Lutar contra o vício em barulho revela o
que realmente importa para viver bem.
Em uma sociedade na qual fazer barulho,
seja online ou offline, virou sinônimo de sucesso, o silêncio parece ter virado
um luxo, disponível apenas para quem puder comprá-lo em condomínios exclusivos
ou lounges de companhias aéreas. Mas o bem-estar ao alcance pelo poder
aquisitivo é, se tanto, uma amostra do que essa busca pode oferecer. Para ter o
pacote completo, a resposta está aí dentro, no seu silêncio, que é ainda mais
exclusivo: só você pode descobri-lo e usufruir dele.
É fácil se corromper com os desafios
pelo caminho. Na era dos textões de Facebook e da avalanche de snaps, o
silêncio e a reflexão acabam jogados para escanteio. Como estamos imersos
na confusão, parece que precisamos participar de tudo e falar cada vez mais
alto. Só que vale a pena se calar um pouco, inclusive para aprender que o
silêncio não é senha para submissão.
"Pelo contrário”, afirma Marcelo
Dermazo, professor de Medicina Preventiva da Unifesp (Universidade Federal de
São Paulo). “Viver no piloto automático, simplesmente reagindo às situações,
não satisfaz mais. As pessoas querem entender quem são e, no silêncio,
encontram tempo para observar e refletir", completa. Ele também afirma que
essa busca não se trata de uma fuga da vida moderna, mas sim entender que se
expressar apenas para não ficar fora do jogo pode ser puro desperdício de
energia.
CALADOS
Eles vão falar apenas para explicar o
motivo de o silêncio ser necessário.
Esse equilíbrio exige sacrifícios,
claro, mas ao final do processo é comum os adeptos do silêncio mostrarem alívio
ao falarem sobre o que tiveram de abrir mão. É o caso do ex-monge budista e
arquiteto Marcio Lupion, 54, que por dez anos praticou o voto de silêncio.
"Abri mão de uma série de coisas
que não me faziam feliz. Você percebe que quando chegava perto das pessoas e
falava coisas do seu interesse, não se dava ao trabalho de perceber se o outro
estava interessado. Percebi que existia um monólogo, cada um conversava consigo
mesmo. Não tem nada muito fantasioso, é aprender a respirar e a ser
verdadeiro com você mesmo. Ouvir é demonstrar afeto", afirma.
De acordo com a proposta, só quando
mudamos de postura conseguimos perceber o quanto o supérfluo pode se tornar
nocivo. "Durante um retiro de silêncio, é comum ter quem diga que não
aguenta mais a ausência de som. Nesses momentos, eu falo: 'para quieto, em
silêncio, você não ouve nada? Tem um carro passando na estrada, ruído de
passarinhos cantando e pelo menos mais quatro tipos de inseto, o farfalhar do
vento nas folhas'. É uma barulheira danada, mas as pessoas não conseguem ouvir
porque estão acostumadas à gritaria", diz Osmar Ludovico, teólogo, diretor
espiritual e autor de “Meditatio”.
Mesmo que não haja um isolamento, é
importante ter momentos de descanso para os ouvidos. É o que pensa a
especialista Alice Bernardi, membro do Departamento de Audição e Equilíbrio da
SBFA (Sociedade Brasileira de Fonoaudiologia). Ela crê que a atual geração
terá um envelhecimento auditivo precoce, resultado do vício em barulho. O
indivíduo que quiser atenuar ou até mesmo superar esse quadro precisa de uma
ação radical, e esse tipo de choque é oferecido a quem visita
centros como o retiro de silêncio Vipassana, em Miguel Pereira, no Rio de
Janeiro.
O sítio que serve de base para o curso
fica isolado no meio da mata. É para relaxar, mas não tem oba-oba. Existem
regras. Horário para as refeições, para acordar, às 6h, e dormir, às 21h. Além
disso, homens e mulheres ficam separados. E nem mesmo no caminho para as áreas
comuns, como refeitório e sala de meditação, é possível cruzar com o gênero
oposto. Placas de "Limite" estão espalhadas pelo local. Tudo para
evitar "distrações".
Estar em silêncio é uma questão de
hábito. Não estamos acostumados a desafiar a nossa mente matraca. Mas para ter
equilíbrio mental, precisamos diminuir a falação interna
Arthur Shaker, antropólogo e coordenador
do núcleo de neurociências da Casa de Dharma, centro budista Theravada, em SP
Quem explicou ao TAB sobre a
técnica de meditação, uma das mais antigas da Índia, foi Macarena Infante. A
chilena é professora do método há dez anos. Pode parecer clichê, mas Macarena
transmite paz e sabedoria. Quando você a ouve, logo surge na sua mente um
"nossa, é verdade" ou "meu Deus, isso acontece comigo",
entre outros pensamentos. "As respostas para os nossos problemas não estão
fora, mas dentro de nós mesmos. Aprendemos a não produzir sofrimento. Estamos
acostumados a chorar, ter raiva, mas essa é a parte mais burra da mente",
afirma a professora.
No Vipassana, você descobre, compreende
e aceita. Esse é o primeiro passo para uma mudança interior. "Apenas no
silêncio conseguimos perceber as reações bioquímicas do nosso corpo quando
sentimos o que não gostamos, quais efeitos isso produz em nós e nos outros e
erradicamos isso", diz Macarena.
Não é uma prática religiosa e, sim, o
silêncio como chave para limpar e purificar a mente. Qualquer pessoa que esteja
saudável e motivada pode fazer. Há listas de espera e um processo de inscrição
no qual perguntam algumas vezes se os candidatos estão realmente dispostos: são
dez dias sem comunicação - verbal e gestual. E nada de livros, celular ou
caderninhos de anotação. É você com você mesmo e dez horas de meditação diária,
em momentos espaçados.
