Frei
Emanuel Boaga, 0.Carm,
O relacionamento
mariano dos Carmelitas com Nossa Senhora, através do Padroado, está sustentado
por elementos primordiais, próprios da mentalidade medieval do feudalismo e,
mais particularmente, por influência das Cruzadas, que os guiava em sua busca
de vida eremítica no Monte Carmelo. Este dinamismo os conduziu à escolha do
‘Padroado’, através da dedicação a Nossa Senhora da igrejinha construída em sua
honra no Monte Carmelo. De fato, tal dedicação indica claramente a escolha
feita pelos Carmelitas, de Maria a Mãe de Deus, como sua Patrona, tornando-se
tal opção, uma orientação espiritual no sentido de serviço ou, melhor, de
‘obsequium’, levando-os a se colocarem inteiramente á disposição da Senhora e a
se consagrarem para viver em ‘obsequium’, não só de Jesus, mas também de Maria.
Recentes estudos
nos indicam, nas origens, a presença dos seguintes elementos que caracterizam a
devoção mariana dos Carmelitas:
O forte cristocentrismo que informa toda
a vida e devoção mariana dos primeiros Carmelitas;
A consciência do papel de Maria, a Mãe
do Senhor (a Domina Loci) no Mistério de Cristo e da Igreja, e a reflexão sobre
as ligações entre os mesmos eremitas e o Monte Carmelo, alimentadas por
referências bíblicas e tradições locais;
A inspiração para a própria vida
espiritual, buscada na referência à virgindade de Maria, em seu ser cheio de beleza,
a indicar a ‘via pulcretudine’
A escolha de
Maria, a Virgem e Mãe de Deus, a Senhora do lugar, como Patrona, através da
dedicação a ela da primeira igreja no Monte Carmelo, com as conseqüências que
tal opção comportava: o serviço ou vassalagem espiritual; a correspondente
proteção-mediação, nas dimensões ascendente e descendente, conforme o Padroado
medieval.
Com este húmus
inicial foi desenvolvido, a seguir, através de um processo de idealização das
origens marianas, uma relação carregada de atenção, de afeto, de ternura e de
grande familiaridade com Maria. Os conceitos iniciais do Padroado vêm retomados
e recebem explicitações várias, com acentuação de conteúdos específicos,
formando-se assim um rico patrimônio de espiritualidade mariana.
Entre os vários
gestos marianos do século XIII que exprimem este processo de idealização,
encontra-se bem ao centro a atenção sobre dois aspectos: o uso do nome de Maria
incluído na fórmula da profissão religiosa e a escolha do título mariano para a
Ordem. A inserção do nome de Maria na fórmula da Profissão é um uso já
registrado desde as Constituições de 1281.Entretanto, acredita-se que pode ser
de época anterior. A finalidade desta inserção visa exprimir a dedicação a
Maria, mas também o desejo de se tornar parte viva da reforma da Igreja. Era um
uso comum nas Ordens que assumiam o compromisso direto com esta reforma. Tal
costume nos revela a dinâmica da
experiência originária dos Carmelitas no contexto da Igreja de seu tempo e nas
prospectivas seguintes.
Da mesma
dedicação da igreja carmelitana a Maria, nasce, por acepção popular (1250) ou
por motivação dos próprios Carmelitas, o título mariano da Ordem: Irmãos (quer
dizer, religiosos) da Bem-aventurada Virgem Maria ou ‘fratres virgulati’. Este
titulo está documentado pela primeira vez no ano 1252, na forma de ‘Irmãos da
Bem-aventurada Virgem Maria Mãe de Deus do Monte Carmelo’. por concessão do
Papa Inocêncio IV. Há referências anteriores em uma carta do mesmo Pontífice
datada entre os anos de 1246 e 1247, enviada ao Bispo de Londres. No documento
da fundação de Trapani (1250) já são chamados de ‘Fratres Sanctae Mariae de
Monte Carmelo’.
