A Carta
Aberta dos cardeais ao Papa Francisco – na íntegra.
1. Uma
premissa necessária
O envio
desta carta ao Papa Francisco por parte de quatro cardeais nasce de uma profunda
preocupação pastoral.
Temos
observado a desorientação de muitos fiéis, e a confusão em que se encontram,
relativamente a questões de grande importância para a vida da Igreja. Temos
notado também que inclusive no seio do colégio episcopal se fazem interpretações
contrastantes do capítulo oitavo de “Amoris laetitia”.
A
grande Tradição da Igreja ensina-nos que o caminho para sair de situações como
esta passa pelo recurso ao Santo Padre, pedindo à Sé Apostólica que resolva as
dúvidas que são causa de desorientação e de confusão.
O nosso
é, pois, um ato de justiça e de caridade.
De
justiça: ao tomar esta iniciativa estamos a professar que o ministério petrino
é o ministério da unidade, e que a Pedro, ao Papa, cabe o serviço de confirmar
na fé.
De
caridade: é nossa intenção ajudar o Papa a prevenir divisões e contraposições
na Igreja, pedindo-lhe que dissipe todas as ambiguidades.
Fazendo-o,
cumprimos também um estrito dever que nos incumbe. Segundo o Código de Direito
Canónico (câns. 349, 358 e 360), aos cardeais está confiada a missão de ajudar
o Papa na solicitude pela Igreja universal.
O Santo
Padre decidiu não responder. Interpretamos esta sua soberana decisão como um
convite para continuar a reflexão e a discussão, de modo sereno e respeitoso.
Por essa razão, damos agora a conhecer a nossa iniciativa a todo o povo de Deus, fornecendo para isso toda a documentação pertinente.
Por essa razão, damos agora a conhecer a nossa iniciativa a todo o povo de Deus, fornecendo para isso toda a documentação pertinente.
Esperamos
que ninguém interprete este facto nos termos do esquema
“progressistas-conservadores”; seria um engano. Estamos profundamente
preocupados com o verdadeiro bem das almas, que é a suprema lei da Igreja, e
não em fazer avançar dentro da Igreja um qualquer tipo de política.
Esperamos
também que ninguém, julgando injustamente, nos tenha na conta de adversários do
Santo Padre e de pessoas privadas de misericórdia. O que fizemos e o que
estamos a fazer nasce do profundo afeto colegial que nos une ao Papa, e da
preocupação apaixonada pelo bem dos fiéis.
Card. Walter Brandmüller
Card. Raymond L. Burke
Card. Carlo Caffarra
Card. Joachim Meisner
Card. Raymond L. Burke
Card. Carlo Caffarra
Card. Joachim Meisner
2. A
carta dos quatro cardeais ao Papa
Ao
Santo Padre Francisco
e com
conhecimento a Sua Em. Rev. Senhor Cardeal Gerhard L. Müller
Beatíssimo
Padre,
No
seguimento da publicação da Vossa Exortação Apostólica “Amoris laetitia”, foram
propostas, por parte de teólogos e estudiosos, interpretações não só
divergentes, mas também contrastantes, sobretudo no que respeita ao cap. VIII.
Além do mais, os meios de comunicação têm vindo a pôr em realce esta diatribe,
provocando, desse modo, incerteza, confusão e desorientação por entre muitos
dos fiéis.
Por
essa razão, chegaram-nos, a nós que nos subscrevemos, como também a muitos Bispos
e Presbíteros, numerosos pedidos da parte de féis pertencentes a diversas
condições sociais, a respeito da correta interpretação a dar ao cap. VIII da
Exortação.
Assim,
movidos em consciência pela nossa responsabilidade pastoral, e desejando praticar
sempre melhor aquela mesma sinoladidade a que Vossa Santidade nos exorta,
permitimo-nos, com profundo respeito, vir pedir-Vos, Santo Padre, que, como
Mestre supremo da fé, chamado pelo Ressuscitado a confirmar os irmãos na fé,
dirimais as incertezas e crieis clareza, dando benevolamente resposta aos
“Dubia” que nos consentimos juntar à presente.
