Frei Donald Buggert, O. Carm.
A Cristocentricidade da Regra
de Alberto2
A Regra de Alberto é notória
por sua concisão. Contudo, contém doze referências diretas e, pelo menos, oito
referências indiretas a Cristo. Foram propostas diversas teorias com respeito
ao “centro” ou “coração” da Regra, como por exemplo, sua dimensão
eremítico-contemplativa ou sua dimensão comunitária.3 Sem querer entrar nesse debate, gostaria de
propor que antes de qualquer outra interpretação, o coração da Regra está na
centralidade de Cristo e no discipulado como continuação de seu trabalho.4
Respondendo ao pedido dos
eremitas do Carmelo por uma fórmula de vida, Alberto, no n.1, como poder-se-ia
esperar, estabelece o projeto fundamental de cada carmelita, ou seja, “caminhar
nas pegadas de Cristo”.5 Então, ele traça na Regra a maneira
específica pela qual esses eremitas deveriam viver a vocação cristã universal
de “uma vida de compromisso com Jesus Cristo”.6 Certamente esse projeto cristocêntrico não
era a única característica dos primeiros carmelitas ou dos seus seguidores.
Contudo, é este projeto que define a modalidade específica da vida cristã
compreendida na Regra. Em todos os aspectos de suas vidas, os eremitas devem in obsequio Jesu Christi vivere. Este obsequium torna-se a “norma suprema e
fundamental” deles.7 Assim, concordo
plenamente com a posição de Valabek:
Santo Alberto percebe imediatamente o essencial: em primeiro lugar, os
religiosos não são convidados a um
modo de vida bem traçado, planejado, mas são compelidos a uma pessoa: Jesus
Cristo. De fato, a Regra está impregnada da presença da pessoa de Cristo tanto
na palavra quanto no sacramento.8
Seja o que for que os
carmelitas possam ou não ser, eles devem em primeiro lugar ser cristãos,
discípulos de Cristo. Portanto, seguir as pegadas de Cristo torna-se a
hermenêutica fundamental da Regra e não apenas um complemento eventual. Como
hermenêutica ela define não apenas toda a Regra, mas também fornece sua chave
interpretativa. Além disso, precisamente como chave interpretativa, seguir no
caminho de Cristo deve atuar junto a uma hermenêutica de dúvida, isto é, uma
hermenêutica que pede discernimento e corrige toda interpretação, passada e
presente, da Regra e oferece uma direção para sua contínua rearticulação.
Afirmei que o projeto
fundamental e, portanto, a hermenêutica da Regra de Alberto, está expressa no
próprio n.1, isto é, caminhar nas pegadas de Jesus Cristo (in obsequio Jesu Christi vivere). Como hermenêutica fundamental,
poder-se-ia pressupor que esse projeto cristocêntrico define a totalidade da
Regra. E realmente o faz. Para apreciar a cristocentricidade da Regra deve-se
em primeiro lugar recuar para além do texto, ou seja, para seu autor e para o
seu contexto eclesial.
Antes da nomeação de Alberto
como bispo de Bobbio em 1184, ele foi um Cônego Regular de Santa Cruz, em
Mortara. Sua formação como cônego impunha a leitura constante da Sagrada
Escritura e a devoção à cruz de Cristo. Além disso, como Patriarca de Jerusalém
e Legado Papal para a Terra Santa, o patrimônio de Cristo, ele tinha um
compromisso especial com o obsequium
da cruz de Cristo.9 Portanto, dentro deste
contexto, a cristocentricidade da Regra não é nenhuma surpresa.
Quanto ao contexto eclesial,
no final do século XII surgiram na Europa novos movimentos espirituais que, criticando
a opulência do clero e dos monges, voltaram-se para as escrituras e, por isso,
à centralidade na imitação de Cristo e no modo apostólico de vida da comunidade
de Jerusalém. Um exemplo desse despertar evangélico são os movimentos de
leigos, eremitas peregrinos dedicados à penitência, à pobreza evangélica e à
visita aos lugares sagrados.10
Além disso, esse mesmo período
testemunhou as Cruzadas, que se incumbia da tarefa de reconquistar a “Terra
Santa”. Contudo, depois da derrota de Hattin em 1187 e com a eleição de
Inocêncio III em 1189, a razão teológica para visitar a “Terra do Senhor”
prevaleceu sobre todos os outros motivos (ex.: militar e comercial).11
De todos os lugares que os eremitas peregrinos da Europa visitavam, a
“Terra de Cristo” tornou-se a mais popular. Lá eles podiam literalmente
caminhar “nas pegadas de Jesus” e imitar seu sofrimento e morte através da
penitência.12 “Pela renúncia de todos os bens terrenos numa
pobreza voluntária, eles buscavam renovar a vida cristã no seguimento de Cristo
através da imitação do ‘modo de vida’ dos Apóstolos”.13
Além disso, como observa Cicconetti,
O fato de estar na
Terra Santa compreendia em si uma decisão de lutar por Jesus Cristo, não
necessariamente no sentido militar, mas no serviço pessoal, na guerra
espiritual. De fato, a Terra Santa era considerada o “patrimônio de Jesus
Cristo”, sua herança ou reino. Quem lá vivesse era por título especial, seu
feudatário, um vassalo no seguimento de Cristo, a quem devia fidelidade e serviço fiel. 14 (A ênfase é minha)
Um desses grupos de peregrinos evangélicos europeus,
eremitas leigos que voltaram à terra de Cristo e à vida apostólica primitiva
para ajudar a reivindicar o patrimônio de Cristo, era o grupo dos eremitas do
Carmelo que pediram a Alberto uma “regra de vida”. Essa regra corresponderia, e
também traçaria mais adiante, um estilo de vida (propositum) que eles já viviam,15 isto é, uma vida dedicada a seguir Cristo,
especialmente o Cristo da Cruz, e vivida na imitação da comunidade primitiva de
Jerusalém.16 Como observa Cicconetti e ficará claro
adiante: “Os pensamentos dos eremitas (do Monte Carmelo) enfocava totalmente a
Terra Santa. A partir dessa postura, que considerava a Terra Santa como o
patrimônio sagrado de Cristo, deve-se contemplar a regra e a espiritualidade do
Carmelo.”17
A partir deste contexto para a “regra” de Alberto,
podemos encaminhar duas perguntas. Primeiro Qual era o significado da frase no
prólogo: “seguir os passos de Jesus”? Segundo, como esse projeto fundamental é
traçado na Regra de tal forma que “define” o conjunto?