Não custa absolutamente nada. Os centros
do Brasil e do mundo se mantêm com doações dos próprios alunos, seja de
trabalho voluntário ou algum bem material, que oferecem só depois de fazer o
curso. A chilena frisa que Vipassana não é poção mágica. Trata-se de um
processo. E os cursos chegam a mais de 30 dias sequenciais de quietude.
Parece assustador? Não para Gianni
Galiano Vintimilla, 25, que passou três meses na Índia no ano passado após se
formar em Administração em São Paulo. O objetivo era fazer trabalho voluntário
com crianças da zona rural da cidade de Nagpur, na região central. Ela contou
que descobriu o Vipassana na tentativa de absorver experiências culturais do
país.
"Tudo foi muito intenso e cada dia
era uma descoberta. Os pensamentos vinham a mil. Acabei fazendo uma limpa,
voltando mais leve. Hoje, quando sinto algo negativo, coloco em prática o que
aprendi e não sofro tanto. Eles dizem que é um processo de purificação, no qual você
elimina as três principais causas de infelicidade: desejo, aversão e ignorância".
Tudo bem pensar "que difícil, nunca
conseguiria" ou, mais ainda, "quero muito passar por isso".
Religiosos, guias espirituais e psicanalistas consultados peloTAB acreditam
que a maioria das pessoas não se conhece além do superficial "gosto ou não
de tal coisa".
Foi também por esse motivo que a
jornalista Suzana Ferreira, 35, decidiu procurar o Vipassana. Ela passou pelo
curso em agosto deste ano e, por querer se "afastar totalmente", a
maior dificuldade não foi exatamente ficar sem comunicação. "Os problemas
vão aparecendo durante o processo. Via pessoas sofrendo, chorando, mas não
podia fazer nada para interferir, faz parte da descoberta de cada um. Eu
mesma pensei em desistir todos os dias. É muito difícil". É impossível
parar a mente.
A natureza dela é essa: pensar
Macarena Infante , professora de
Vipassana
Suzana tem um problema de audição e
contou que, durante o voto de silêncio, percebeu o quanto potencializa tudo,
inclusive suas dores. "Muitas vezes pensava: 'o que estou fazendo aqui?
Está doendo, eu deveria estar em um hospital'". Mas era só esperar que passava.
"Não reclamar ou me preocupar é complicado. Por isso, o principal
aprendizado foi a questão da impermanência: desapegar das dores, pessoas e
problemas porque tudo vai passar, o que é ruim e o que é bom também."
O silêncio tem um significado particular
para cada indivíduo. No caso dos religiosos, o suporte para seguir na quietude
está em se encontrar com Deus. Irmã Maria José, 41, que já foi franciscana,
encontrou o sentido para sua vida na congregação das Carmelitas Mensageiras do
Espírito Santo, da qual faz parte há 16 anos. O carisma é contemplar para
evangelizar. Embora seja um voto perpétuo, ela afirma que o "silêncio não
custa, é uma necessidade".
"O verdadeiro silêncio é aquele que
você consegue aquietar as faculdades. Silenciar os pensamentos. Temos uma
tendência a julgar o outro, tantos juízos que fazemos de maneira precipitada.
Educar os pensamentos, o coração e não se deixar prender por tantas
preocupações. É um silêncio que não me leva a um vazio existencial, mas ao
encontro com o outro."
A fonoaudióloga Claudia Cotes afirma que
o equilíbrio entre silêncio e fala é essencial para o bem-estar do ser humano,
que sempre vai viver momentos de crise. “Na medida que você se conhece, fica no
silêncio, e depois passa a usar isso para ter uma fala mais equilibrada, é
sinal que encontrou esse conforto”, explica.
Claudia acredita que o problema da
sociedade atual é a falta de medida. Avanços tecnológicos, redes sociais,
YouTube.... Tudo isso chega para agregar, mas quando perdemos o controle,
falamos apenas de nós e esquecemos do outro. “A comunicação tem um grande
poder, mas precisamos usá-la a nosso favor. Quando você fala desenfreadamente,
só de você, perde os vínculos, não tem troca, fica algo vazio”, afirma.
Há 28 anos como professor do curso de Arquitetura
e Urbanismo do Mackenzie, em São Paulo, Marcio Lupion afirma que encontrou nas
aulas o meio de transmitir para os alunos a importância de conseguir perceber
as pessoas. “As ligações mais profundas nascem com aqueles que conseguimos
ouvir”, diz.
A passagem dele pelo mosteiro aconteceu
entre os 21 e 31 anos, depois de ler a Bíblia “pelo menos umas dez vezes”. O
voto não exigiu calar a boca por dez anos, mas foram seis meses de silêncio
absoluto e três anos sem se olhar no espelho. A saída aconteceu quando os
professores perceberam que ele estava se divertindo lá. “’Está na hora de você
transformar tudo o que aprendeu aqui em bem-estar para as pessoas. ’ Foi o que
meus professores falaram quando me pediram para sair”, afirma.
Para Suzana, a jornalista que fez o
curso de Vipassana e pretende retornar em breve, o aprendizado não termina
nunca. “Se não tenho paciência com alguma situação, vou segurar a reação e
tentar não ferir o outro. Não é um milagre do tipo ‘faço um retiro, vou
ficar zen e as coisas não vão me atingir’. É preciso exercitar a mente para
superar as falhas e não se apegar aos sentimentos que causam sensações ruins.
Se perdoar e entender que o outro também falha”, diz. Fonte: http://tab.uol.com.br
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