Apraza
a Vossa Santidade abençoar-nos, deixando-Vos a nossa promessa de uma constante
presença na nossa oração.
Card. Walter Brandmüller
Card. Raymond L. Burke
Card. Carlo Caffarra
Card. Joachim Meisner
Card. Raymond L. Burke
Card. Carlo Caffarra
Card. Joachim Meisner
Roma, 19 de Setembro de 2016.
*
3. Os
“Dubia”
1- Pergunta-se
se, de acordo com quanto se afirma em “Amoris laetitia”, n. 300-305, se tornou
agora possível conceder a absolvição no sacramento da Penitência, e, portanto,
admitir à Sagrada Eucaristia, uma pessoa que, estando ligada por vínculo
matrimonial válido, convive “more uxorio” com outra, sem que estejam cumpridas
as condições previstas por “Familiaris consortio”, n. 84, e entretanto
confirmadas por Reconciliatio et paenitentia, n. 34, e por “Sacramentum
caritatis”, n. 29. Pode a expressão “[e]m certos casos”, da nota 351 (n. 305)
da exortação “Amoris laetitia”, ser aplicada a divorciados com uma nova união
que continuem a viver “more uxorio”?
2- Continua
a ser válido, após a exortação pós-sinodal “Amoris laetitia” (cf. n. 304), o
ensinamento da encíclica de São João Paulo II “Veritatis splendor”, n. 79,
assente na Sagrada Escritura e na Tradição da Igreja, acerca da existência de
normas morais absolutas, válidas sem qualquer excepção, que proíbem atos
intrinsecamente maus?
3-Depois
de “Amoris laetitia” n. 301, pode ainda afirmar-se que uma pessoa que viva
habitualmente em contradição com um mandamento da lei de Deus, como, por
exemplo, aquele que proíbe o adultério (cf. Mt 19, 3-9), se encontra em
situação objetiva de pecado grave habitual (cf. Pontifício Conselho para os
Textos Legislativos, Declaração de 24 de Junho de 2000)?
4- Após
as afirmações de “Amoris laetitia”, n. 302, relativas às “circunstâncias
atenuantes da responsabilidade moral”, ainda se deve ter como válido o
ensinamento da encíclica de São João Paulo II “Veritatis splendor”, n. 81,
assente sobre a Sagrada Escritura e sobre a Tradição da Igreja, segundo o qual:
“as circunstâncias ou as intenções nunca poderão transformar um acto
intrinsecamente desonesto pelo seu objecto, num ato ‘subjectivamente’ honesto
ou defensível como opção”?
5-Depois
de “Amoris laetitia”, n. 303, ainda se deve ter como válido o ensinamento da
encíclica de São João Paulo II “Veritatis splendor”, n. 56, assente sobre a
Sagrada Escritura e sobre a Tradição da Igreja, que exclui uma interpretação
criativa do papel da consciência, e afirma que a consciência jamais está
autorizada a legitimar excepções às normas morais absolutas que proíbem ações
intrinsecamente más pelo próprio objeto?
*
4. Nota
explicativa dos quatro cardeais
O
CONTEXTO
Os
“dubia” (do latim, “dúvidas”) são questões formais dirigidas ao Papa e à
Congregação para a Doutrina da Fé, pedindo uma clarificação acerca de temas
particulares relativos à doutrina ou à prática.
O que
estes pedidos têm de particular é o facto de serem formulados de modo a pedirem
como resposta um “sim” ou um “não”, sem argumentações teológicas. Não fomos nós
a inventar esta modalidade da forma de se dirigir à Sé Apostólica; é uma
prática secular.
Tratemos
agora do que está em jogo.
Depois
da publicação da exortação apostólica pós-sinodal “Amoris laetitia”, sobre o
amor na família, levantou-se um amplo debate, em especial a respeito do
capítulo oitavo. Mais especificamente ainda, os parágrafos 300-305 têm sido
objeto de interpretações divergentes.
