*Dom frei Vital Wilderink, O. Carm. In Memoriam.
(Eremitério Fonte de Elias, 13.01.2006).
Recentemente
recebi carta de uma pessoa amiga. Fiquei matutando sobre uma frase que nela
estava escrita: “Descobri que eu não tenho vocação para ser santo”. Se tivesse
dito: “Sinto que não tenho vocação para o ministério sacerdotal ou para a vida
religiosa”, eu até poderia concordar porque se trata de vocações especiais a
serviço da santidade da Igreja. Mas a vocação à santidade é universal, como o
Concílio Vaticano II nos ensina com muita insistência, dedicando um capítulo
inteiro a essa temática no documento sobre a Igreja (Lumen gentium). Além
disso, parece que o nosso amigo tem uma ideia, não digo completamente errada,
mas pelo menos insuficiente, do que a vem a ser santidade. Aliás, é uma idéia
bastante difundida entre os cristãos que veem a santidade como conquista nossa,
fruto extraordinário de esforços humanos, até heroicos, impossíveis para a
maioria dos cristãos. É verdade que o exercício heroico das virtudes, é sinal
de santidade e por isso é um ponto obrigatório nos processos de beatificação e
canonização que a Igreja exige para declarar que uma pessoa cristã já falecida
pode ser considerada e invocada como santa.
É importante que
a Igreja nos apresente oficialmente modelos de santidade de várias origens,
raças, culturas, estados de vida e contextos históricos para conscientizar-nos
da nossa própria vocação à santidade. Neste sentido santa Teresinha se
manifesta uma mestra. No seu terceiro manuscrito autobiográfico, a jovem
carmelita escreve que sempre desejou ser santa, mas que, comparando-se com os
grandes santos, constatou que lhe era impossível chegar a tais alturas. Mas não
desanimou, dizendo a si mesma: “Deus não poderia inspirar desejos
irrealizáveis, portanto posso, apesar da minha pequenez, aspirar à santidade”.
Daí, lembrando-se do elevador elétrico, invenção nova na época dela, Teresinha
faz uma comparação: “Eu também quisera encontrar um elevador para me elevar até
Jesus, pois sou demasiado pequena para subir a íngreme escada da perfeição”. Na
Bíblia (Is 66,12) ela encontra uma passagem que justifica a comparação: Sereis
levados ao colo, sobre os joelhos sereis acariciados. Assim ela chega a formar
a sua maneira de ser santa: “O elevador que deve me elevar até o céu, são
vossos braços, ó Jesus! Para isso, eu não preciso crescer, pelo contrário,
preciso que eu fique pequena, que eu me torne pequena cada vez mais”. A
linguagem da Teresinha, a gosto do ambiente religioso da sua época, talvez não
agrade à nossa mentalidade moderna, mas não deixa de colocar o segredo da sua
pequena via numa perspectiva teológica muito sólida e profunda: Deus mesmo é a
fonte da nossa vocação à santidade.
Santidade
não é mérito, mas é dom.
Em última
análise, só Deus é santo. É uma afirmação paradoxal para quem quer refletir
sobre a nossa vocação à santidade. Mas é isto mesmo que a liturgia da missa na
aclamação ao final do prefácio insiste em dizer: Santo, Santo, Santo, Deus do
universo! Como dizer uma palavra sensata sobre a santidade de Deus, se Ele
“habita em luz inacessível” como reza o prefácio da oração eucarística IV?
Todos os nossos conceitos e categorias para definir uma realidade são humanos,
forjados pela nossa inteligência a partir das nossas experiências sempre
fragmentadas no tempo e no espaço. O conhecimento adquirido pela razão pode ser
profundo e abrangente, mas nunca é exaustivo, não consegue penetrar até o fundo
daquilo que existe e é. Como criaturas estamos sempre em caminho, inclusive na
procura e no crescimento da nossa identidade mais profunda. Balbuciando uma
possível descrição da santidade de Deus, podemos dizer que Deus é santo porque,
em todo o seu ser e fazer, é perfeitamente idêntico a si mesmo, à sua
majestade, à sua justiça e à sua bondade.
