das próprias
famílias, além de uma radical preparação ao matrimônio no caminho de iniciação
cristã, sublinhando o nexo do matrimônio com o batismo e os outros sacramentos.
Evidenciou-se ao mesmo tempo a necessidade de programas específicos para a
preparação próxima ao matrimônio, que sejam uma verdadeira experiência de
participação na vida eclesial e que aprofundem os vários aspectos da vida
familiar.
Acompanhar
os primeiros anos da vida matrimonial
40. Os primeiros anos de matrimônio
constituem um período vital e delicado, durante os quais os casais crescem na
consciência dos desafios e do significado do matrimônio. Daqui emerge a
exigência de um acompanhamento pastoral que continue após a celebração do
sacramento (cf. Familiaris Consortio, parte III). Resulta, de grande
importância para essa pastoral, a presença de casais de esposos com
experiência. A paróquia é considerada como o lugar onde os casais experientes
possam ser colocados à disposição dos mais jovens, com o eventual concurso de
associações, movimentos eclesiais e novas comunidades. É preciso encorajar os
esposos para uma atitude fundamental de acolhimento do grande dom dos filhos.
Destaca-se a importância da espiritualidade familiar, da oração e da
participação na Eucaristia dominical, encorajando os casais a reunirem-se com
regularidade para promover o crescimento da vida espiritual e a solidariedade
nas exigências concretas da vida. Liturgia, práticas devocionais e Eucaristia,
celebradas pelas famílias, sobretudo no aniversário de casamento, são
mencionadas como vitais para favorecer a evangelização através da família.
Cuidados
pastorais para com aqueles que vivem o matrimônio civil ou em convivência
41. Enquanto continua a anunciar e
promover o matrimônio cristão, o Sínodo encoraja também o discernimento
pastoral das situações de tantos que não vivem mais essa realidade. É
importante entrar em diálogo pastoral com tais pessoas, a fim de evidenciar os
elementos de sua vida que possam conduzir a uma maior abertura para o Evangelho
do matrimônio, na sua plenitude. Os pastores devem favorecer a evangelização e
o crescimento humano e espiritual. Uma nova sensibilidade da pastoral moderna
consiste em colher os elementos positivos presentes nos matrimônios civis e,
respeitadas as devidas diferenças, nas convivências. Acontece que na proposta
eclesial, embora afirmando com clareza a mensagem cristã, indicamos também
elementos construtivos nessas situações que não correspondem ainda ou que não
mais correspondem.
42. Notou-se também, em muitos países,
um “crescente número de casais que convivem ad experimentum, sem qualquer
matrimônio, nem canônico, nem civil” (Instrumentum Laboris, 81). Em alguns
países, isso acontece sobretudo no matrimônio tradicional, acertado entre a
família e, frequentemente, celebrado em várias etapas. Em outros países, ao
contrário, cresce continuamente o número daqueles que, após terem vivido juntos
por longo tempo, pedem a celebração do matrimônio na igreja. A simples
convivência é, frequentemente, aceita por causa da mentalidade geral contrária
às instituições e aos empenhos definitivos, mas também pela espera de uma
segurança existencial (trabalho e salário fixo). Em outros países, ao invés, as
uniões são de fato muito numerosas, não somente pela rejeição dos valores da
família e do matrimônio, mas sobretudo pelo fato de que o se desposar é
percebido como um luxo, por causa das condições sociais, de modo que a miséria
material impele a viver uniões de fato.
43. Todas essas situações são
enfrentadas de modo construtivo, procurando transformá-las em oportunidade de
caminho para a plenitude do matrimônio e da família, à luz do Evangelho.
Trata-se de acolhê-las e acompanhá-las com paciência e delicadeza. A esse
respeito é importante o testemunho atraente de autênticas famílias cristãs,
como sujeitos da evangelização da família.
Curar
as famílias feridas (separados, divorciados não casados novamente, famílias
monoparentais)
44. Quando os esposos vivem problemas
nas suas relações, devem contar com a ajuda e o acompanhamento da Igreja. A
pastoral da caridade e da misericórdia tende a recuperar as pessoas e as
relações. A experiência mostra que, com uma adequada ajuda e com a ação de
reconciliação da graça, um grande porcentual de crises matrimoniais se supera
de maneira satisfatória. Saber perdoar e sentir-se perdoado é uma experiência
fundamental na vida familiar. O perdão entre os esposos permite experimentar um
amor que dura para sempre e que não passa jamais (cf. 1Cor 13,8). Às vezes é
difícil, mas quem recebeu o perdão de Deus tem a força para dar o autêntico
perdão que regenera a pessoa.
