Pedro
Pomar - 1974
A 13 de janeiro de 1825 - faz exatamente
150 anos - morria fuzilado em Recife, por ordem terminante de Pedro I, Frei
Joaquim do Amor Divino Caneca, grande herói da luta do povo brasileiro pela
independência do jugo colonial português, eminente figura de nossa
intelectualidade revolucionária, nacionalista.
As classes
dominantes relegaram-no ao esquecimento. Chegaram mesmo a escarnecê-lo como fez
o ditador Médici, em 1972, ao mandar passear pelas ruas das capitais dos
Estados os ossos de Pedro I. Nossos pseudo-liberais temem falar sobre ele. Em
contraste, o proletariado revolucionário exalta a sua memória como um dos mais
admiráveis exemplos de combatente da causa da libertação nacional e da
soberania popular. São raras as pessoas que, como ele, revelaram tal grau de
rebeldia militante contra os opressores do país e do povo, tanta intransigência
em face dos inimigos, tamanho destemor perante a morte. As lições de sua vida e
de sua luta são fontes perenes de inspiração para todos os patriotas e
democratas, conservam bastante atualidade.
Frei Caneca nasceu na capital
pernambucana, em 1774, quando no mundo feudal surgiam e se desenvolviam as ideias
burguesas de emancipação política, os conceitos de pátria e de nação e, quando
em terras brasileiras, sob o domínio de Portugal, brotavam os fermentos da
autonomia. Era de origem humilde. O apelido que o honrava adveio do fato de, na
infância, ter ajudado o pai, um tanoeiro, vendendo canecas. Certamente, por
vocação religiosa e pelo desejo de estudar, ingressou na Ordem dos Carmelitas.
Naquele tempo, e durante dezenas de anos depois, a Igreja Católica monopolizava
a cultura na Colônia. Para instruir-se e ascender socialmente, os moços das
camadas mais pobres da oprimida e acanhada sociedade colonial deviam ordenar-se
frades ou padres. Outro recurso era ir estudar em Coimbra, o que só os filhos
dos grandes proprietários e senhores de escravos podiam fazer. No entanto, não
foi a confissão religiosa que converteu, desde os albores do século XIX, o
jovem Frei Caneca num ardoroso partidário da independência do Brasil e dos
direitos do povo. Ao contrário, a Igreja, como instituição reacionária, além de
possuir muitas propriedades e riquezas, sempre esteve umbilicalmente ligada às
classes dominantes, sustentou-as por todos os meios. A verdade histórica é que,
nas jornadas de 1817 e 1824 - as primeiras gloriosas tentativas de nossa
revolução nacional e democrática - Frei Caneca e a brilhante falange de seus
companheiros, a maioria de procedência igualmente humilde, não representavam na
revolução, de maneira alguma, o clero, e sim as forças radicais da sociedade
brasileira. Pertenciam à intelectualidade revolucionária, camada mais avançada
da luta libertadora. Eles sentiram, como ninguém, o quanto era intolerável o
domínio da metrópole portuguesa, o quanto pioravam as condições de vida do
povo. Simultaneamente, recebiam a influência das novas idéias revolucionárias e
tomavam conhecimento da vitória da Revolução Francesa de 1789, dos movimentos
emancipadores dos Estados Unidos, da América espanhola, do Haiti. Daí a decisão
de empunhar com valentia a bandeira da autonomia nacional e das reivindicações
liberais burguesas. De modo coerente, passaram a integrar a ala radical do
"Partido Brasileiro", da união das correntes patrióticas favoráveis à
independência, ala que pregava a liquidação da dinastia dos Bragança, sem
regateios nem conciliações prejudiciais à nação.