Para muitos
– bispos, párocos, fiéis –, estes parágrafos fazem alusão, ou ensinam
explicitamente, uma mudança da disciplina da Igreja a respeito dos divorciados
que vivem numa nova união, ao passo que outros, admitindo embora a falta de
clareza, ou mesmo a ambiguidade das passagens em questão, argumentam que estas
mesmas páginas podem ser lidas em continuidade com o magistério precedente e
não contêm uma modificação quanto à prática e aos ensinamentos da Igreja.
Animados
por uma preocupação pastoral para com os fiéis, quatro cardeais enviaram uma
carta ao Santo Padre sob a forma de “dubia”, esperando assim obter clareza,
dado que a dúvida e a incerteza são sempre em grandíssimo detrimento do cuidado
pastoral.
O facto
de que os intérpretes cheguem a diferentes conclusões deve-se também à
existência de vias divergentes a propósito da compreensão da vida cristã. Nesse
sentido, o que está em jogo em “Amoris laetitia” não é somente a questão de se
saber se os divorciados que iniciaram uma nova união – sob certas circunstâncias
– podem ser readmitidos ou não aos sacramentos.
É mais
do que isso, já que a interpretação do documento implica maneiras diferentes e
contrastantes de encarar o estilo de vida cristão.
Assim,
enquanto a primeira questão dos “dubia” diz respeito a um tema prático relativo
aos divorciados recasados civilmente, as restantes quatro questões são
relativas a temas fundamentais da vida cristã.
AS
PERGUNTAS
Dúvida
número 1:
Pergunta-se
se, de acordo com quanto se afirma em “Amoris laetitia”, n. 300-305, se tornou
agora possível conceder a absolvição no sacramento da Penitência, e, portanto,
admitir à Sagrada Eucaristia, uma pessoa que, estando ligada por vínculo
matrimonial válido, convive “more uxorio” com outra, sem que estejam cumpridas
as condições previstas por “Familiaris consortio”, n. 84, e entretanto
confirmadas por Reconciliatio et paenitentia, n. 34, e por “Sacramentum
caritatis”, n. 29. Pode a expressão “[e]m certos casos”, da nota 351 (n. 305)
da exortação “Amoris laetitia”, ser aplicada a divorciados com uma nova união
que continuem a viver “more uxorio”?
A
primeira pergunta refere-se, em particular, ao n. 305 de “Amoris laetitia” e à
nota de pé de página 351. A nota 351, pese embora falar especificamente dos
sacramentos da penitência e da comunhão, não menciona, nesse contexto, os
divorciados recasados civilmente, como também não o faz o texto principal.
O n. 84
da exortação apostólica “Familiaris consortio”, do Papa João Paulo II, já
contemplava a possibilidade de admitir os divorciados recasados civilmente aos
sacramentos. Mencionavam-se aí três condições:
– as
pessoas interessadas não podem separar-se sem cometer uma nova injustiça
(poderia acontecer, por exemplo, que fossem responsáveis pela educação dos
próprios filhos);
– os
interessados assumem o compromisso de viver de acordo com a verdade da própria
situação, cessando de viver juntos como se fossem marido e mulher (“more
uxorio”), e abstendo-se dos atos próprios dos esposos;
– os
interessados evitam dar escândalo (isto é, evitam a aparência do pecado para
evitar o risco de levar os outros a pecar).
As
condições indicadas em “Familiaris consortio”, n. 84, e nos sucessivos
documentos acima mencionados mostram-se imediatamente razoáveis, assim que se
recorda que a união conjugal não se baseia apenas na mútua afeição, e que os atos
sexuais não são apenas uma atividade mais entre outras que o casal possa
praticar.
As
relações sexuais são para o amor conjugal. São algo de tão importante, de tão
grande bondade e de tão precioso, que requerem um contexto particular: o
contexto do amor conjugal. Por conseguinte, não só os divorciados que vivem
numa nova união se devem abster, mas também qualquer pessoa que não esteja
casada. Para a Igreja, o sexto mandamento, “não cometer adultério”, sempre abrangeu
qualquer exercício da sexualidade que não fosse conjugal, ou seja, qualquer
tipo de ato sexual além do que se tem com o próprio esposo.
