Como a prática, recorrente no Brasil, de
políticos eleitos se tornarem proprietários de empresas concessionárias de
rádio e televisão ou de radiodifusores serem eleitos para cargos do poder
público e passarem a legislar em causa própria é prejudicial à democracia “Coronel” é patente militar em quase todos os
exércitos do mundo. O mais alto posto antes de “general” dentro das Forças
Armadas do Brasil, figura responsável pelo regimento de uma ou mais tropas ou
companhias. No Nordeste brasileiro, “coronel” também é sinônimo de grandes
proprietários de terra, “os coroné”, quem manda, aquele que dita as regras. Daí
o termo “coronelismo”, cunhado, em 1948, no clássico da ciência política
moderna Coronelismo, Enxada e Voto, do jurista Victor Nunes Leal, para dar nome
ao sistema político que sustentou a República Velha (1889-1930). Entre as
interpretações de documentos, legislações e dados estatísticos, o livro explica
como o mandonismo local se misturava aos altos escalões das estruturas de
poder.
Mais de 60 anos se passaram desde a
publicação de Victor Nunes Leal. E o coronelismo de outrora ganhou novos
contornos, entre eles, o chamado coronelismo eletrônico. Em período eleitoral,
nada mais importante do que revisitar essa história e analisar como o controle
de emissoras de rádio e televisão por políticos segue influenciando os rumos da
política brasileira.
Para provocar essa reflexão, a partir
desta semana, o Intervozes, com o apoio da Fundação Friedrich Ebert, publica
uma série de reportagens sobre o fenômeno da concentração dos meios sob o
controle de grupos políticos. Daqui até o final da campanha eleitoral vamos
mostrar por que e como esta prática é prejudicial à democracia, o que diz a
legislação e a quem cabe fiscalizar e punir os abusos, quem são os principais
partidos e grupos econômicos que violam a Constituição e se aproveitam desta
ilegalidade. Por fim, buscaremos conhecer como funcionam as regras em outros
países que desenvolveram mecanismos eficazes de combate ao coronelismo
eletrônico.
A publicação das reportagens é uma
contribuição do Intervozes à campanha Fora Coronéis da Mídia, lançada em julho
deste ano pela Executiva Nacional dos Estudantes de Comunicação Social
(ENECOS), com o objetivo de mobilizar os mais diversos movimentos sociais e
sensibilizar a sociedade e as esferas de poder sobre o tema.
Origens
do problema
De acordo com Victor Nunes Leal, durante
a Velha República, a milícia imperial estava a serviço dos grandes
proprietários de terras e escravos. Esta articulação entre quem comandava as
instituições públicas e os grandes fazendeiros passou a influenciar os
processos eleitorais. Sucessivos governos locais, estaduais e federais se
elegeram com o chamado “voto de cabresto”, a partir da relação estabelecida em
locais pobres. O coronelismo se sustentava, assim, em um sistema político de
troca de favores recíprocos, onde o voto é moeda de troca por benefícios
pessoais, em detrimento do interesse público e do bem comum, também
interpretados como clientelismo e fisiologismo.
Mesmo em meio a uma lavoura
economicamente decadente, os coronéis continuaram a manter uma moeda de valor
inestimável: a influência absoluta sobre a vontade e os destinos de empregados,
meeiros e todos aqueles envolvidos em torno do grande latifúndio. O valor dessa
moeda aumentou com a democratização formal do País, sobretudo no período
republicano quando se universaliza o direito ao voto: o “coronel” passa a ser
então o elo de ligação entre o poder estadual e os eleitores. Aos governos
cabia, como contrapartida, o reconhecimento da autoridade local e a alimentação
desse poder, através da cessão de alguns recursos: empréstimos, empregos e,
sobretudo, os favores das forças policiais. A liderança do coronel exige o
sistema representativo, e essa é a preocupação central de Victor Nunes ao longo
de seu livro. Ele destaca ainda que o sistema coronelista depende sobretudo de
um ambiente baseado na estrutura arcaica de concentração de propriedade do
latifúndio.
Com indicadores censitários da década de
1940, Victor Nunes aponta que os grandes latifúndios ocupavam mais de 75% em
área das terras disponíveis no País e que 70% da população ativa pertenciam à
categoria dos não-proprietários, cifra que chegava a 90%, somados os pequenos
proprietários, cuja situação era de total precariedade, na maior parte dos
lugares.
Apesar do coronelismo ser um episódio
histórico, consequências e processos culturais do sistema coronelista ainda se
fazem sentir na arcaica distribuição fundiária, de renda e de poder no Brasil.
Coronelismo
eletrônico
“Mais sofisticado, sutil e ainda mais
perverso”, na opinião do cientista político e professor da Fundação Getúlio
Vargas (FGV) Francisco Fonseca é o “moderno” fenômeno do coronelismo
eletrônico, ou seja, o uso de canais de comunicação de radiodifusão para
atender a interesses políticos – prática que perdura nos tempos digitais. Suas
origens estão no autoritarismo coronelista de décadas passadas e a prática
política traz inúmeras semelhanças com seus modelos de concentração de
propriedade. Só que, em vez do poder sobre as terras, o controle agora também
alcança as ondas do rádio e da TV.