Em 1822, depois do famoso grito do
Ipiranga e do acordo que permitiu a Pedro I aparecer à frente do novo Estado
Nacional, a linha da intelectualidade nacionalista, oriunda do clero pobre,
chocava-se com a da Igreja oficial. Enquanto esta, já aderida à situação
criada, acusava Frei Caneca de indisciplina e sustentava que a autoridade de
Pedro I tinha origem divina, ele respondia, denunciando as manobras traidoras
do régulo, seu absolutismo e proclamando que a única e verdadeira fonte do
poder é o povo.
Não apenas como pensador, mas
também por suas qualidades políticas e organizativas, Frei Caneca destacou-se
dentre todos os seus companheiros e contemporâneos. Junto com os padres João
Ribeiro, Roma, Miguelinho, Mororó e dezenas de outros, foi um dos dirigentes da
Revolução de 1817, quando pela primeira vez esteve em mãos de patriotas
brasileiros o poder no país. Ao sobrevir a derrota, se bem que não tivesse sido
enforcado ou arcabuzado, como alguns daqueles dirigentes, padeceu inomináveis
torturas e ficou encarcerado na Bahia até 1821, sob a acusação de ter
conclamado o povo à guerra revolucionária e organizado guerrilhas. Efetivamente,
assim procedeu, expressando opiniões como as que seguem: "Quando a pátria
está em perigo, todo cidadão é soldado, todos devem se adestrar nas armas para
rebater o agressor. Não é bastante, que na ocasião do aperto maior, saiam de
suas casas com algumas pistolas ou facas, ou outras quaisquer armas, sem
disciplina, sem ordem, sem chefe hábil nos negócios da guerra; tal estado de
coisas só pode causar a confusão e a desordem. O tempo é de atropelo, devem
vosmecês atropelar também a economia de suas ações?" Não sem motivo,
tornou-se conhecido, desde então, como o "frade guerrilheiro".
As
posições combativas, revolucionárias, nortearam toda a sua vida. Libertado,
voltou logo a Pernambuco para participar da deposição das autoridades coloniais
e da instauração de um governo provisório provincial até que, no plano
nacional, a Assembléia Constituinte, já convocada, indicasse os verdadeiros
rumos do novo Estado e da nação. Ao saber que Pedro de Bragança se entronizava
como Imperador do Brasil, condicionou seu apoio a esse governante à exigência
de que prevalecesse, na Constituição que se elaborava, a vontade soberana do
povo. Com tal objetivo, fundou, em fins de 1823, o jornal Tifnis Pernambucano.
Defendia a instituição de um regime constitucional, representativo, capaz,
segundo ele, de assegurar a independência recém-conquistada. Afirmava que a
unidade nacional devia ser baseada na autonomia das províncias, de acordo com
as tradições brasileiras e como demonstrava a experiência positiva dos Estados
Unidos da América do Norte. Considerava indispensável que o Brasil se
constituísse numa federação, unida pelos interesses e pelos sentimentos do povo
de todo o país. Percebia que a nação, apesar de jovem, já possuía fortes laços
de solidariedade e condições para sobreviver e progredir, percepção que, ainda
hoje, certos elementos ditos progressistas não alcançaram. Embora jamais
tivesse acreditado no liberalismo de Pedro I, mostrou-se disposto a aceitar o
regime monárquico, contanto que a autonomia das províncias fosse preservada,
assim como respeitada a soberania popular. Por isso, a dissolução pela força da
Assembléia Constituinte encontrou de sua parte firme repulsa. E ao ser
informado da imposição da Carta Constitucional, elaborada nos corrilhos
palacianos, conferindo todos os poderes a Pedro I, escreveu, indignado, a um
amigo: "Não admitimos mais imposturas, conhecemos o despotismo, vamos
decepá-lo".
A Confederação do Equador, de 2 de julho
de 1824, teve em Frei Caneca seu principal cérebro, seu autêntico fundador. A
República sonhada englobaria as províncias do Norte, as quais ficariam unidas
por uma Constituição, cujas bases ele publicara em seu jornal, na véspera da
Revolução. Nesse projeto de Lei Magna, propôs enfaticamente a liberdade
política, a igualdade civil, todos os direitos inalienáveis do homem.
