Sheila Rigante Romero
Introdução
O
presente artigo objetiva mostrar como a construção das relações e das práticas
sociais institui normas de condutas, estabelece espaços culturais por meio de
interdições ou ritos de passagem. Tais normas se aplicam ao corpo de cada
indivíduo, grupo, categoria ou classe social. Os estudos referentes à
sexualidade e ao corpo constituem-se em objetos essenciais para o entendimento
dos diversos significados das relações humanas, compreendidas no seus mais
variados e complexos sentidos.
Michel
Foucault, precursor dos estudos referentes à sexualidade, problematizou as
questões da sexualidade humana e sua relação com o corpo. A sexualidade, para
ele, não é uma qualidade herdada da carne que várias sociedades louvam ou
reprimem – não como pensava Freud, um impulso biológico que a civilização
canaliza em uma direção ou outra. Mas sim, uma forma de moldar o self “na
experiência da carne”, que por si só é constituída em torno de certas formas de
comportamento (LAQUEUR, 2001: 24). O sexo, assim como o ser humano, é
contextual. É impossível isolá-lo de seu meio discursivo e de sua
caracterização socialmente determinada, ao tentar fazer isso incorre ao erro. O
corpo privado, incluso, estável, que parece existir na base das noções modernas
de diferença sexual, é também produto de momentos específicos, históricos e
culturais. Ele também, como os sexos opostos, entra e sai de foco (LAQUEUR,
2001: 27).
Para
Foucault até o século XVII as questões da sexualidade ainda não buscavam pelo
segredo, vigorava-se uma certa franqueza em relação ao “uso dos prazeres”, e as
palavras não eram tão disfarçadas a ponto de serem reduzidas a um vocabulário
do que era ou não permitido dizer. Todavia, no início do século XVIII o
pensamento burguês dá origem à Idade da Repressão, que coincide com “o
desenvolvimento do capitalismo essa repressão que se pode ainda fazer coexistir,
discretamente, em que o medo do ridículo ou o amargor da história impedem a
maioria dentre nós de vincular: revolução e felicidade; ou então, revolução e
um outro corpo, mais novo, mais belo; ou, ainda, revolução e prazer” (FOUCAULT,
1989: 11-12). Como o próprio autor mostra, designar o sexo seria cada vez mais
difícil. Para domá-lo num plano real torna-se necessário reduzi-lo ao plano da
linguagem, ou melhor, controlá-lo na sua livre circulação no discurso. Dessa
forma, percebe-se que Foucault considera o silêncio como um conjunto de
estratégia empregada para a montagem do discurso. O modo como uma sociedade
lida com o saber e o poder (termos sinônimos) se realiza através da montagem de
dispositivos discursivos (FOUCAULT, 1989: 181).
Os
estudos produzidos sobre sexualidade, observados no desenrolar do século XIX,
incorporaram as perversões e especificações do indivíduo, visto que nestes
discursos há o enraizamento da cultura cristã, cuja construção da família
baseia-se em casamentos monogâmicos entre casais heterossexuais, de forma que
dêem continuidade a espécie humana.O Ocidente definiu novas regras no jogo dos
poderes e prazeres, configurando a fisionomia rígida das perversões. (FOUCAULT,
2001: 96). Esses discursos explicavam os comportamentos e ações do homem por
meio das Ciências Biológicas, como forma de garantir a preservação da
instituição familiar.
No
decorrer do século XX, estudos introduziram a problematização da questão de
gênero, contestando a tendência que se tem em considerar como natural apenas o
que é masculino e o que é feminino. Observou-se que a relação “homem/mulher” e
“macho/fêmea” excedem os limites dessa relação binária. Por isso, escolheu-se
criticar a definição do gênero pela categoria de sexo (BUTLER, 2003: 26), com o
intuito de identificar os métodos que lhe são constitutivos. A noção de gênero
expressaria, assim, os valores culturais ostentados pelo corpo sexuado, não
podendo dizer que ela suceda de um sexo, desta ou daquela maneira. O contraste
entre sexo e gênero insinua uma interrupção entre corpos sexuados e gêneros
culturalmente construídos (BUTLER, 2003: 24). Com isso, entende-se que a
formulação do termo “homens” não seja relativo necessariamente a corpos
masculinos, assim como a expressão “mulheres” não sirva apenas para designar
corpos femininos.