A questão que
ainda não foi completamente esclarecida diz respeito à origem deste título.
Conforme uma tradição, surgida pela primeira vez em 1337, tal título nasce do
uso feito pelo povo de assim chamar os Carmelitas que viviam no Wadi ain
es-Siah para distingui-los dos eremitas do mosteiro grego vizinho que se
denominava de Santa Margarida. É uma suposição que pode ser provável, não porém
segura. É que realmente, o título mariano deve ter sido escolhido pelos mesmos
eremitas e por motivos provenientes da espiritualidade de sua própria vida.
Esta afirmação faz pensar em alguns testemunhos implícitos e freqüentes
encontrados nos escritos do século XIV, ainda que o confronto das datas com o
título oficial concedido pela bula em 1252, coincida com aquele do uso popular
acima referido.
Este título
mariano foi contestado por algumas outras Ordens. Os Carmelitas se defenderam.
Originou-se então outra longa e trabalhosa controvérsia, que teve seu ponto
culminante no ano 1374 quando o Carmelita João Horneby defende, com sucesso,
tal titulo mariano contra o Dominicano João Stokes na Universidade de Cambridge
(Inglaterra), saindo vitorioso da mesma e recebendo da Universidade uma
declaração que confirmava o título da Ordem. Em 1379 o Papa Urbano VI deu a
palavra definitiva sobre a questão, concedendo uma indulgência àqueles que
chamassem os Carmelitas com o seu titulo mariano.
Foi uma polêmica
muito útil que teve seu mérito: levou os Carmelitas ao aprofundamento das
relações com Maria, considerada a própria Patrona. Disto temos profundas
lembranças nos escritos da época e referências explícitas nos documentos
legislativos e litúrgicos. A especificação mariana de Virgo Dei Genitrix, no
título oficial da Ordem, como aparece nas bulas pontifícias, provêm claramente
destas reflexões e da polêmica com aqueles que chamavam os Carmelitas de Irmãos
de Santa Maria Egipciaca, a pecadora penitente. Muitas vezes foi retomada a
luta contra o título mariano. Algumas formas de oração e alguns textos das
Constituições as recordam. Esta questão do título e a importância dada a ele,
não constitui um mero jogo de palavras, mas, para a mentalidade medieval, era questão
essencial pois, vinculada à própria identidade. O nome era uma expressão desta,
comunicando algo essencial ao ser.
Há ainda um
outro elemento que faz parte do conceito medieval de pertença à Virgem: a
fundação da Ordem em sua honra. O primeiro a expressar tal convicção foi o
prior geral Pedro de Millaud, em carta de 1282 ao rei da Inglaterra Eduardo I.
A mesma opinião, alguns anos mais tarde, está exarada nas atas do Capítulo
Geral de Montpellier. Daí para a frente, os autores da Ordem, em várias ocasiões,
e talvez em resposta a polêmicas com outros religiosos, afirmam que o serviço a
Maria é parte integrante da vida carmelitana. Para alguns destes autores foi
fácil também afirmar a convicção de que o ‘Carmelo é todo de Maria’ bem como
atribuir à mesma Virgem Maria a fundação da Ordem.
Ao lado de todas
estas referências marianas podem ainda ser recordados alguns fatos: a dedicação
a Nossa Senhora das Igrejas da Ordem, erigidas no curso dos séculos XIII-XIV; a
intenção ou finalidade mariana presentes nas diversas fundações, como ocorreu,
por exemplo, em Milão e em Tolossa; as prescrições litúrgicas em uso entre os
séculos XIII-XIV. Faz parte deste conjunto de pensamentos a compreensão
simbólica que os Carmelitas tinham do próprio hábito, como sinal exterior de
uma realidade mariana viva (cfr. quadro sobre sentido da capa). São características e sinais vitais do
próprio caráter mariano para o homem medieval.