No início da década de 1980, um repórter
da Rádio Rural, de Concórdia (SC), abria espaço para o depoimento do ex-senador
Atílio Fontana: “Senador, o microfone é todo seu”. O senador, ciente de suas
propriedades, disse a quem quisesse ouvir: “Não só o microfone, meu rapaz, mas
a rádio toda”. Este episódio foi narrado em matéria do Jornal do Brasil que,
naquela época, já denunciava o uso eleitoreiro de 104 estações de rádio e
televisão, espalhadas por 16 estados, de propriedade de deputados,
governadores, senadores ou ministros.
O cenário da época foi analisado pela
professora de comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Suzy
dos Santos, no artigo “o Coronelismo Eletrônico como herança do coronelismo nas
comunicações brasileiras”. Nos anos 80, o processo de abertura política do
regime militar dava seus primeiros passos. Depois de 15 anos de bipartidarismo,
em novembro de 1979, a Reforma Partidária foi aprovada. Os novos partidos
começavam a ser articulados.
“Também naquele ano, foram liberadas as
eleições diretas para governos estaduais. A concentração partidária, através
dos governadores, senadores e prefeitos ‘biônicos’ e da maioria do Congresso
com representantes da Arena, deu o tom da distribuição das outorgas de
radiodifusão para as elites políticas. Na reportagem do Jornal do Brasil,
81,73% das estações de rádio e televisão mencionadas eram controladas por
afiliados do PDS”, partido de remanescentes da Arena, explica Suzy.
Desde a denúncia no Jornal do Brasil, a
expressão “coronelismo eletrônico” tem sido usada com frequência na mídia e em
artigos acadêmicos para se referir ao cenário brasileiro no qual políticos
eleitos se tornam proprietários de empresas concessionárias de rádio e
televisão – ou, então, tão comum quanto, radiodifusores são eleitos para cargos
do poder público e passam, no caso dos eleitos para o Congresso Nacional, a
participar das comissões legislativas que outorgam os serviços e regulam os
meios de comunicação no país, legislando em causa própria. Não foram poucos os
casos na história. Todos passaram impunes.
Neste cenário, alerta Francisco Fonseca,
da FGV, as instituições políticas acabam cooptadas pelo poder econômico dos
grupos de comunicação. “O coronelismo midiático provoca o fim da diversidade. É
antidemocrático. Estimula as estruturas de oligopólios e as pautas
[jornalísticas] em nome de uma elite. É uma censura de mercado, econômica”,
afirma.
O impacto desta prática nos processos
eleitorais e na configuração das representações das instituições também é
significativo. O rádio e, principalmente, a televisão continuam sendo os meios
de comunicação de massa de maior alcance na população. A última PNAD (Pesquisa
Nacional de Amostra de Domicílios) mostrou que 97,2% das residências possuem
pelo menos um aparelho de televisão e 75,7%, um de rádio.
A esses meios de comunicação cabe o
papel de dar expressão às demandas e à diversidade da sociedade em todos os
seus aspectos, mas também de fiscalizar os poderes públicos e a iniciativa
privada. É também por meio de uma mídia livre que se estabelece a ligação e o
controle entre representantes e representados, como princípio fundamental para
o ambiente democrático. Por isso, a Constituição Federal garante o direito de
acesso à informação aos cidadãos e, em conjunto, a liberdade de imprensa.
Num quadro em que um meio de comunicação
de massa, que deveria cumprir uma função pública, é controlado por um político,
que pode influenciar sua linha editorial, a autonomia e independência deste
veículo para exercer o controle sobre o poder público estão totalmente
comprometidas. Ao mesmo tempo, o proprietário do veículo passa a ter o poder de
filtrar e restringir informações e conteúdos a serem divulgados, na medida de
seus interesses e de seus correligionários, numa prática de autopromoção.
Fica caracterizado, assim, um claro desequilíbrio
nos princípios de igualdade dos processos eleitorais, numa situação que pode
configurar até mesmo a violação de eleições livres, com candidatos e partidos
em condições totalmente desiguais de disputa.
Compreendendo o risco para a democracia
brasileira do controle de serviços públicos, como a radiodifusão, por
políticos, a Constituição Federal, em seu artigo 54, proíbe que deputados e
senadores sejam proprietários ou diretores de empresas concessionárias de
serviço público ou exerçam cargo ou emprego remunerado nesses espaços privados.
A medida vem sendo respeitada para diversos serviços, mas segue ignorada no
caso do rádio e da televisão (como veremos nas demais reportagens desta série).
No próximo artigo, você vai saber o que
pensam o Ministério das Comunicações, o Ministério Público e a Justiça
Eleitoral sobre esta prática. E saber como a sociedade civil e partidos
políticos contrários a este uso das concessões de rádio e TV estão lutando
contra o problema.
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Carlos Gustavo Yoda é jornalista e integrante do Intervozes - Coletivo Brasil
de Comunicação Social.
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