Parece
que, se fossem admitidos à comunhão os fiéis que iniciaram uma nova união no
âmbito da qual vivem como se fossem marido e mulher, a Igreja estaria a
ensinar, através de tal prática de admissão, uma das seguintes afirmações a
propósito do matrimónio, da sexualidade humana e da natureza dos sacramentos:
– O
divórcio não dissolve o vínculo matrimonial, e os parceiros da nova união não
estão casados. Apesar disso, as pessoas que não estão casadas podem, em certas
condições, realizar legitimamente atos de intimidade sexual.
– O
divórcio dissolve o vínculo matrimonial. As pessoas que não estão casadas não
podem realizar legitimamente actos sexuais. Os divorciados recasados são
esposos legitimamente, e os seus atos sexuais são atos conjugais licitamente.
– O
divórcio não dissolve o vínculo matrimonial, e os parceiros da nova união não
estão casados. As pessoas que não estão casadas não podem praticar atos
sexuais. Por isso, os divorciados recasados civilmente vivem numa situação de
pecado habitual, público, objetivo e grave. Todavia, admitir uma pessoa à
Eucaristia não significa para a Igreja aprovar o seu estado de vida público; o
fiel pode abeirar-se da mesa eucarística, mesmo com a consciência de pecado
grave. Para se receber a absolvição no sacramento da penitência não é sempre
necessário o propósito de mudar a própria vida. Por conseguinte, os sacramentos
estão desligados da vida: os ritos cristãos e o culto estão numa esfera
diferente relativamente à da vida moral cristã.
*
Dúvida
número 2:
Continua
a ser válido, após a exortação pós-sinodal “Amoris laetitia” (cf. n. 304), o
ensinamento da encíclica de São João Paulo II “Veritatis splendor”, n. 79,
assente na Sagrada Escritura e na Tradição da Igreja, acerca da existência de
normas morais absolutas, válidas sem qualquer exceção, que proíbem actos
intrinsecamente maus?
A
segunda pergunta diz respeito à existência dos assim chamados atos
intrinsecamente maus. O n. 79 da encíclica “Veritatis splendor”, de João Paulo
II, assevera que é possível “qualificar como moralmente má segundo a sua
espécie […] a escolha deliberada de alguns comportamentos ou atos determinados,
prescindindo da intenção com que a escolha é feita ou da totalidade das
consequências previsíveis daquele ato para todas as pessoas interessadas”.
Ensina,
pois, a encíclica que há actos que são sempre maus, proibidos por aquelas
normas morais que obrigam sem admitir qualquer excepção (“absolutos morais”).
Estes absolutos morais são sempre negativos, isto é, dizem-nos o que não
deveríamos fazer. “Não matar”. “Não cometer adultério”. Somente as normas
negativas podem obrigar sem qualquer exceção.
De
acordo com “Veritatis splendor”, no caso dos atos intrinsecamente maus, não é
necessário qualquer discernimento das circunstâncias ou das intenções. Ainda
que um agente secreto pudesse arrancar informações valiosas à mulher de um
terrorista cometendo adultério com ela, tanto que pudesse até salvar a própria
Pátria (isto, que soará a um exemplo saído de um filme de James Bond, fora já
contemplado por São Tomás de Aquino em De Malo, q. 15, a. 1). João Paulo II
afirma que a intenção (neste caso, “salvar a Pátria”) não muda a espécie do ato
(“cometer adultério”), e que é suficiente saber a espécie do ato (“adultério”)
para se saber que não se deve praticá-lo.
*
Dúvida
número 3:
Depois
de “Amoris laetitia” n. 301, pode ainda afirmar-se que uma pessoa que viva
habitualmente em contradição com um mandamento da lei de Deus, como, por
exemplo, aquele que proíbe o adultério (cf. Mt 19, 3-9), se encontra em
situação objetiva de pecado grave habitual (cf. Pontifício Conselho para os
Textos Legislativos, Declaração de 24 de Junho de 2000)?