Familiaridade
de vida
O sucessivo
desenvolvimento da característica mariana conduz as primeiras gerações
carmelitanas a verem também na Virgem Maria a forma ideal da encarnação de seu
‘propositum vitae’. Nasce assim a exemplaridade da virgindade de Maria, não
apenas vista como isenção do pecado (condição para o encontro com Deus), mas
assumida como disposição radical para a união e escuta da Palavra. O ulterior
aprofundamento da natureza da devoção mariana, realizado por alguns autores
espirituais, conduz a uma familiaridade de vida com Maria a fim de seguir
melhor a Cristo.
O primeiro a dar
forma orgânica aos elementos marianos da Ordem foi João Baconthorp no principio
do século XIV. A sua doutrina pode ser sintetizada em dois pontos:
Tudo o que o carmelita faz, deve fazê-lo
para honra e glória de Maria porque, consoante a vontade divina, esta é a razão
da existência de sua Ordem. Maria é de fato a "domina loci" (isto é,
a Senhora do lugar, ou seja, do Carmelo).
a
vida do carmelita exige que ele imite Maria na prática de todas as virtudes
porque a conformidade é a melhor glorificação, e tender à mesma é manifestação
de amor que, por sua vez, aumenta sempre mais o amor.
A ideia da
exemplaridade de Maria, expressada forte e amplamente por Baconthorp, é
sucessivamente retomada por muitos autores até ser desenvolvida como um viver
em conformidade com Maria, especialmente em relação à virgindade. Esta relação
é a base para a consideração de Maria como irmã, e, portanto não somente tomada
como um modelo a imitar. Ela é doce presença na vida do Carmelita (cf.
afirmação do livro Formação dos primeiros monges).
A reflexão
mariológica chegou a ponto de afirmar que, não somente o Carmelo é todo de
Maria, mas que, a própria Maria pertencia ao Carmelo. Tal idéia vem consignada
no título ‘Virgo Carmelitana’ como se Nossa Senhora fosse membro efetivo da
Ordem. Esta gentil expressão, freqüente não apenas nos Fioretti do Monte
Carmelo de Nicolau Calciuri (+1466) e nos escritos de Arnoldo Bostio (+ 1499),
está também presente na iconografia. Nas rubricas litúrgicas passou a
substituir-se o termo santa pela palavra Virgem, referindo-se a Nossa Senhora.
Junto ao tema da
virgindade de Maria, deu-se também ênfase à sua pureza. Os Carmelitas
consideravam a Imaculada, a ‘tota pulchra’, a ‘Virgo Virginum’ como exemplo
para sua disponibilidade a Deus e vida de união com Ele. O culto à Virgem
Puríssima é forte ajuda à dimensão contemplativa. É uma continuação do
precedente à Virgem da Anunciação, já difundido no século XIII. A pureza de
Maria atrai Deus a seu coração, na Anunciação. Os Carmelitas, se não a podem
imitar neste privilégio singular, podem porém imitá-la em sua união com Deus
por meio da oração e na fé para escuta da Palavra do Senhor. Maria, modelo de
perfeição no caminho espiritual, é assim
tomada por S. Teresa de Jesus e S. João da Cruz. Já Santa Maria Madalena de Pazzi
(+1607) utiliza a palavra ‘puridade’ [total pureza do ser] para indicar com ela
a ‘fonte da santidade de cada ser’. Explica da seguinte forma esta idéia: na
pureza da Virgem Maria brilha a beleza que Deus concedeu a ela. Nesta pureza o
ser humano encontra uma mensagem: ela é reflexo da disponibilidade a Deus, da
conformidade com sua vontade; é testemunho, fecundidade e profecia.