Estabeleceu itens relativos à liberdade de imprensa e de opinião. Destacou,
especialmente, a abolição da escravatura nos seguintes termos: "Todo homem
pode entrar a serviço de outro pelo tempo que quiser, porém não pode vender-se,
nem ser vendido". O conteúdo de seu ideário era nitidamente burguês,
democrático. Não obstante, pareceu muito radical, bastante avançado para aquele
período.
Mas a Confederação do Equador só
conseguiu o apoio das províncias da Paraíba e do Rio Grande do Norte. Sem a
adesão das demais, sobretudo da Bahia, cujo movimento popular revelara pujança
e combatividade na luta contra as tropas do general português Madeira, a nova
República duraria pouquíssimos meses. De seu lado, o governo imperial tomara incontinenti
medidas para debelar a revolução a ferro e fogo. Cercado por terra e por mar, o
governo confederado não pôde manter-se. A derrota deveu-se, fundamentalmente, a
certas condições internas adversas da época, ao profundo atraso do país.
Diferentemente dos Estados Unidos, onde vencera a Revolução da Independência
com sentido democrático, no Brasil existia ainda um forte sistema
feudal-escravista, que não deixou surgir nem florescer um núcleo numeroso de
colonos livres. Os centros urbanos brasileiros eram então bastante débeis,
distantes e dispersos. Além disso, a revolução não interessou direta e
profundamente ao grosso da massa de escravos. Posto que condenasse formalmente
a escravidão, não pretendia aboli-la imediata e radicalmente, mas sim de modo gradual.
Em suma, por não terem compreendido a importância da participação da grande
maioria da população escrava na luta pela independência, os líderes do
movimento emancipador de 1817 e 1824 fatalmente seriam esmagados pela reação
feudal e escravocrata.
Frei Caneca não
cedeu facilmente. Julgou encontrar no interior de Pernambuco condições
políticas e topográficas propícias à continuação da luta. Como não podia deixar
de ser, enveredou pelo caminho da resistência armada, recorrendo ao método da
guerra de guerrilhas. Mas quase tudo lhe foi hostil. Até uma tremenda seca
contribuiu para obstar-lhe os planos. Suas colunas rarearam cada vez mais
diante das dificuldades. Havia defecções dos que não tinham igual confiança na
vitória. Mesmo sem recursos, passando fome, rompeu diversos cercos, travou
alguns combates com vantagens e penetrou no sertão do Ceará, em busca de apoio.
Só a 29 de novembro, em decorrência da situação insustentável em que se achava,
aceitou a proposta de rendição formulada pelo comandante das tropas imperiais,
em troca do respeito pela vida dos guerrilheiros e do compromisso de que o
governo não faria vinditas.
Dessa forma,
veio a cair nas mãos de Pedro I o mais intrépido defensor da causa emancipadora
e democrática, o patriota que a reação mais temia e odiava. A Justiça Militar,
nomeada a propósito pelo Imperador, empreendeu de imediato seu julgamento
sumário. Frei Caneca não procurou justificar-se, pessoalmente; sustentou com
bravura suas idéias, seu direito à promover a revolução; não claudicou nem se
prestou a qualquer compromisso com os inimigos da pátria e do povo. Compreendia
que Pedro I queria vê-lo rápida e severamente castigado para exemplo dos que se
atrevessem a levantar-se contra a tirania. Seu comportamento altivo e digno,
contribuiu para desmascarar o não cumprimento da promessa de que os
prisioneiros teriam suas vidas poupadas. O desassombrado lutador deveria morrer
na forca - tal a decisão dos juízes militares, antecipadamente tomada.
Longe
de ficar abatido, Frei Caneca, em virtude de sua fibra moral e de suas
profundas convicções, revelou-se mais animoso do que nunca. O desprezo pela
morte, a consciência de cumprir em qualquer circunstância seu dever de
patriota, de sacrificar a vida pelo bem comum, forjaram nele um dos mais belos
e íntegros caracteres de homens públicos populares que registra a história
brasileira. Cantou tais sentimentos em versos como estes:
"O Patriota não morre:
Vive
além da eternidade;
Sua glória, sem renome.