Se não temos
acesso a Deus e à santidade dele, como podemos nos dirigir a Ele chamando-o de
Pai que estais no céu? Subir até a sua
glória nas alturas, nem pensar! E como, Ele mesmo viria até nós sem descer? Não
há nenhuma maneira de representar-se um relacionamento entre Deus e o ser
humano que seja tão paradoxal e fora do alcance da nossa razão, que a
Encarnação. No entanto, também não há maneira mais concreta de pensar essa
descida impossível. Toda a liturgia do tempo de Natal fala deste admirável
intercâmbio entre o céu e a terra pelo qual o Criador da humanidade, feito
homem, nos doou sua própria divindade. Podemos agora falar de Deus-Trindade
falando da história, e falar da história falando da Trindade. São Paulo fala
disto na sua carta a Tito, cristão convertido do paganismo e companheiro dele: “Quando se manifestou a bondade de Deus, nosso
Salvador, e o seu amor pela humanidade, ele nos salvou, não por causa dos atos
de justiça que tivéssemos praticado, mas por sua misericórdia, mediante o banho
da regeneração e renovação do Espírito Santo. Este Espírito, ele o derramou
copiosamente sobre nós por Jesus Cristo nosso Salvador” (Tt 3, 4-6).
Creio
na Igreja santa católica
Deus
convocou por meio de seu Filho, feito carne e história humana, um novo povo. A
santidade da Igreja não tem sua origem na própria Igreja, mas nessa iniciativa
de Deus: “Cristo amou a Igreja e se entregou por ela, a fim de santificar pela
palavra aquela que ele purifica pelo banho da água” (Ef 5,25-26). Por isto, a
santidade da Igreja também não é fruto da santidade dos seus membros. A
pergunta que se faz aos catecúmenos: você quer ser batizado? equivale a: você
quer fazer-se santo? Isto faz entender
melhor por que Paulo ao escrever uma carta à comunidade dos cristãos em
Corinto, se dirige “aos que foram santificados no Cristo Jesus, chamados a ser
santos” (1Cr 1,2).
A
santidade da Igreja não é um toque de espiritualidade ou um enfeite, mas é uma
dinâmica que lhe é intrínseca e qualificativa. Por isto a Igreja não seria ela mesma se não fizesse
da vocação universal à santidade uma urgência da sua pastoral permanente. Na
sua carta programática para o terceiro milênio, o Papa João Paulo II escreve:
“Em primeiro lugar, não hesito em dizer que o horizonte para que deve tender
todo o caminho pastoral é a santidade”.
Mas,
também é bom reconhecer que a história da Igreja, inserida na história dos
homens, não é sempre, sob muitos aspectos, uma narração gloriosa. Já no século
III falava-se da Igreja como um corpo misturado de santos e pecadores. São
Cipriano, bispo e mártir, dizia que para a Igreja a santidade é um dom, para seus
membros uma tarefa. Por isso a santidade doada por Cristo à sua Igreja, não é
anulada, embora não deixe de ser turvada pela infidelidade à vocação à
santidade por parte de seus membros
Restaurar
todas as coisas em Cristo
A
santidade encontra sua origem em Deus: “Só vós sois o santo” como diz hino de louvor no início da missa
dominical. Deus revelou a sua santidade no Filho que assumiu a nossa
humanidade. A nossa santidade consiste na nossa união com Cristo. É um dom que
nos foi feito através do batismo. Mas, o dom gera, por sua vez, uma tarefa, um
dever: “Esta é a vontade de Deus: a vossa santificação” (1Ts 4,3). A união com
Cristo em que consiste a santidade incide no nosso ser para transformá-lo. É
muito significativo o gesto do sacerdote na hora do ofertório quando derrama um
pouco de água no cálice com vinho enquanto reza baixinho: “Pelo mistério desta
água e deste vinho possamos participar da divindade do vosso Filho, que se
dignou assumir a nossa humanidade” A transformação do nosso ser deve envolver
também o nosso agir, isto é a santidade deve atingir a dimensão moral da nossa
vida. É o terreno em que atuam a nossa consciência e a nossa liberdade. Neste
campo da moral não podemos dizer-nos: a minha união com Deus ou seja a minha
vocação à santidade vai até certo ponto. É na vida de cada dia que a santidade
vai se apropriando, num dinamismo contínuo, do nosso agir com todas as
características pessoais de cada um. A união com Cristo não acontece em pessoas
que vivem numa redoma, num espaço esterilizado, mas em pessoas reais inseridas
em histórias concretas. Em última análise, na sua vocação à santidade elas
refletem o movimento mesmo da encarnação.