No final do
século XV Arnold Bostio elaborou uma primeira síntese da devoção mariana da
Ordem. Retomou os elementos da tradição precedente (infelizmente dando-lhes
conotação histórica, o que hoje não
resiste à crítica), acrescentando contudo elementos de ordem espiritual. Lembra que, além da oração e da imitação para
uma autêntica vida mariana, faz-se necessário o contato permanente com a ‘Mãe
terníssima’. Por isso, o amor da Mãe deve ser sempre e em toda parte a
inspiração de todas as ações do Carmelita que, consagrado deste modo,
existencialmente, a Maria, oferece-se inteiramente a Deus.
As ideias de
Bostio foram reproduzidas e se difundiram, graças a outros autores. Dentre eles
encontramos no séc. XVII Frei Marcos da Natividade (+1696), que inseriu, na sua
célebre obra dos Diretórios para Noviços, a doutrina de Bostio, explanando
melhor a pertença do Carmelita e de todos os seus interesses à Virgem Maria e
como oferecê-los, por suas mãos, a Deus.
O ápice de todo
o desenvolvimento mariano da Ordem, no passado, é constituído pelos
ensinamentos de Frei Miguel de S. Agostinho e da sua discípula Maria Petyt, que
viveram no século XVII. De modo especial, no seu célebre tratado sobre a ‘Vida
Marieforme’, Miguel de S. Agostinho explica o seu pensamento focalizando-o em
três centros de interesse:
- O progresso de uma clara e breve
doutrina ascético-mística, apoiada em bases teológicas (maternidade divina e
espiritual, mediação, realeza), para conduzir à conformidade de vida com Maria
mediante uma constante recordação sua (como a prática da presença de Deus), e
um esforço sincero para reproduzir suas virtudes.
- A contribuição nova (embora já
proposta por algum autor precedente) sobre a participação na vida afetiva de
Cristo para com Maria. Isto é apresentado explicando o texto GaI 4, 6.
Traduzindo na prática: o amor a Nossa Senhora não é apenas uma imitação do amor
de Jesus a ela, mas também a sua continuação através da nossa participação na
vida afetiva de Jesus para com Maria (cfr. Tratado, cc. 13,14,15).
- A descrição da união mística com Maria
e com Deus, tendo presente os exemplos admiráveis de Maria Petyt, a sua discípula.
Esta união mística é também lembrada por outros autores Carmelitanos, como a
venerável Serafina de Deus (+1699), Maria de S. Pedro (+1848), Teresinha do
Menino Jesus, e, antes de P. Miguel de S. Agostinho, Balduino Leersius (+1483),
Teresa de Jesus, e Madalena de Pazzi.
O
caráter mariano, no decurso dos séculos, é explicitado concretamente em
elementos litúrgicos e devocionais: oficio em honra de Nossa Senhora, antífonas
marianas, festas marianas, orações, devoções particulares, etc, e, finalmente,
com o escapulário, que assume também o papel de mediação popular da consagração
a Maria e da sua proteção. Esta mediação popular (conforme uma primeira análise
das pregações e dos estatutos de confrarias, etc.) consubstancia-se em três
fortes realidades: a oração mariana, a prática sacramental e o exercício das
obras de misericórdia.
Em época recente
a imitação das virtudes de Maria tem sido assumida como a melhor forma de
devoção mariana (cf. Teresa do Menino Jesus). Busca-se para esta devoção um
fundamento bíblico (cf. Elisabeth da Trindade); olha-se para Maria como aquela
que indica o caminho para a santidade (cf. Edit Stein) e é feito a cada
Carmelita o convite para ser como Maria ‘Theotócos’, ou seja, estar com ela em
gestação, para levar Cristo ao mundo (Tito Brandsma).
Os vários
desenvolvimentos desta intensa reflexão mariana são reforçados pelos apelativos
com que é denominada Nossa Senhora: Patrona, Senhora do lugar, Virgem
Puríssima, Irmã, Mãe (OCD: mais Rainha) e Honra do Carmelo, Flor do Carmelo,
Nossa Senhora do Escapulário e tantos outros carinhosos títulos e canções que
lhe são dedicados, ao longo do caminho carmelitano.
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