Segundo
Theml, “o corpo humano é socialmente construído por meio da escolha social de
um certo número de valores que configuram o que o homem deve ser, tanto em
relação às virtudes morais e intelectuais quanto à representação, à exposição e
uso do seu corpo ‘físico’” (THEML, 1998: 309). Nota-se, portanto, que o corpo
não pode ser trabalhado pelo historiador apenas como biológico, ao contrário,
deve ser percebido como árbitro de sinais culturais. Cada representação do
corpo informa sua história e reúne um sistema de valores. Os discursos sobre
sexualidade, por conseguinte, apresentam a construção de cada sexo num dado
contexto social e cultural. A cada contexto existe uma mudança do discurso, e a
sua demarcação é tanto mais difícil quanto menos instituído for este contexto.
Tal discussão é essencial para compreender a percepção que o homem medieval
tinha de sua sexualidade e de seu corpo, em sua interação social, nas
construções ideológicas, num conjunto de predicados morais de comportamento,
socialmente ratificado e constantemente pensado, relembrados, ou seja, em
incessante processo de construção; e também para entender como se deu a
normatização da sexualidade e do corpo do homem e da mulher medieval por parte
dos clérigos, por meio dos Concílios Ibéricos. Essa discussão referente à
sexualidade e ao corpo é relevante para entender que na Idade Média, como
afirma Karras, as identidades dos medievos eram fundamentalmente formadas
(moldadas) pelos seus status sexuais - não se eles eram “homossexuais” ou
“heterossexuais”, como hoje, mas se eles eram castos ou sexualmente ativos
(KARRAS, 2005: 09).
Os
Concílios Ibéricos dos séculos V–VI d.C. e a influência do pensamento de Santo
Agostinho na renúncia dos clérigos aos prazeres do corpo
Pode-se
notar que, desde as formulações dos Concílios Ibéricos que normatizavam a vida
cotidiana dos clérigos e leigos, a Igreja seria a primeira a incentivar o
discurso sobre o sexo, quando passou a estimular o aumento das confissões aos
padres. As insinuações da carne deveriam ser ditas em detalhes, incluindo os
pensamentos carnais. O bom cristão precisaria, portanto, fazer de todo o seu
desejo um discurso. Ainda que tivesse ocorrido uma interdição de certas
palavras, esta era apenas uma maneira de tornar o discurso sobre a sexualidade
e o corpo moralmente aceito e tecnicamente útil. Na Idade Média Cristã ocorreu
uma derrocada das práticas corporais, assim como a “supressão ou ainda o
confinamento dos lugares do corpo da Antigüidade, o corpo se torna paradoxalmente
o coração da sociedade medieval” (LE GOFF, 2006: 31). Por meio das exigências
canônicas se impôs o controle da Igreja ao domínio até então regido pelas
famílias, homens e mulheres medievais, levando-os a manifestarem-se em relação
ao seu corpo e a sua sexualidade (ROSSIAUD, 2006: 477).
Nos
Concílios Visigóticos – a partir dos cânones que normatizavam juridicamente a
vida cotidiana dos clérigos e dos leigos – pode-se observar a necessidade da
Igreja de introduzir aos cristãos a noção de pecado e a importância da renúncia
ao prazeres sexuais, utilizando-se do pensamento de Santo Agostinho sobre a
questão da continência do corpo para manter a pureza da alma. Para Agostinho a
sexualidade tinha uma finalidade estritamente delimitada: simbolizava um único e
decisivo acontecimento dentro da alma. Ecoava no corpo a conseqüência
inalterável do primeiro pecado da humanidade (Adão e Eva) (BROWN, 1990: 347). A
tentação sexual era uma provação temível e debilitadora, por isso, a prática da
continência representava a capacidade do homem de vencer as provações carnais e
alcançar num plano metafísico a pureza da alma. As paixões e ações
incontroláveis e descomedidas deveriam ser substituídas por ações comedidas.
