Em
declarações à imprensa espanhola, o chefe do principal tribunal eclesiástico do
Vaticano disse que os quatro cardeais que acusaram o Papa Francisco de
criar confusão com seu documento “Amoris Laetitia” são culpados de causarem “um escândalo muito
grave” e que o papa poderia retirar os seus barretes cardinalícios. A
reportagem é de Inés San Martín, publicada por Crux, 29-11-2016. A
tradução é de Isaque Gomes Correa.
De
acordo com o decano do Tribunal da Rota Romana, os quatro cardeais que
recentemente publicaram uma carta onde pedem que o Papa
Francisco esclareça algumas ideias presentes em Amoris Laetitia, documento sobre a
família, poderiam perder seus barretes cardinalícios como decorrência daquilo
que chamou de um “escândalo muito grave” por eles causado.
“Que
Igreja defendem esses cardeais? O Papa é fiel à doutrina de Cristo”, falou o Pe.
Pio Vito Pinto.
“O que
eles [os cardeais] fizeram é um escândalo muito grave que poderia até mesmo
levar o Santo Padre a retirar-lhes o barrete cardinalício, como já
aconteceu em outros momentos da Igreja”, completou.
Nomeado
em 2012 pelo Papa Emérito Bento XVI para ser o chefe do principal
tribunal eclesiástico do Vaticano – conhecido como Rota Romana –, Vito
Pinto foi rápido em esclarecer que suas palavras não significam que Francisco vá
tomar tal decisão; significam apenas que ele poderia.
Vito Pinto esteve
na Espanha no final de novembro para proferir uma palestra na Universidade
de San Damaso, em Madri, como parte de uma conferência sobre as reformas do Papa Francisco no campo
da anulação matrimonial.
Foi em
entrevista ao sítio Religión Confidencial que o juiz fez estes
comentários concernentes à carta dos cardeais Walter Brandmüller, Raymond Burke, Carlo Caffarra e Joachim Meisner, formalmente chamada de
“dúbia”.
Segundo
o texto da reportagem, Pito disse que os quatro cardeais e outros
dentro da Igreja, estão pondo em dúvida “dois sínodos dos bispos sobre o
matrimônio e sobre a família. Não um sínodo, mas dois! Um ordinário e o outro
extraordinário. Não se pode duvidar da ação do Espírito Santo”.
Na
palestra proferida por Vito Pinto, amplamente reportada por jornais e
sites espanhóis, ele disse que em países como a Itália, a Espanha ou a Polônia,
o casamento religioso ainda é altamente valorizado, mas “a verdade é que muitos
dos batizados celebram o casamento civil ou vivem juntos sem estarem casados”.
Sobre
aquilo que a Igreja chama de “situações irregulares” – coisa que ele não
especificou, mas que pode ir desde os fiéis divorciados e recasados no
civil até os fiéis gays em união civil –, Vito Pinto declarou: “O que
nós fazemos? Transformar a Igreja em uma prisão? Ficar de pé na porta da
paróquia e dizer: ‘Você sim [pode entrar], você não’?”
Como
uma solução, o decano da Rota Romana sublinhou a importância do discernimento,
sustentando que nada mudou depois de Amoris Laetitia em termos do
magistério católico. No entanto, acrescentou: “Nem tudo é preto ou branco, há
tons de cinza”, algo que o próprio pontífice argentino disse mais de uma vez.
O critério,
segundo ele, tem de ser “facilitar tudo aquilo que leva à saúde das almas”.
No
tocante às repercussões jurídicas de Amoris Laetitia, Vito Pinto falou
que os canonistas também são chamados à “conversão” porque, mesmo se durante o
segundo milênio uma “interpretação jurídica de tudo” impôs-se sobre a Igreja,
na realidade “o direito é uma ferramenta necessária”, mas não é o fundamento da
fé.
A
título de informação, uma “dúbia” é um documento que os bispos enviam ao papa ou
ao Vaticano em que se pedem esclarecimentos sobre um tema específico. Esta
prática é rotineira e raramente é motivo das manchetes.
A dúbia
dos quatro cardeais relaciona-se com os sacramentos quando pede que Francisco esclareça
acerca da “existência de normas morais absolutas, válidas sem qualquer exceção,
que proíbem atos intrinsecamente maus”.
Eles
também perguntam se agora é possível conceder a absolvição no sacramento
da Penitência e, portanto, a Comunhão a casais divorciados e que
voltaram a se casar no civil, sem antes preencherem as condições estabelecidas
pelo documento do São Papa João Paulo II sobre a família Familiaris
Consortio.
Uma
destas exigências é que os cônjuges em uma tal situação vivam em castidade,
“como irmãos e irmãs”.
O texto
completo da carta, com cinco perguntas de sim ou não que os prelados submeteram
ao papa em setembro passado, foi voluntariamente tornado público pelo grupo no
começo deste mês após Francisco ter informado que não iria responder.
Pedindo
que o movimento feito por eles não fosse visto como um ataque “conservador”
contra os “progressistas”, os cardeais disseram que estavam motivados pela
preocupação pelo “verdadeiro bem das almas” e pela “profunda afeição colegiada
que nos une ao papa”.
