Introdução
Os conselhos
evangélicos que um religioso professa devem ser compreendidos num determinado
contexto. Os votos são uma realidade vivida. São valores evangélicos
proclamados publicamente na Igreja por homens e mulheres. Precisamos
compreendê-los menos como um ideal, ou um estado de perfeição para o qual
trabalhamos, do que como um contexto ou uma condição para seguir Jesus Cristo
hoje. Eles apontam para o futuro, para o eskáton. No entanto, eles também são
um modo de viver e testemunhar hoje a presença misericordiosa de Deus no mundo.
Depois destes esclarecimentos, refletiremos sobre os votos a partir de três
princípios básicos ou contextuais.
Em primeiro
lugar, a reflexão teológica para nossa discussão sobre os votos é a encarnação
de Jesus Cristo. Uma teologia pré-Vaticano II enfocava a natureza escatológica
dos votos, dando uma ênfase ao relacionamento espiritual com Cristo e com o
mundo. Este conceito de vida religiosa como um estado de perfeição baseava sua
teologia na interpretação da história do jovem rico (Mt 19,16-22), enfatizando
a ideia de dois caminhos. O melhor caminho é aquele dos conselhos evangélicos
oferecidos a algumas almas escolhidas com a pretensa superioridade do estado
religioso definido mais tarde como o estado da perfeição. Por outro lado, uma
teologia inserida vê Jesus Cristo como a encarnação do amor de Deus por nós. A
realidade histórica de Jesus, e a entrada de Deus na história humana através
dele, mudou a forma de experimentarmos Deus. Por ter sido agraciada por Deus em
Jesus, a experiência humana é o principal veículo para a experiência do amor de
Deus. Então, no contexto dos votos, devemos encará-los como um meio específico
de viver a vida cristã e carmelitana hoje, sem considerá-los exclusivamente
como uma como uma escolha privilegiada.
Em segundo
lugar, a contribuição carmelitana para nossa discussão dos votos é a Regra de
Santo Alberto. Em resposta ao Espírito Santo os primeiros carmelitas
desenvolveram um modo de vida no seguimento de Jesus Cristo. Embora os votos na Regra sejam apenas
mencionados mas não explorados explicitamente, os elementos fundamentais do
carisma carmelitano expressos na Regra são o contexto no qual somos chamados a
viver os votos. A busca pela face de Deus
no contexto da vida comunitária
e no serviço ao povo de Deus é o
local e o processo para vivermos os conselhos evangélicos.
Este carisma é
uma expressão do chamado evangélico à constante conversão em nossos
relacionamentos com Deus. Ele é uma expressão do que significa seguir Jesus.
Então, os três votos tornam-se uma outra maneira de ajudar nesta experiência
contínua de conversão. Uma vida de oração, vivida em comunidade e no serviço
aos outros, torna-se o contexto para a vivência dos votos como religiosos. Os
votos, vividos no contexto carmelitano, deveriam nos ajudar no processo que
“nos transforma na existência amorosa de Deus”.
Finalmente, o
terceiro ponto para nossa discussão dos votos é o contexto cultural que cada um
de nós leva para a vivência dos votos. O desafio para cada um de nós é viver os
votos em nosso próprio contexto. Em outras palavras, o cenário histórico e
cultural de cada carmelita é um sacramento para nós.
História
A história dos
votos religiosos nos mostra uma evolução na vida da igreja. Ao longo da
história da Igreja, a forma e o conteúdo dos votos mudam de acordo com as
necessidades e expectativas da comunidade cristã. Em outras palavras, a vida
religiosa nem sempre foi identificada com os três conselhos evangélicos, tais
como os conhecemos hoje.
Os primeiros
eremitas e cenobitas não faziam uma profissão religiosa formal. Enquanto a castidade,
que possuía uma ênfase mais unitiva e mística, era a virtude característica das
mulheres que faziam votos ao serviço de Deus na Igreja, a virtude que
caracterizava a vida monástica era a obediência, que possuía uma ênfase mais
ascética. Um monge, por exemplo, ia para o deserto e colocava-se sob a
obediência de um pai espiritual. Este pai espiritual o guiaria em sua jornada
espiritual e no desenvolvimento das outras virtudes evangélicas, incluindo, é
claro, a castidade e a pobreza.
Enquanto o
estilo de vida cenobítico crescia, reunindo várias pessoas vivendo juntas em
comunidade, a obediência se tornou um meio de organizar e harmonizar a
comunidade. É difícil determinar quando o compromisso de obediência entrou na
vida monástica, mas nos primeiros anos do século VI, o abade não era visto
simplesmente como o guia espiritual, mas como aquele que está no lugar de
Cristo, dirigindo a família monástica de fé.
Com a Regra de
São Bento foram introduzidas outras promessas. Bento exigiu que o monge
professasse a estabilidade, a mudança de vida e a obediência. Ele menciona a castidade apenas uma vez como
um dos setenta e dois Instrumentos das Obras de Caridade no capítulo quatro de
sua Regra. Caso o monge ainda não tivesse renunciado à sua propriedade antes de
entrar para o mosteiro, ele deveria doá-la ao mosteiro “não retendo nada para
si, sabendo com isso que, deste dia em diante, não seria dono nem de seu
próprio corpo”.
Durante as
Reformas Carolíngias, entre o fim do século VIII e início do século IX, a Regra
de São Bento tornou-se a regra normativa para os monges na Igreja ocidental.