2 Em se tratando da Regra refiro-me ao texto
mitigado em 1247 por Inocêncio IV de acordo com a nova enumeração uniforme de
seções aceita em 1999. Com algumas ligeiras revisões, o tratamento da
Cristocentricidade da Regra de Alberto que se segue é tirado das pp. 91-98 de
meu artigo “Jesus in Carmelite Spirituality” encontrado em Paul Chandler, O.
Carm. E Keith J. Egan (eds.), The Land of Carmel: Essays in Honor of
Joachim Smet, O. Carm., Rome: Institutum Carmelitanum, 1991, pp. 91-107.
3 Para uma discussão sobre esta questão, ver
seleções em Mulhall, Albert’s Way.
4
“Ele (Alberto) deseja aos eremitas conforto em Jesus Cristo, que é o centro de
sua regra de vida...”. Otger Steggink, Jo Tigcheler, Kees Waaijman, Carmelite Rule, Amelo, 1979, p. 14, n.9;
veja também p. 47, n.85 e 86, onde a pessoa de Jesus é citada como a razão e a
base definitiva da vida no Carmelo. Rudolph Hendriks afirma: “Não podemos
enfatizar o suficiente: Cristo é o Alfa e o Ômega da Regra Carmelita. A Regra
começa e termina em Cristo... Os primeiros carmelitas queriam apenas servir a
Cristo vivendo uma vida solitária perto da fonte no Monte Carmelo, jejuando e
fazendo vigília, meditando sobre a lei do Senhor, perseverantes na oração. Eles
queriam imitar Cristo em sua oração à noite no monte e vigiar com ele no
jardim”. Veja “The Original
Inspiration of the Carmelite Order as Expressed in the Rule of Saint Albert”,
em Hugh Clarke, O. Carm. e Bede Edwards, O.C.D., The Rule of Saint Albert, Aylesford, 1973, p. 69. Cicconetti
afirma igualmente: “Um modelo central na ‘fórmula de vida’ de Alberto é o
seguimento ou o compromisso com Jesus Cristo (obsequium Jesu Christi)... a espiritualidade da Regra do Carmelo
depende de ‘seguir Cristo’ (obsequium
Jesu Christi). A explicação da expressão de São Paulo constitui toda
novidade de nosso estudo da Regra do Carmelo”. The Rule of Carmel, Darien, IL: Carmelite Spiritual Center,
1984, pp. 14, 15.
5 Discutirei adiante o significado do “in obsequio Jesu Christi vivere”, no
n.1.
6
Cicconetti, The Rule of Carmel,
63, 296.
7
Steggink et al., Carmelite Rule,
p. 4, p. 14, n.11, p. 16, n.17. Ver Bruno Secondin, “What is the Heart of the
Rule”, em Mulhall, Albert’s Way, pp.
116-17.
8 Redemptus M. Valabek, “The Spirituality of the
Rule”, em Mulhall, Albert’s Way, pp.
151-52.
9 Cicconetti, “The History of the Rule”, pp.
25-26, e The Rule of Carmel, pp. 2,
300. Como destacam J. Pelikan e B. McGinn, a devoção à Cruz de Cristo e
a imitação do Cristo crucificado caracterizam a espiritualidade ocidental desde
o início da Idade Média e prosperou nos séculos XI e XII, como podemos ver por
exemplo, nos escritos de Pedro Damião (1007-1072), Anselmo de Cantuária
(1033-1109) e Bernardo de Claraval (1090-1153). E E. Cousins afirma: “No final
do século XIII a devoção à humanidade de Cristo estava solidamente estabelecida
na espiritualidade ocidental e seu foco fixado na paixão de Cristo”. Veja Ewert Cousins, “The Humanity
and the Passion of Christ”, em Jill Raitt (ed.), Christian Spirituality: High Middle Ages and Reformation, New York:
Crossroad, 1989, pp. 386-387. Veja também Jaroslav Pelikan, The Christian Tradition: The Growth of
Medieval Theology (600-1300), Chicago: University of Chicago Press, 1978,
pp. 106-157; Bernard McGinn, “Christ as Savior in the West”, em Bernard McGinn
e John Meyendorff (eds.), Christian
Spirituality: Origins to the Twelfth Century, New York: Crossroad, 1989,
pp. 253-259.
10
Cicconetti, “The History of the Rule”, pp. 34-35, 43 e The Rule of Carmel, p. 27-43.
11
Cicconetti, “The History of the Rule”, p. 31.
12
Steggink et al., Carmelite Rule,
p. 4; Cicconetti, The Rule of Carmel,
pp. 40-41.
13
Cicconetti, The History of the Rule”, p. 43.
14
Cicconetti, The Rule of Carmel,
p. 42; veja também p. 62.
15 Ibid.
pp. 62-63, 269; ver também Steggink et al., Carmelite
Rule, p. 4.
16
Steggink et al., Carmelite Rule,
p.4.
17
Cicconetti, The Rule of Carmel,
p. 17; ver também pp. 63-64.
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