Isto
nos faz entender que a vocação à santidade é um chamado para “ajudar” Deus a
restaurar todas as coisas em Cristo. A obra da redenção não visa apenas cada
pessoa como indivíduo, “O que esperamos, de acordo com sua promessa, são novos
céus e uma nova terra”. (2 Pd 3,13). A santidade tem tudo a ver com isto. A
vocação à santidade não passa por cima dos problemas, múltiplos e intrincados,
que afligem o mundo de hoje, repercutindo fortemente na sociedade, nas famílias
e na vida de cada pessoa. São Paulo
diria: “Toda a criação espera ansiosamente a revelação dos filhos de Deus ... e
não somente ela, mas também nós, que temos as primícias do Espírito” (Rm
8,19.23). Não existe nenhuma fórmula mágica para solucionar os problemas que
envolvem a humanidade.. Aliás, formulas mágicas (apresentadas também por certas ideologias) jamais podem revelar ao
ser humano quem ele é. Não será uma fórmula a salvar-nos, mas Alguém que nos
infunde uma certeza: Eu estarei convosco!
O
Carmelo e a vocação à santidade
A Ordem do Carmo
nasceu de um grupo de homens, provavelmente leigos na sua maioria, que queriam
“viver em obséquio de Jesus Cristo e servi-lo fielmente com coração puro e reta
consciência”. É assim que se encaixavam na Igreja cuja missão é refletir a luz
de Cristo. Para realizar esse imperativo da sua vocação, foram estabelecer-se
na Terra Santa no Monte Carmelo. Mas para viver em obséquio de Jesus Cristo era
preciso que se tornassem contemplativos do seu rosto, a fim de que a luz desse
rosto pudesse refletir na vida deles. A Regra de Alberto, patriarca de
Jerusalém, ofereceu-lhes orientações básicas para realizar o objetivo que
tinham em mente. A Regra apresenta uma
pedagogia de santidade em que a oração ocupa um lugar de destaque. Esta
tradição carmelitana, como carisma suscitado pelo Espírito Santo, é uma das
expressões da santidade da Igreja. Através dos tempos houve sempre pessoas e
grupos de pessoas, freqüentemente reunidas em forma de instituições, que
descobriram na tradição do Carmelo um espaço acolhedor para a sua aspiração a
um encontro com Deus, experimentando que a Graça dele nos precede para realizar
a vocação à santidade. Também o carmelita secular deve ser alguém que busca a
Deus, pisando com os dois pés neste mundo de criaturas humanas, vulneráveis e
vulneradas, com as quais vive e celebra, movido a partir de dentro pela
Misericórdia com que Deus o envolve.
*Dom
Frei Vital Wilderink, O Carm, foi vítima de um acidente de automóvel quando
retornava para o Eremitério, “Fonte de Elias”, no alto do Rio das Pedras, nas
montanhas de Lídice, distrito do município de Rio Claro, no estado do Rio de
Janeiro. O acidente ocorreu no dia 11 de junho de 2014. O sepultamento foi na
cidade de Itaguaí/RJ, no dia 12, na Catedral de São Francisco Xavier, Diocese
esta onde ele foi o primeiro Bispo.
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