Tudo sobre o sexo, após a perda da pureza, podia ser sentido como lembranças
contínuas na carne das tensões da condição humana fundamentalmente imperfeita.
Tudo isso teve início com o aparecimento da cristandade (LAQUEUR, 2001: 73).
Para
Laqueur, a nova interpretação de Agostinho sobre a sexualidade como um “sinal
interno e sempre presente da alienação da vontade pela perda da pureza criou
uma área alternativa para o corpo gerador” (LAQUEUR, 2001: 74).De acordo com o
autor, as idéias pagãs e cristãs sobre o corpo coexistiram como várias
doutrinas incompatíveis sobre a semente, a procriação e as homologias
corpóreas, pois as diferentes comunidades pediam coisas diferentes da carne. Os
monges e os paladinos, os leigos e o clero, (...) os confessores e os teólogos,
em inúmeros contextos podiam continuar a interpretar o corpo segundo suas
necessidades para compreendê-lo e manipulá-lo, à medida que os fatos do gênero
mudavam (LAQUEUR, 2001: 74).
Durante
o século V e VI, o cristianismo estava tornando-se religião do Estado e
reprimia o corpo por meio da renúncia aos prazeres da carne e o controle a
estas a partir das confissões. Por outro lado, com “a encarnação de Deus no
corpo de Cristo, faz do corpo do homem o tabernáculo do Espírito Santo” (LE
GOFF, 2006: 31). Ou seja, de um lado os clérigos reprimem as práticas corporais,
de outro, as glorifica. Depreende-se assim, que o corpo e as práticas sexuais
oscilam entre a repressão e a exaltação, a humilhação e a veneração.
A
influência agostiniana na renúncia dos clérigos aos prazeres carnais para a
purificação do corpo como forma de aproximar a alma ao mundo de Deus pode ser
notada no IV Concílio de Toledo, cânone XXI, que explica a importância da
castidade dos bispos pois, estes deveriam ser o exemplo para a sociedade
medieval de um comportamento “correto” aos olhos de Deus (IV Concílio de
Toledo,Cânone XXI, p.200-201).
Os
Concílios Ibéricos do século XIII e o liame entre o corpo e a alma no
pensamento de São Tomás de Aquino
No
século XIII, período em que foram escritos os concílios de Calahorra e de
Latrão, as questões do corpo e do prazer sexual não estavam ligadas ao mal, e a
preocupação dominante passava a ser com a saúde. Entretanto, os diagnósticos
mais importantes reforçavam a moral e condicionavam as atitudes. No IV Concílio
de Latrão nos cânones 21 e 22 os padres, durante as confissões precisavam ter
discernimento e prudência como um médico experiente ao aplicar as penitências
aos fiéis; aos enfermos era preciso zelar primeiro pela alma depois pelo corpo.
Os diagnósticos médicos recomendavam um controle no desejo sexual pois – ainda
baseados nos estudos de Galeno – o “abuso do coito é muito perigoso: ele
abrevia a vida (a destacada longevidade dos eunucos prova-o a contrario),
debilita o corpo, consumindo-o, diminui o cérebro, destrói os olhos, conduz à
estupidez” (ROSSIAUD, 2006: 478).
Tais
diagnósticos, baseados no pensamento de São Tomás de Aquino, entendiam que a
alma não estava dissociada do corpo, ao contrário, a alma era a forma do corpo
organizado, devendo nascer e morrer com ele sem ter nenhuma destinação sobrenatural.
Em oposição a Santo Agostinho, que pensava que quanto mais se renunciasse à
carne mais próximo de Deus se chegava – por isso sua concepção da cidade dos
homens e a cidade de Deus – para São Tomás, a alma humana era o horizonte onde
se tocavam o mundo dos corpos e dos espíritos, ou seja, a alma e o corpo
estavam intrinsecamente ligados. Dessa maneira, de acordo Rossiaud, para os
médicos e filósofos medievais a saúde do espírito era inversamente proporcional
ao vigor genital, tendo em vista que as agitações carnais, antes de
representarem um pecado contra Deus, eram faltas contra a razão. O gozo físico
era distinto do prazer racional; ele era uma força incontrolável, um tipo de
loucura, de furor. Como reafirmam os filósofos do século XIII, depois dos latinos,
dos gregos ou dos árabes, o desejo era subversão e submersão do ser (ROSSIAUD,
2006: 479).