45. No Sínodo ressoou uma clara necessidade
de decisões pastorais corajosas. Reconfirmando com força a fidelidade ao
Evangelho da família e reconhecendo que a separação e o divórcio são sempre uma
ferida que causa profundo sofrimento para os cônjuges e filhos filhos, os
Padres sinodais sentiram a urgência de novos caminhos pastorais, a partir da
realidade real da fragilidade familiar, sabendo que essa, com frequência, é
“mais percebida” como sofrimento do que escolhida com plena liberdade. Trata-se
de situações diferentes, seja por fatores pessoais, culturais ou
socioeconômicos. É preciso um olhar diferenciado, como são João Paulo II
sugeria (cf. Familiaris Consortio, 84).
46. Cada família seja, primeiro de tudo,
ouvida com respeito e amor, fazendo-se companheiro de caminhada, como Cristo
com os discípulos na estrada de Emaús. Valham de modo particular, em tal
situação, as palavras do Papa Francisco: “A Igreja deverá iniciar os seus
membros – sacerdotes, religiosos e leigos – nesta ‘arte de acompanhamento’, a
fim de que todos aprendam sempre a tirar as sandálias perante a terra santa do
outro (cf. Ex 3,5). Devemos dar ao nosso caminho o ritmo salutar da
proximidade, com um olhar respeitoso e pleno de compaixão, mas que, ao mesmo
tempo, seja sadio, livre e encorajador, para amadurecer na vida cristã”
(Evangelii Gaudium, 169).
47. É indispensável um discernimento
particular para acompanhar pastoralmente os separados, os divorciados, os
abandonados. Acolha-se e valorize-se, sobretudo, o sofrimento daqueles que são
constrangidos pelos maus-tratos do cônjuge, a romper a convivência. O perdão
pela injustiça sofrida não é fácil, mas é um caminho que a graça torna
possível. Surge daqui a necessidade de uma pastoral da reconciliação, através
também de centros de acolhida especializada, a ser implantada nas dioceses. Ao
mesmo tempo, tenha-se em conta que é sempre necessário considerar, de modo leal
e construtivo, as consequências para os filhos, da separação ou do divórcio, as
quais são sempre vítimas inocentes da situação. Eles não podem ser um “objeto”
de contendas e devem ser considerados na forma melhor, a fim de que possam
superar o trauma da cisão familiar e crescer, o mais possível, de maneira
serena. Em todo caso, a Igreja deve sempre ter em conta a injustiça que,
frequentemente, causa a situação do divórcio. Especial atenção seja dada ao
acompanhamento das famílias monoparentais, de modo particular sejam ajudadas as
mulheres que devem levar sozinhas a responsabilidade da casa e da educação dos
filhos.
48. Um grande numero de Padres
sublinharam a necessidade de tornar mais acessível e ágil e, possivelmente
gratuito, os procedimentos para reconhecimento dos casos de nulidade. Entre as
propostas, foram indicadas: a superação da necessidade da apresentação da dupla
sentença concorde; a possibilidade de determinar, por via administrativa, sob
responsabilidade do bispo diocesano; um processo sumário a ser enviado nos
casos de nulidade notória. Todavia, alguns Padres se dizem contrários a essa
proposta, porque não garantiriam um juízo confiável. Contesta-se que, em todos
esses casos, trata-se de um acerto entre a verdade da validade do vínculo. De
acordo com outras propostas devem, então, ser dada a oportunidade de dar
importância ao papel da fé dos nubentes, em ordem à validade do sacramento do
matrimônio, entre os batizados, mantendo que todos os casamentos são sacramento
válido.
49. Acerca das causas matrimoniais, a
atenuação do procedimento exigido por muitos, além da preparação de agentes
suficientes, clérigos e leigos com dedicação particular, exige que se tenha em
conta a responsabilidade do bispo diocesano, o qual poderia, na sua diocese,
encarregar consulentes devidamente preparados que possam gratuitamente
conciliar as partes sobre a validade do seu matrimônio. Tal função pode ser
realizada por um oficial ou pessoas qualificadas (cf. Dignitas Connubii, art.