São
troféus da humanidade."
Pouco antes de ser fuzilado, ainda
compôs outro poema que diz:
"Tem fim a vida daquele
Que
a pátria não soube amar;
A vida do
patriota
Não pode o tempo acabar"
O episódio final do seu suplício mostra
até que ponto ia a sanha da repressão. A agonia arrastou-se praticamente por três
dias, nos quais sua figura se agigantou pela coragem, ao passo que a dos seus
verdugos se amesquinhou pela crueldade. Desde o dia 10 de janeiro se haviam
iniciado os preparativos para o enforcamento. Mas, nesse instante, a Igreja
resolveu interceder junto a Pedro I em favor da vida do condenado, solicitando
que a pena capital fosse comutada em prisão. O Imperador, além de recusar,
ameaçou. A Igreja desistiu. Dia 13, pela manhã, já no patíbulo, ele foi
submetido à degradação canônica, isto é, despido de seus hábitos religiosos e
da condição de frade. Entretanto, o preso comum destinado a colocar-lhe o laço
no pescoço, negou-se a fazê-lo. Ali mesmo foi pisoteado, surrado. Outros dois
presos comuns convocados para a mesma bárbara função, também não a aceitaram.
Diante disso, o representante de Pedro I, brigadeiro (como então se chamava ao
general) Lima e Silva, optou pelo fuzilamento. Entrementes, Frei Caneca, que
fora despertado do sono em que estava mergulhado para subir ao patíbulo,
continuava sereno, procurando falar ao povo e auxiliar os carrascos a
terminarem com a execução. Até que o ato infame se consumou.
Há 150 anos do holocausto do grande
herói popular, cumpre às forças revolucionárias não apenas homenageá-lo como
compreender o sentido de suas idéias e de sua luta, assim como continuá-la nas
novas condições históricas. Nesse período, ocorreram enormes transformações no
mundo e em nosso país. O socialismo venceu em alguns países e avança vitorioso,
enquanto o capitalismo está apodrecendo. As contradições sociais e políticas se
aguçaram. No Brasil, as forças que se opõem ao progresso, à democracia e à
independência nacional já não são senhores de terras e escravistas junto com o
colonialismo português, mas sim os latifundiários e a grande burguesia associada
ao imperialismo, sobretudo ao norte-americano. Por outro lado, as forças
interessadas na revolução são outras, muito mais poderosas. O papel que
representam é também diverso do daquele tempo. Agora, apenas uma parte da
burguesia, a não-ligada aos interesses estrangeiros e à reação, pode participar
da revolução, mas não encabeçá-la. Tampouco a intelectualidade progressista,
inclusive a provinda do clero, tem condições de ser a vanguarda revolucionária.
A direção da revolução cabe ao proletariado, através de seu Partido
marxista-leninista. Nessas circunstâncias, o caráter nacional e democrático da
revolução, embora permaneça formalmente o mesmo, ganhou um novo conteúdo. Sob a
liderança da classe operária e na base da aliança operário-camponesa, ela será
inevitavelmente vitoriosa e abrirá caminho para o socialismo.
Todavia,
muitas das idéias e das medidas expostas e propugnadas por Frei Caneca têm
atualidade, estão na ordem-do-dia. Igualmente, o caminho revolucionário, a luta
armada, e a intransigência que preconizou e revelou são fundamentalmente os
mesmos que hoje devemos trilhar e praticar no combate para pôr abaixo a
ditadura militar e varrer com a dominação do imperialismo estadunidense. Honra
e glória eternas ao grande precursor da luta do povo brasileiro pela
independência e pela democracia!
*Artigo de Pedro Pomar, publicado no jornal A
Classe Operária, 1974.
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