“Criar
clareza: Alguns nós por resolver em ‘Amoris Laetitia’ – Um apelo” é como os
quatro intitularam a “dúbia” e a “premissa necessária”.
Logo em
seguida, Burke concedeu entrevista ao National Catholic Register em
que diz que se o silêncio do papa se mantiver, eles poderão ter de emitir um
“ato formal de correção de um grave erro”.
Algumas
figuras na Igreja alinharam-se junto aos quatro prelados, pedindo que o papa
esclareça a sua exortação apostólica, em particular a nota de rodapé número
351, uma das que mais gerou debates sobre o acesso aos sacramentos para os divorciados
e recasados.
É o
caso do bispo do Cazaquistão Athanasius Schneider, que submeteu uma
postagem ao blog tradicionalista Rorate Caeli descrevendo a carta dos
cardeais como uma “voz profética”.
Outros,
como o Pe. Antonio Spadaro, editor-chefe da Civiltà
Cattolica, importante revista jesuíta cujas publicações são previamente
aprovadas pela Secretaria de Estado do Vaticano, disse que Francisco já
respondeu às perguntas feitas na dúbia, e em uma transmissão recente feita pela CNN Spadaro
defendeu a decisão do papa de não respondê-las novamente.
Entre
outros exemplos, esse segundo grupo alega que o papa respondeu a dúbia numa
carta – que vazou à imprensa – enviada aos bispos de sua ex-arquidiocese, Buenos
Aires, onde endossa um documento escrito pelos prelados argentinos que afirma
que as portas foram abertas para que os fiéis divorciados e recasados tenham
acesso à Comunhão.
Caso o Papa
Francisco fizesse o que Vito Pinto disse e removesse os quatro
prelados do Colégio Cardinalício, estaríamos diante de um movimento raro, porém
não inteiramente inédito.
Há o
caso do jesuíta francês Louis Billot,criado cardeal por Pio X em
1911, mas que renunciou a essa condição em 1927. Billot era um forte apoiador
do movimento francês conservador Action Française, o que causava tensões
entre ele e o Vaticano.
O Papa
Pio XI proibiu o jornal do movimento em todos os lares católicos. Billotdiscordou
da decisão papal e acabou apresentando a sua renúncia, muito embora alguns
historiadores acreditam que o papa exigiu que ele assim o fizesse.
Os
outros dois casos recentes são os de Hans Hermann Groër, de Viena, e Keith O’Brien,
de Edimburgo, que renunciaram a todos os direitos e privilégios cardinalícios –
o primeiro sob o São Papa João Paulo II e o segundo sob Francisco –
em ambos os casos por assuntos envolvendo conduta sexual imprópria.
No
entanto, como disse ao sítio Crux o canonista Kurt Martens, da
Universidade Católica da América, Groër e O’Brien na
verdade mantiveram-se com os seus barretes de cardeais, perdendo somente os
privilégios e as responsabilidades que os estes possuem, tais como participar
em um conclave para eleger o papa.
Teoricamente,
um papa cria cardeais e, portanto, pode destituí-los, embora, como mostram
estes exemplos, em geral os cardeais em apuros irão entregar os seus barretes
voluntariamente antes de chegarem ao ponto de banimento.
O Pe.
Francis G. Morrisey, também especialista em Direito Canônico, disse ao Cruxque
“o cardinalato nada tem a ver com o sacerdócio, ou o episcopado. É uma honraria
que pode ser retirada”.
Isso
quer dizer que se um bispo é feito cardeal e em seguida tem esta condição
retirada, ele ainda é bispo, da mesma forma como um padre continuaria sendo
padre, observou Morrisey.
Ainda
que seja impossível prever o que Francisco fará, tanto Martens como Morrisey concordam
que ele não deveria retirar a condição cardinalícia dos quatro cardeais que
apresentaram a dúbia.
Morrisey diz
que destituir-lhes faria deles “vítimas entre as facções arquiconservadoras, e
isso poderia facilmente levar ao cisma”.
Ele não
que Francisco não deve responder às perguntas, pois são “perguntas capciosas
como as que os fariseus fizeram a Jesus”.
Martens não
diria “cisma”, mas afirmou que Francisco, ao tirar o barrete cardinalício
destes cardeais, criaria “uma guerra total”.
Muito
embora apenas quatro cardeais vieram à frente se manifestar, certamente eles
“não são os únicos” que têm dúvidas. Eles possuem muitos seguidores que
concordam entre si em que Amoris Laetitia deixa margem para
dúvidas.
“Se o
papa concorda ou não com o que escreveram os cardeais, de forma alguma seria
sábio [pedir que eles renunciassem], pois eles estão fazendo as perguntas que
muitos têm, seja de ‘esquerda’, seja de ‘direita’”, declarou, acrescentando
que, no final das contas, os cardeais fizeram o que deveriam fazer: “Assessorar,
aconselhar o papa”.
Martens disse
ainda que se consultado pelo Papa Francisco, ele o aconselharia a convidar
os quatro cardeais para uma conversa, porque, entre muitas razões, ao retirar
os barretes cardinalícios, ele estaria fazendo o oposto do que prega, que é
convidar as pessoas ao diálogo. Fonte: http://www.ihu.unisinos.br
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