113,1).
50. As pessoas divorciadas, mas não
casadas em segundas núpcias, que frequentemente são testemunhas da fidelidade
matrimonial, podem ser encorajadas a encontrar na Eucaristia o alimento que as
sustenta no seu estado. A comunidade local e os pastores devem acompanhar tais
pessoas com solicitude, sobretudo quando há filhos ou é grave a situação dessas
pessoas, por causa da pobreza.
51. Também a situação dos divorciados,
casados pela segunda vez, exige um atento discernimento e um acompanhamento de
grande respeito, evitando-se toda linguagem e atitude que os façam se sentirem
discriminados e se promova a sua participação na vida da comunidade. Ter
cuidado com eles não é, para a comunidade cristã, um enfraquecimento da sua fé
e do seu testemunho sobre a indissolubilidade do matrimônio; antes, esse
cuidado exprime exatamente a sua caridade.
52. Refletiu-se sobre a possibilidade de
que os divorciados e casados em segundas núpcias tenham acesso aos sacramentos
da Penitência e da Eucaristia. Diversos Padres sinodais insistiram em favor da
disciplina atual, em virtude da relação entre a participação da Eucaristia e a
comunhão com a Igreja e o seu ensinamento sobre o matrimônio indissolúvel.
Outros se expressaram por um acolhimento não generalizado à mesa eucarística,
em algumas situações particulares em condições bem precisas, sobretudo quando
se trata de casos irreversíveis e ligados a obrigações morais para com os
filhos, que viriam a sofrer injustamente. O eventual acesso aos sacramentos
deveria ser precedido por um caminho penitencial, sob a responsabilidade do
bispo diocesano. Aprofundou-se ainda a questão, tendo bem presente a distinção
entre situações objetivas de pecado e circunstâncias atenuantes, dado que “a
imputabilidade e a responsabilidade de uma ação podem ser diminuídas ou
anuladas” [...] “por diversos fatores psíquicos ou mesmo sociais” (Catecismo da
Igreja Católica, 1735).
53. Alguns Padres afirmaram que as
pessoas divorciadas e novamente casadas, ou que convivem, podem recorrer com
fruto à comunhão espiritual. Outros Padres perguntaram por que então não podem
ter acesso à comunhão sacramental. Foi, portanto, solicitado um aprofundamento
da temática para fazer emergir a peculiaridade das duas formas e a respectiva
conexão com a teologia do matrimônio.
54. As problemáticas relativas aos
matrimônios mistos voltaram frequentemente nas intervenções dos Padres
sinodais. A diversidade da disciplina matrimonial da Igreja ortodoxa coloca, em
alguns contextos, problemas sobre os quais é preciso refletir em âmbito
ecumênico. Analogamente, para os matrimônios inter-religiosos será importante o
contributo do diálogo com as religiões.
A
atenção pastoral para com as pessoas de orientação homossexual
55. Algumas famílias vivem a experiência
de ter no seu interior pessoas com orientação homossexual. A esse respeito,
interrogamo-nos sobre qual atenção pastoral seja oportuna perante tal situação,
em referência a quanto ensina a Igreja: “Não existe fundamento algum para
assimilar ou estabelecer analogias, nem mesmo remotas, entre as uniões
homossexuais e o desígnio de Deus sobre o matrimônio e a família”. Apesar
disso, os homens e as mulheres com tendências homossexuais devem ser acolhidos
com respeito e delicadeza. “A respeito deles, evitar-se-á toda atitude de
discriminação injusta” (Congregação para a Doutrina da Fé, Considerações sobre
os projetos de reconhecimento legal das uniões entre pessoas homossexuais, 4).
56. É de todo inaceitável que os
Pastores da Igreja sofram pressões nesta matéria e que os organismos
internacionais condicionem as ajudas financeiras aos países pobres para a
introdução de leis que instituam o “matrimônio” entre pessoas do mesmo sexo.
A
transmissão da vida e o desafio da nãonatalidade
57. Não é difícil constatar que se
difunde uma mentalidade que reduz a geração da vida a uma variável da projeção
individual ou de casal. Os fatores de ordem econômica determinam um peso por
vezes determinante, contribuindo para uma forte queda na natalidade, o que
debilita o tecido social e compromete a relação sobre as gerações e torna mais
incerto o olhar sobre o futuro. A abertura para a vida é exigência intrínseca
do amor conjugal. Nessa luz, a Igreja apoia as famílias que acolhem, educam e
circundam com seu afeto os filhos com diferentes dons.