Assim a profissão da obediência, da mudança de vida e da estabilidade eram os
votos religiosos padrões. Durante os séculos que se seguiram a Bento,
especialmente do século VIII até o século XI, muitas das abadias cresceram e se
tornaram estabelecimentos muito prósperos.
Enquanto a Regra
Beneditina tornava-se universal entre os mosteiros da Europa ocidental ao longo
do século IX, surgiu uma forma alternativa de vida religiosa que buscava
inspiração em outro lugar. Um número significativo de monges e cônegos,
seguindo a Regra Agostiniana, que se desenvolveu no início do século XI,
optaram por ser eremitas orantes e um número de mosteiros começou a se reformar
e a se voltar para um estilo de vida mais simples. O século XII foi um período
de revolução econômica na qual a base da riqueza mudou do capitalismo feudal
para o capitalismo comercial. Enquanto as cidades se revitalizavam através da
expansão do comércio, ocorreu uma revolução social. A riqueza e o poder na
sociedade passaram da nobreza rural para os comerciantes urbanos.
Esta revolução
econômica gerou um tremendo sentimento de ansiedade moral, na medida em que as
pessoas viam a ordem estabelecida sucumbir e ser substituída. Nesta tensão,
surgiram muitos movimentos que glorificavam a pobreza evangélica. Os valdenses,
os umiliati e, finalmente, os franciscanos tentaram responder a esse momento,
especialmente este último grupo. Nasceu assim o movimento mendicante: uma
proposta radical de viver o evangelho.
A Regra que
Alberto de Jerusalém deu aos primeiros carmelitas exigia que os eremitas
professassem apenas a obediência. Nesta
ocasião a autoridade era vista cada vez mais como algo adquirido pelos cidadãos
que escolhiam seus líderes para governar, a partir de um consenso entre o povo.
Esta mudança social se refletia num novo estilo de liderança fraterna nas
comunidades religiosas deste período. As novas comunidades rejeitaram o governo
abacial em favor dos priores que governavam suas comunidades com o
consentimento do capítulo. A obediência determinada na Regra Carmelitana
refletiu este novo espírito.
O chamado para um único voto na Regra não
sobreviveu à mitigação de 1247 de Inocêncio IV. Uma das modificações era
expressar diretamente que os carmelitas professam “obediência – que, ao
prometer, o carmelita deve tentar fazer de seu ato uma verdadeira reflexão – e
também a castidade e a renúncia da propriedade”. É
interessante observar que a fórmula de profissão não foi mudada para mencionar
a castidade e a renúncia da propriedade até as Constituições de John Soreth em
1462.
A razão precisa
para esta mudança, que afetou todos os mendicantes, não está clara. Obviamente
os frades não poderiam assumir os votos monásticos, já que a estabilidade era
contrária à visão de Francisco, que queria que seus frades pregassem o
evangelho de cidade em cidade. De fato, para Francisco o que substituía a
estabilidade era a pobreza. Enquanto a Igreja do tempo de Bento necessitava de
monges que respondessem a um pai espiritual confiável, a Igreja no tempo de
Francisco necessitava de religiosos que possuíssem aquela santidade
testemunhada pela pobreza. A pobreza dos valdenses (um grupo de radicais
seguidores do evangelho) e a pobreza e a castidade reconhecidamente rigorosa
dos cátaros (um grupo radical no movimento de vita apostolica) exigia que estas
virtudes fossem intensamente vividas pelos frades. Portanto, faz sentido que a
Igreja tenha ligado estas duas virtudes à obediência, apresentando-as como as
qualidades essenciais da vida religiosa no começo do século XIII.
Quanto ao voto
de pobreza, originalmente os mendicantes queriam um novo estilo de pobreza. Não
significava simplesmente que o indivíduo não tinha qualquer bem pessoal, mas
também obrigava a própria comunidade à pobreza. As ricas abadias não eram mais
o ideal. Os dominicanos e os franciscanos tinham visões ligeiramente diferentes
a respeito desta pobreza comum. Embora nenhum dos dois possuísse propriedades
de produção de renda, os dominicanos tiveram a permissão de possuir conventos
com as plantações que forneciam alimento para sua mesa, ao passo que os
franciscanos não possuíam nem o título de suas casas. Gregório IX impôs um
estilo de pobreza franciscana aos carmelitas em sua Bula de 1229. “...
proibimos estritamente de qualquer forma que vocês aceitem ou ousem manter como
sua propriedade tanto suas ermidas ou bens ou casas ou outra renda...”
Já que Gregório
IX foi um admirador e confidente de Francisco, era natural para ele impor o
ideal de Francisco como o modelo a partir do qual os outros religiosos deveriam
se confrontar. No entanto, tal idealismo não resistiu ao século. Na verdade,
nas últimas décadas do século XIII as comunidades carmelitanas não apenas
possuíam seus conventos e hortas, mas também propriedades com produção de
renda, tais como casas particulares, vinhas, lojas, fazendas e igrejas
paroquiais.
Assim, os votos
têm sido uma realidade que evoluiu na vida religiosa. A forma tríplice tem se
mantido em vigor desde o século XIII. Contudo, está claro que seu papel na vida
religiosa e o significado dos votos particulares mudou através de toda história
da vida religiosa. Então, é importante perceber que como símbolos de um
compromisso interior eles querem ser uma personificação de um valor evangélico
vivido num determinado momento histórico. Eles precisam falar com renovado
vigor em cada situação nova que os religiosos e suas comunidades enfrentam. A
história nos ensina que apenas as coisas que estão abertas para um renovador
significado e para uma compreensão nova, sobrevivem de uma geração à outra e
continuam a contribuir para a vida do corpo de Cristo.
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