*Dom frei Vital Wilderink, O. Carm. In Memoriam.
"Sem mim,
não podeis fazer nada" (Jo 15,5). Expressão paradoxal que, aparentemente,
denota uma falta de identidade própria.
A psicologia poderia comentar: a pessoa que se encontra em tais
condições ainda não se encontrou a si mesma.
De fato, hoje deve haver muitas pessoas assim, que encontram na moda a
única evidência convincente. E, permanecendo ainda no nível da psicologia,
podemos acrescentar: faltou a tais pessoas um encontro vivo. Quem não se depara com uma presença viva que
suscita uma atração e nos provoca, não
vai descobrir seu próprio coração" sede das nossas exigências e opções
fundamentais. Não faltam na nossa época
moderna e pós-moderna tendências e realidades que prolongam a escravidão, o
sem-sentido que impedem o agir verdadeiramente libertador.
O projeto
"Rumo ao novo milênio" em preparação ao Jubileu da Encarnação do
Filho de Deus, é um projeto de evangelização, de epifania da identidade. É um
projeto de restauração da humanidade, de reparação que encontra em Cristo sua
referência viva. É um desafio porque a cada passo esbarramos com um poder que
tenta atrofiar o desejo humano, "andando em derredor como um leão que
ruge, procurando a quem devorar" (1 Pd 5, 8). As palavras da carta de Pedro, inseridas na
Regra do Carmelo, não perderam a sua atualidade. Basta constatar as situações das nossas
sociedades em nível político, sócio-econômico e cultural. Um historiador do
século XX concluía sua obra mais recente: "Se a humanidade quer ter um
futuro reconhecível, não pode ser pelo prolongamento do passado ou do presente.
Se tentarmos construir o terceiro milênio nessa base, vamos
fracassar". O escritor em questão
prescinde de quaisquer critérios hauridos numa fé religiosa. No entanto, as
suas argumentações e conclusões baseadas em ciências sociais e econômicas, não
deixam de questionar a nossa fé cristã. O mistério da Encarnação de Deus na
precariedade da historia humana, faz com que o cristianismo seja uma realidade
voltada para o futuro porque mais centrado numa presença do que numa utopia. É
desta Presença que se alimenta a identidade espiritual da Carmelita missionária
e a sua esperança que deverá impedir que a sua ação missionária se limite a uma
pastoral de simples manutenção.
Madre Maria
Crocifissa vivia de uma presença.
Presença que nela provocava experiências místicas de encontro com
Cristo, seu Amado. Encontro que lhe
fazia compreender melhor a situação daqueles que vivem sem sentido. E nesse encontro ela acompanhava o seu Amado
até a sua paixão redentora. É neste ponto que ela se faz solidária com os
vencidos do mundo e se acende a sua sensibilidade profética diante do mal. É
deste seu encontro com Jesus que brota o seu desejo de reparação que sobe até
Deus que se envolve na historia e no destino da humanidade, sofre com seus desvios,
mas não a abandona. Madre Crocifissa
vivia apegada aos sinais da Presença do Senhor.
Se ela os encontrava na Eucaristia, no Coração de Jesus, em Maria, nos
Santos, marcados sem dúvida pelo contexto eclesial de sua época, é porque a
totalidade de sua vida quotidiana era atingida pela presença do Senhor.
A Carmelita
missionária, filha de Madre Crocifissa, só encontrará a sua identidade
espiritual no encontro com o Senhor.
Trata-se de uma experiência de fé viva, não de uma prática devocional. No fundo, trata-se de fazer ressoar a
pergunta feita por Jesus a seus discípulos: "Para vós, quem sou
eu?". Ligada a esta pergunta,
existe uma outra: o que significa crer em Jesus Cristo hoje? O homem e a mulher
de hoje, (e não há razão para não identificar-nos com eles), se encontram numa
situação muito semelhante à do cego de nascença (Jo 9.1-41). Jesus se dirige a
ele: "Tu crês no Filho do Homem?". É melhor ter a simplicidade do
mesmo cego: "Mas, quem é, Senhor, para que eu creia nele?". É só
assim que começamos a crer. É preciso reconhecer que uma configuração histórica
do cristianismo (também aquela da Madre Crocifissa) parece estar se esgotando e
com ela a plausibilidade social que servia de suporte a uma maneira de crer, de
viver e de transmitir a fé. A questão da identidade espiritual da Carmelita
missionária se coloca hoje em termos diferentes. Mas sempre vale como lei universal: a pessoa
torna-se presente a si mesma num encontro. Estamos agraciados pela presença de
Deus, mas não é fácil percebê-1a. Aderir
à pessoa de Jesus Cristo deixou de ser algo "evidente". Somos afetados por uma situação de
desamparo. Tem-se a impressão de que uma
porta se interpõe entre a presença de Deus e a nossa condição e situação
atuais. "Eis que estou à porta e bato; se alguém ouvir minha voz e abrir a
porta, eu entrarei na sua casa e tomaremos a refeição, eu com ele e ele
comigo" (Ap 3,20). Se a porta nos oculta a presença, será que ela pode
converter-se em lugar onde ressoa o chamado, em ocasião de nossa resposta e disponibilidade?
