Artigo de Agostino Paravicini Bagliani
Se
a tradição cristã que atribui ao demônio um papel de absoluto perigo para a
sociedade é antiquíssima, o modo com que o Papa Francisco fala do demônio é
moderno. O demônio não é mais um inimigo genérico da sociedade.
A
análise é do historiador italiano Agostino Paravicini Bagliani, professor da
Università Vita-Salute San Raffaele, de Milão, ex-scriptor da Biblioteca
Apostólica Vaticana e ex-professor da Escola Vaticana de Paleografia,
Diplomática e Arquivística. O artigo foi publicado no jornal La Repubblica,
13-06-2014. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Há
poucos dias, no dia 1º de junho, no seu discurso no Stadio Olimpico, em Roma, o
Papa Francisco disse que o diabo "não quer a família, eis por que ele
tenta destruí-la". Alguns meses antes (1º de abril), durante a homilia
matinal em Santa Marta, o papa se referira ao diabo para reafirmar a sua
existência: "O diabo existe. O diabo existe. Mesmo no século XXI".
Já
na sua primeira homilia na Capela Sistina, no dia seguinte à sua eleição (13 de
março de 2013), diante dos cardeais que o elegeram, Francisco, falando de
improviso, lembrou o diabo, afirmando que "quando não se confessa Jesus
Cristo se confessa a mundanidade do demônio".
Essa
frequentíssima referência ao demônio poderia, à primeira vista, surpreender,
não fosse o caso de que todos os papas dessas últimas décadas falaram do
demônio. Paulo VI escolheu até o dia 29 junho de 1972, festa de São Pedro, para
defender com gravidade que "de alguma fissura parece que entrou a fumaça de
Satanás no templo de Deus".
João
Paulo II teria até celebrado duas vezes o rito de exorcismo na sua capela
privada. Também para o Papa Wojtyla, a existência do demônio era real. Ele o
disse no dia 24 maio de 1987, em Monte Sant'Angelo, no lugar em que nasceu o
culto do Arcanjo Miguel: "O demônio ainda está vivo e operante no
mundo". O mal não é apenas a consequência do pecado original, mas também
"o efeito da ação infestadora e obscura de Satanás".
Bento
XVI advertiu um dia (26 de agosto de 2012) os fiéis que acorreram a Castel
Gandolfo para o Ângelus que a "culpa mais grave de Judas foi a falsidade,
que é a marca do diabo".
Leão
XIII (1878-1903) formulou até uma oração a São Miguel Arcanjo, para que
protegesse os cristãos "nesta ardente batalha contra todas as potências
das trevas e a sua malícia espiritual".
Em
relação aos seus antecessores, o Papa Francisco, no entanto, usa um estilo
diferente para falar do demônio, mais moderno, menos retórico, direto e
simples. Poucas palavras bastam. "O diabo existe. O diabo existe. Mesmo no
século XXI".
Se
a linguagem do Papa Francisco é tão simples, a substância está em perfeita
sintonia com a tradição. Para Francisco também, o demônio é uma realidade,
aquela "realidade terrível, misteriosa e assustadora", de que falava
Paulo VI.
Também
para Francisco, o demônio é o principal inimigo da sociedade, a ponto de poder
também destruir seus fundamentos, como por exemplo a família. Nesse sentido, a
continuidade atravessa os séculos. Já para os primeiros escritores cristãos, o
demônio é, por exemplo, o instigador dos sentidos, a tal ponto que se
considerava que o demônio fazia com que se perdesse o controle da razão através
do riso.
Para
descrever os primeiros casos de heresias medievais, o monge Rodolfo Glaber,
"o historiador do ano mil", atribui ao demônio um papel de
protagonista, graças também ao seu poder de se transformar. A
"loucura" do camponês Leutardo de Vertus, que "se livrou da
mulher" e quis justificar o divórcio "alegando as prescrições do
Evangelho" começou quando "um enorme enxame de abelhas" –
metáfora do demônio – entrou no seu corpo.
O
culto Vilgardo de Ravenna, que havia lido com paixão os autores clássicos,
tornou-se "cada vez mais insensato" por causa de "certos diabos
que assumiram o aspecto dos poetas Virgílio, Horácio e Juvenal". Nos
grandes momentos de transformação da sociedade medieval, o demônio sempre
aparece como o principal inimigo da sociedade.
Ao
redor de 1430, quando, na Itália (Roma, Todi) e no norte dos Alpes, aparecem as
primeiras caças às bruxas, à frente da suposta seita do "Sabbath" é
posto o demônio, a quem bruxas e bruxos rendem homenagem realizando orgias e
similares. O trágico fantasma do "Sabbath" das bruxas precisou do
demônio para existir e assim funcionou por mais de três séculos na Europa
cristã, católica e protestante.
Se
a tradição cristã que atribui ao demônio um papel de absoluto perigo para a
sociedade é antiquíssima, o modo com que o Papa Francisco fala do demônio é
moderno. O demônio não é mais um inimigo genérico da sociedade.
Os
temas são aqueles que falam às pessoas, à família, ao dinheiro. Além disso, o
papa o faz usando palavras simples, claras e diretas. Com mais eficácia do que
os seus antecessores, mas não se separando deles na substância.
Fonte: http://www.ihu.unisinos.br
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