58. Também aqui ocorre a necessidade da
escuta às pessoas e dar a razão da beleza e da verdade de uma abertura
incondicional à vida, como aquilo de que o amor humano necessita para ser
vivido em plenitude. É sobre essa base que se pode apoiar um ensinamento
adequado sobre os métodos naturais para a procriação responsável. Esta ajuda a
viver de maneira harmoniosa e responsável a comunhão entre os cônjuges, em
todas as suas dimensões, juntamente com a responsabilidade de gerar. E
redescobre-se a mensagem da encíclica Humanae Vitae, de Paulo VI, que sublinha
a necessidade de respeitar a dignidade da pessoa na avaliação moral dos métodos
de regulação da natalidade. A adoção de crianças órfãs e abandonadas, acolhidas
como filhos próprios, é uma forma específica de apostolado familiar (cf.
Apostolicam Actuositatem, III,11), mais vezes reclamada e encorajada pelo
magistério (cf. Familiaris Consortio, III,II).
A escolha da adoção e da entrega exprime
uma fecundidade particular da experiência conjugal, não somente quando esta é
marcada pela esterilidade. Tal escolha é sinal eloquente do amor familiar,
ocasião para testemunhar a própria fé e restituir a dignidade filial a quem
dela foi privado.
59. É preciso ajudar a viver a
afetividade também no vínculo conjugal, como um caminho de amadurecimento, no
acolhimento sempre mais profundo do outro e na doação sempre mais plena.
Deve-se insistir, nesse sentido, sobre a necessidade de oferecer caminhos de
formação que alimentem a vida conjugal e a importância de um laicado que
ofereça um acompanhamento feito de testemunhas vivas. É de grande ajuda o
exemplo de um amor fiel e profundo, feito de ternura, de respeito, capaz de
crescer ao longo do tempo e que, no seu completo abrir-se à geração da vida,
faz a experiência de um mistério que nos transcende.
O
desafio da educação e o papel da família na evangelização
60. Um dos desafios fundamentais em que
se encontra a família hoje é seguramente a da educação, tornada mais exigente e
complexa pela atual realidade cultural e pela grande influência das mídias.
Tem-se na devida conta as exigências e atitudes de famílias capazes de ser, na
vida cotidiana, lugar de crescimento, de transmissão concreta e essencial das
virtudes que dão forma à existência. Isso indica que os pais podem escolher
livremente o tipo de educação a dar aos filhos, de acordo com suas convicções.
61. A Igreja tem um papel precioso de
sustento às famílias, a partir da iniciação cristã, através da comunidade
acolhedora. A esta se pede hoje, mais ainda do que ontem, tanto nas situações
complexas como naquelas ordinárias, de apoiar os pais no seu empenho de educar,
acompanhando as crianças, adolescentes e jovens, no seu crescimento, através de
caminhos personalizados capazes de introduzir ao sentido pleno da vida e de suscitar
escolhas e responsabilidades, vividas à luz do Evangelho. Maria, pela sua
ternura, misericórdia, sensibilidade materna pode nutrir a fome de humanidade e
vida, por quem for invocada das famílias e do povo cristão. A pastoral e uma
devoção mariana são um ponto de pertença oportuno para anunciar o Evangelho da
família.
Conclusão
62. As reflexões propostas, fruto do
trabalho sinodal, realizado em grande liberdade e num estilo de escuta
recíproca, querem colocar questões e indicar perspectivas que deverão ser
amadurecidas e precisadas pelas reflexões das igrejas locais durante o ano que
nos separa da Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos prevista para o
mês de outubro de 2015, dedicada à vocação e à missão da família na igreja e no
mundo contemporâneo. Não se trata de decisões tomadas, nem de perspectivas
fáceis. Entretanto o caminho colegial dos bispos e o compromisso de todo o povo
de Deus sob a ação do Espírito Santo, olhando para o modelo da santa família,
poderão guiar-nos a encontrar vias de verdade e de misericórdia para todos. São
os auspícios que desde o início de nossos trabalhos o Papa Francisco nos
manifestou convidando-nos à coragem da fé e à acolhida humilde e honesta da
verdade na caridade.
Fonte:
http://www.ihu.unisinos.br
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