Lucía Abellán
Em Varsóvia (Polônia)
Enquanto
toma uma limonada em um terraço em Varsóvia, Anna Grodzka atrai os olhares dos
transeuntes que passam a seu lado. Com aparência física inconfundível, ela é a
única transexual membro do Parlamento da Polônia e uma das poucas na esfera
pública na Europa. Duas senhoras se aproximam de maneira espontânea para
cumprimentá-la, mas nem sempre é assim.
"Recebo
muitas palavras de afeto, mas há alguns que me insultam... Às vezes tenho medo
de ser agredida", confessa a parlamentar.
Para
muitos, Grodzka encarna a essência de um conceito que está revolucionando o
país, a chamada ideologia de gênero, à qual seus defensores atribuem virtudes
como a igualdade entre os sexos e a aceitação da diversidade, enquanto seus
detratores a acusam de subverter o modelo tradicional de família, muito
arraigado na Polônia.
Atualmente,
o centro de Varsóvia destila seu fervor por João Paulo 2º. Os principais
monumentos da cidade são precedidos por um cartaz vermelho que lembra a
trajetória do papa polonês recém-canonizado. O catolicismo é profundamente
enraizado nesta sociedade, que ainda carrega as feridas do comunismo e que
agradece à igreja por ter-se oposto ao regime.
Gradualmente,
porém, uma nova Polônia está se abrindo para se equiparar aos padrões europeus
em assuntos como a composição familiar, a luta contra a violência de gênero, os
direitos dos homossexuais e as cotas para mulheres na política. "A
ideologia de gênero é uma das maiores ameaças do século 21, pois vai contra os
preceitos cristãos. Quero ter direito a dizer não e a educar meus filhos com
minhas próprias crenças", enfatiza Tomasz Terlikowski, um dos ativistas
mais beligerantes contra as questões de gênero, diante de um mural colorido de
Jesus Cristo.
O
problema está no entendimento equivocado desse conceito, que fica bem mais
claro em inglês ("gender ideology", sem tradução clara em polonês) e
também inclui uma palavra maldita neste país: "ideologia", algo muito
associado ao regime soviético. A Polônia está avançando, em um ritmo variável,
no que concerne a medidas que favoreçam a igualdade de sexos e o respeito pelas
minorias. Mas há alguns meses a Igreja Católica censurou algumas delas,
rotulando-as como ideologia de gênero, um conceito que radicaliza o debate. A
situação chegou a tal ponto que em pleno Parlamento foi criado um movimento
denominado Abaixo a Ideologia de Gênero.
"Os
mal-entendidos teriam sido logo desfeitos se tivéssemos podido explicar melhor,
o que não foi possível devido à intervenção da hierarquia eclesiástica. Eles
têm pleno direito de ter suas posições e eu, todo o direito de discordar",
desafia a secretária de Estado para a Igualdade, Agnieszka Kozlowska-Rajewicz,
empenhada em derrubar os mitos associados às políticas que ela promove.
Kozlowska
é a face mais liberal de um governo de centro-direita, o da Plataforma Cívica
de Donald Tusk, que inclui outros membros mais apegados ao discurso
tradicional.
Em
seu posto, essa dirigente tem promovido medidas que beneficiam alguns setores
da população, como uma cota mínima de representação de 35% para mulheres nas
chapas eleitorais, uma licença-paternidade independente, uma lei de conciliação
trabalhista e familiar e uma norma que penaliza as manifestações de ódio contra
homossexuais.
Embora
a titular da pasta da Igualdade assegure contar com o respaldo majoritário da
sociedade, seu trabalho também enfrenta a rejeição dos poloneses à palavra
"igualdade", associada ao regime comunista.
A
oposição ao domínio soviético --agora mais intensificada entre os cidadãos
devido ao conflito na Ucrânia-- molda a retórica de muitos discursos.
"O
que se entendia como luta de classes agora foi suplantado por uma luta de
gêneros. E é a mulher que exerce a violência, a que se comporta como um homem.
Há grupos feministas que têm verdadeiro desdém pelos homens", enfatiza Krystyna
Pawlowicz, deputada do partido Lei e Justiça (o dos gêmeos Kaczynski, de
convicções muito conservadoras), nos corredores do Parlamento.
Com
o tratado europeu na mão, Pawlowicz afirma que o governo polonês transgride as
regras ao transpor para a legislação nacional normas europeias contrárias à
Constituição, "que diz que a Polônia tem raízes no legado cristão e dá
proteção à família".
Os
líderes europeus adulam o primeiro-ministro polonês porque lhe atribuem dois
grandes méritos: haver isolado a Polônia desse nacionalismo extremista --que
durante anos levou Varsóvia a bloquear projetos comunitários-- e tê-la
convertido no único país poupado pela recessão que se atingiu a UE.
Desde
a queda do Muro de Berlim, em 1989, a Polônia é o país do antigo bloco soviético
que mais claramente se aproximou dos cânones comunitários, especialmente após
seu ingresso na EU, em 2004. Apesar disso, as crenças religiosas freiam alguns
avanços.
A
investida mais recente da igreja para tentar manter sua influência nas escolas
beira a ilegalidade. Os párocos estão emitindo certificados de idoneidade para
escolas que garantem ser amigas da família --ou seja, que não transmitem
conteúdos relativos à igualdade de gêneros.
"Muitas
vezes esses documentos também são expedidos em centros públicos. Nas aldeias,
nenhum diretor de escola se negará a aceitar isso porque o catequista e o padre
do lugar são figuras equiparadas ao secretário do partido no regime
anterior", explica em um despacho sóbrio Magdalena Sroda, professora de
Ética na Universidade de Varsóvia e uma das líderes do movimento feminista
Congresso de Mulheres.
Esta
acadêmica ironiza a repentina popularidade do debate sobre gênero na Polônia:
"Tivemos que esperar 15 anos para que ele entrasse na esfera pública, e
isso acabou sendo feito pela igreja".
Sroda,
como outros especialistas, vincula o auge desse conceito com as denúncias, há
um ano, de casos de pedofilia no seio da Igreja Católica e à tentativa da
hierarquia de desviar as atenções para outra parte.
Independentemente
das opiniões, os dados indicam que a situação da mulher na Polônia é menos
favorável que a média na Europa.
"Somente
23% dos casais dividem as tarefas domésticas. O modelo mais adotado é o da
chamada mãe polonesa, que tem jornada dupla no trabalho e em casa. Falta apoio
institucional ao cuidado de crianças e idosos, a lei do aborto é muito
restritiva, os anticoncepcionais não são financiados pelo sistema público... E
apenas 10% dos pais desfrutam a licença-paternidade. Ainda há muito a fazer,
mas pelo menos já se fala nisso", comenta Aleksandra Nizynska,
pesquisadora do Instytut Spraw Publicznych, um centro de estudos políticos e
sociais polonês, e defensora ferrenha da igualdade de gêneros.
A
Polônia tem alguns desafios pela frente, a exemplo da aprovação de uma lei
contra a violência machista que desperta controvérsia, da padronização dos
conteúdos de igualdade nas escolas e da norma que permite aos transexuais
mudarem legalmente de gênero.
Porém,
apesar de todas as dificuldades, Anna Grodzka mal podia imaginar, quando ainda
era um pequeno empresário há alguns anos, que acabaria sendo membro do
Parlamento com sua nova identidade feminina.
"Minha
missão é fazer as pessoas entenderem que a diversidade é melhor, pois fortalece
a sociedade e o indivíduo", conclui.
Tradutor: Luiz
Roberto Mendes Gonçalves
Fonte:
www.uol.com.br
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