Os
cânones, mesmo a partir do século XIII, sempre colocaram a necessidade da
renúncia dos desejos sexuais, sugerindo que jamais fossem seduzidos pelos
impulsos e incontinências corporais. Para isso, a Igreja ainda precisava criar
no pensamento laico o significado de “pecado”. Por isso a insistência nas
confissões para a salvação da alma por meio das penitências aplicadas aos fiéis
pelos padres. Era necessário transformar as questões do corpo e seus prazeres
em um discurso ao padre, como foi observado por Foucault, ao tratar as
confissões medievais cristãs como um dispositivo de poder utilizado pela
Igreja. Como também é possível observar no cânone 21 do IV Concílio de Latrão,
no qual enfatizava-se a necessidade de sempre tornar público tal cânone nas
igrejas (p.174). A aplicação da penitência pelo padre – devido ao seu poder
espiritual e da sua renúncia aos prazeres do corpo – aos confessores e
pecadores, permitia a salvação do corpo pecador e impuro para salvar a alma da
perdição.
O
liame entre o corpo e a alma pode ser visto no cânone 22, em que a alma doente,
devido aos pecados da carne, se reflete na enfermidade do corpo, portanto, a
necessidade de chamar os “médicos da alma” (os padres) antes do “médico do
corpo” aplicar os medicamentos (p.175). A preocupação com os costumes e
condutas dos clérigos e leigos em relação aos prazeres carnais e a pureza da
alma, também pode ser percebida no IV Concílio de Latrão, cânone 14, que
reforçava a importância da continência – exigida desde o II Concílio de Braga –
e da castidade dos clérigos, além de castigos severos àqueles que não
conseguissem renunciar aos prazeres do corpo. Contudo, é importante destacar
que nesta época corpo e alma estavam unidos, por isso, para a pureza da alma
era necessária a pureza do corpo, e o corpo do padre deveria ser limpo para
celebrar a palavra de Deus (IV Concílio de Latrão, Cânone 14, p.170-171). No
século XIII o cuidado com o “uso prazeres” estava ligado ao cuidado com a
pureza da alma. Controlar seus desejos e vontades significava manter uma alma
limpa das luxurias da carne e aproximá-la dos ensinamentos de Deus. Um homem
continente representava o princípio da razão que une o corpo e a alma, ou seja,
o Espírito Santo.
Conclusão
Em
suma, é possível afirmar que a Idade Média Cristã – dos séculos V, VI e XIII
d.C. – produziu uma grande quantidade de discursos referentes ao corpo e à
sexualidade por meio do incentivo a confissão como forma de manter, a partir da
autoridade espiritual dos clérigos, o controle sobre a vida religiosa e cotidiana
do homem e da mulher medieval. O discurso sobre a renúncia dos prazeres carnais
para a salvação da alma produziu uma normatização do corpo e dos prazeres na
Idade Média Cristã, o que Foucault chamou de um “policiamento do sexo”.
O
incentivo a confissão – que se consolidou na vida do homem medievo no final do
século XVI – possibilitou a transformação das práticas sexuais em discursos o
que deu aos padres o direito de intervir, punir, julgar perdoar às condutas e
ás práticas sexuais do medievo cristão e, também, deu o direito ao padre a
inocentá-lo, a purificá-lo, a dar-lhe a salvação divina após a confissão de
todos seus pecados da alma e do corpo, e após o cumprimento da penitência, esta
regulada e sacramentada no IV Concílio de Latrão em 1215. Observa-se, assim,
que a Instituição clerical foi a primeira a incentivar o discurso sobre o sexo,
quando passou a estimular, como visto anteriormente, o aumento das confissões
ao padre. As insinuações da carne deveriam ser ditas em detalhes, incluindo os
pensamentos sobre o sexo.
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