Não vamos
descrever detalhadamente as dificuldades que o nosso tempo tem para descobrir a
presença de Deus. Basta lembrar-nos do fenômeno da secularização que apagou em
extensas zonas da vida pessoal e social os sinais da presença de Deus que, ao
longo da historia, o homem vinha descobrindo. A razão tornou-se a medida das
coisas; o que levou a um desencantamento do mundo e fez o homem escravo do
outro homem. Esse desencanto dificulta
enormemente a percepção dos elementos como símbolos de uma realidade de outra
ordem. O desencanto oculta as dimensões mais profundas, o lado inefável das
coisas que antes levavam o homem a dar um rosto à presença do
Transcendente. A secularização da
cultura é um processo que vai penetrando também na consciência do homem. Ao declarar a autonomia da ordem social, da
ordem da razão e da ordem ética, o homem se faz surdo a todo chamado religioso
e fica "sem noticias" de Deus.
O silêncio de
Deus adquiriu nos últimos tempos uma nova forma. Para muitos os gritos dos oprimidos eram um
rumor da presença de Deus. Hoje, cada
vez mais, nos acostumamos ao clamor das vítimas de toda sorte de violência e de
injustiça. Penso no continente africano tão visivelmente marginalizado porque
não traz interesses para o sistema reinante.
Penso nos meninos da rua, nos que morrem por balas direcionadas ou
perdidas nas ruas do Rio de Janeiro.
Penso em adversários políticos que se eliminam mutuamente... Não vale a
pena dar-se ao trabalho de identificar os desonestos e corruptos porque tudo
termina em "pizza" mesmo! Há
portas largas que se escancaram para o não-sentido. Portas que, ao mesmo tempo, abrem campos para
restaurar a humanidade:
"Assim diz
o Senhor: No tempo da graça eu te escutei, no dia da salvação eu te ajudei. Eu
te guardei e coloquei como aliança entre o povo, para reergueres o país,
devolveres as propriedades arrasadas, para dizeres aos cativos: Saí livres!,
aos presos em cárcere escuro: Vinde para a luz" (Is 49,8).
"Recapitular
tudo em Cristo" diria São Paulo (Ef 1, 10). Trata-se de centrar em Cristo todos os seres.
Foi esse o projeto programático da vida de Madre Crocifissa. Está aí o segredo da reparação em que insiste
no seu diário espiritual e nas suas cartas.
Ela se deixa atingir, ela primeira, por esse centrar-se em Cristo. Percebe com lucidez o quanto ela mesma
necessita. É nisto que ela se empenha com sua oração, suas mortificações. Não há nenhum aspecto da sua vida que pode
ficar fora desse movimento. Esforçada,
firme também com suas filhas, ela sabe ao mesmo tempo, que a iniciativa desse
movimento para Cristo pertence à misericórdia de Deus.
Seria
interessante pesquisar como, mesmo nas peculiaridades pessoais da Madre
Crocifissa, ressoa aqui a influência de Sta Teresinha. Não é sem razão que o nome dessa jovem carmelita
francesa figura no próprio título da Congregação. Oferecer-se como vítima tem
nas duas carmelitas matizes diferentes, pelo menos enquanto pude depreender dos
escritos de ambas. Madre Crocifissa
também fala constantemente em "offrirsi vittima assieme alla Prima Vittima
d'Amore". Ela se sente vítima enquanto unida a Cristo vítima, considerado
na sua Paixão, sempre em vista da reparação.
Seguindo a espiritualidade da sua época, a reparação é vista na perspectiva
da justiça divina. Esta reparação encontra
a sua fonte sacramental no Coração eucarístico de Jesus. Mas o que motiva o seu desejo de reparação é
sempre o amor, amor que nos seus escritos assume as características de um amor
esponsal. Faltam-nos os dados para poder
acompanhar Madre Crocifissa, até a sua morte em 4 de julho de 1957, nesse seu
itinerário de amor reparador.
Teresa de
Lisieux morre jovem, muito jovem, com apenas 24 anos de idade. Um ano antes de sua morte, ela escreve a sua
irmã Marie du Sacré-Coeur: "No coração da Igreja, minha Mãe, eu serei o
amor". Levando em consideração o
clima jansenista que se respirava na sua época, também no Carmelo de Lisieux,
as suas palavras denotam um conhecimento surpreendente de Deus e da Igreja. Teresa tem uma única preocupação: a união com
Deus união de amor na oferta de si mesma em resposta ao dom de Cristo. Como Madre Crocifissa ela se sente arrastada
por esse oceano de amor sempre em movimento, amor que só deseja doar-se. Também Teresa se une ao próprio sofrimento ao
Cristo sofredor. Como Madre Crocifissa, ela sente um grande desejo de trabalhar
pela conversão dos pecadores. Ela vivia
numa época em que o racionalismo e o cientificismo espalhavam uma descrença
agressiva e um anti-clericalismo sarcástico.
Teresa sofre, entrando ela mesma nas trevas, na noite da fé, sentando-se
à mesa com os pecadores. Mas ela não
cessa de amar o Esposo, na própria aceitação da sua ausência.
*Dom Frei Vital Wilderink, O Carm, foi
vítima de um acidente de automóvel quando retornava para o Eremitério, “Fonte de
Elias”, no alto do Rio das Pedras, nas montanhas de Lídice, distrito do
município de Rio Claro, no estado do Rio de Janeiro. O acidente ocorreu no dia
11 de junho de 2014. O sepultamento foi na cidade de Itaguaí/RJ, no dia 12, na
Catedral de São Francisco Xavier, Diocese esta onde ele foi o primeiro Bispo.
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