No
parágrafo 301, “Amoris laetitia” recorda que a “Igreja possui uma sólida
reflexão sobre os condicionamentos e as circunstâncias atenuantes”, e conclui
que “por isso, já não é possível dizer que todos os que estão numa situação
chamada “irregular” vivem em estado de pecado mortal, privados da graça
santificante”.
Com a
Declaração de 24 de Junho de 2000, o Pontifício Conselho para os Textos
Legislativos pretendeu clarificar o cânone 915 do Código de Direito Canônico,
que determina que “não sejam admitidos à Sagrada Comunhão” aqueles que
“obstinadamente perseverem em pecado grave manifesto”. A Declaração do
Pontifício Conselho afirma que este cânone é aplicável também aos fiéis
divorciados e recasados civilmente. Esclarece ainda que o “pecado grave” deve
ser entendido objetivamente, dado que o ministro da Eucaristia não tem meios
para julgar da imputabilidade subjetiva da pessoa.
Vemos
assim que, para a Declaração, a questão da admissão aos sacramentos tem que ver
com o juízo da situação de vida objetiva da pessoa, e não com o juízo de que
tal pessoa se encontra em estado de pecado mortal. De facto, subjetivamente
poderia não ser plenamente imputável, ou até nem sê-lo de todo.
Na
mesma linha, na sua encíclica “Ecclesia de Eucharistia”, n. 37, São João Paulo
II recorda que, “[t]ratando-se de uma avaliação de consciência, obviamente o
juízo sobre o estado de graça compete apenas ao interessado”. Por conseguinte,
a distinção mencionada em “Amoris laetitia”, entre a situação subjetiva de
pecado mortal e a situação objetiva de pecado grave, já se encontrava bem
estabelecida no ensinamento da Igreja.
Contudo,
João Paulo II continuava, insistindo em que, “em casos de comportamento externo
de forma grave, ostensiva e duradoura contrário à norma moral, a Igreja, na sua
solicitude pastoral pela boa ordem comunitária e pelo respeito do sacramento,
não pode deixar de sentir-se chamada em causa”. Fazendo-o, reafirmava ainda o
ensinamento colhido no cânone 915, já mencionado.
Vê-se
assim que a questão 3 dos “dubia” pretende que se esclareça se, mesmo depois de
“Amoris laetitia”, é ainda possível dizer que as pessoas que habitualmente
vivem em contradição com o mandamento da lei de Deus, vivem em situação objetiva
de grave pecado habitual, mesmo quando, por qualquer razão, não for certo que
elas sejam subjectivamente imputáveis quanto à sua transgressão habitual.
*
Dúvida
número 4:
Após as
afirmações de “Amoris laetitia”, n. 302, relativas às “circunstâncias atenuantes
da responsabilidade moral”, ainda se deve ter como válido o ensinamento da
encíclica de São João Paulo II “Veritatis splendor”, n. 81, assente sobre a
Sagrada Escritura e sobre a Tradição da Igreja, segundo o qual: “as
circunstâncias ou as intenções nunca poderão transformar um acto
intrinsecamente desonesto pelo seu objecto, num acto ‘subjetivamente’ honesto
ou defensível como opção”?
No
parágrafo 302, “Amoris laetitia” sublinha que “um juízo negativo sobre uma
situação objectiva não implica um juízo sobre a imputabilidade ou a
culpabilidade da pessoa envolvida”. Os “dubia” fazem menção do ensinamento –
tal como foi expresso por João Paulo II em “Veritatis splendor” –, segundo o
qual as circunstâncias e as boas intenções jamais podem fazer com que um acto
intrinsecamente mau passe a ser um ato bom ou sequer desculpável.
A
questão está em saber se “Amoris laetitia” concorda em dizer que qualquer ato
que transgrida os mandamentos de Deus, como o adultério, o furto, o perjúrio,
consideradas as circunstâncias que mitigam a responsabilidade pessoal, jamais
se pode tornar num ato bom ou sequer desculpável.
Continuam
estes atos, a que a Tradição da Igreja chamou de pecados graves e maus em si, a
ser destrutivos e danosos para quem quer que os cometa, qualquer que seja o
estado de responsabilidade moral em que se encontre?
Ou
podem estes actos, dependendo do estado subjetivo da pessoa, das circunstâncias
e das intenções, deixar de ser danosos e tornar-se louváveis ou, pelo menos,
desculpáveis?
*
Dúvida
número 5:
Depois
de “Amoris laetitia”, n. 303, ainda se deve ter como válido o ensinamento da
encíclica de São João Paulo II “Veritatis splendor”, n. 56, assente sobre a
Sagrada Escritura e sobre a Tradição da Igreja, que exclui uma interpretação
criativa do papel da consciência, e afirma que a consciência jamais está
autorizada a legitimar exceções às normas morais absolutas que proíbem acções
intrinsecamente más pelo próprio objeto?
Em
“Amoris laetitia”, n. 303, afirma-se que a “consciência pode reconhecer não só
que uma situação não corresponde objetivamente à proposta geral do Evangelho,
mas reconhecer também, com sinceridade e honestidade, aquilo que, por agora, é
a resposta generosa que se pode oferecer a Deus”. Os “dubia” pedem uma
clarificação destas afirmações, por isso que as mesmas são susceptíveis de
interpretações divergentes.
Para os
que propõem a ideia de uma consciência criativa, os preceitos da lei de Deus e
a norma da consciência individual podem estar em tensão, ou até em oposição, ao
mesmo tempo que a palavra final sempre deveria caber à consciência, que decide
em última instância acerca do bem e do mal. De acordo com “Veritatis splendor”,
n. 56, “sobre esta base, pretende-se estabelecer a legitimidade de soluções
chamadas “pastorais”, contrárias aos ensinamentos do Magistério, e justificar
uma hermenêutica “criadora”, segundo a qual a consciência moral não estaria de
modo algum obrigada, em todos os casos, por um preceito negativo particular”.
Segundo
esta perspectiva, para a consciência moral, jamais será suficiente saber que
“isto é adultério”, “isto é homicídio”, para saber se se trata de algo que não
pode e não deve fazer-se.
Em
lugar disso, dever-se-ia ainda olhar para as circunstâncias e para as
intenções, a fim de se saber se um tal ato poderia, apesar de tudo, ser
desculpável ou mesmo obrigatório (cf. pergunta 4 dos “dubia”). Para estas
teorias, de facto, a consciência poderia decidir legitimamente que, num certo
caso, a vontade de Deus para mim consiste num ato mediante o qual eu transgrido
um dos seus mandamentos. “Não cometer adultério” passaria a ser visto como uma
norma geral, quando muito. Aqui e agora, vistas as minhas boas intenções,
cometer adultério seria, afinal, o que Deus realmente me está a pedir. Nesses
termos, seria possível pôr-se a hipótese – no mínimo – de casos de adultério
virtuoso, de homicídio legal e de perjúrio obrigatório.
Isto
significaria conceber a consciência como uma faculdade para decidir
autonomamente acerca do bem e do mal, e a lei de Deus como um fardo que é
arbitrariamente imposto e que, a dada altura, poderia opor-se à nossa
felicidade.
Sucede,
porém, que a consciência não decide do bem e do mal. A ideia de “decisão em
consciência” é enganadora. O ato próprio da consciência é o de julgar e não o
de decidir. Ela diz tão-só “isto é bom”, “isto é mau”. Essa bondade ou maldade
não dependem dela. O que ela faz é aceitar e reconhecer a bondade ou a maldade
de uma acção, e para isso, ou seja, para julgar, a consciência necessita de
critérios; ela é inteiramente dependente da verdade.
Os
mandamentos de Deus são uma ajuda bem-vinda oferecida à consciência para que
colha a verdade e para que, assim, possa julgar segundo a verdade. Os
mandamentos de Deus são uma expressão da verdade sobre o bem, sobre o nosso ser
mais profundo, mostrando algo de crucial acerca de como viver bem.
Também
o Papa Francisco se exprime nestes mesmos termos em “Amoris laetitia”, n. 295:
“também a lei é dom de Deus, que indica o caminho; um dom para todos sem exceção”.
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