Fabiana MaranhãoDo UOL, em São
Paulo
Mulheres quebram o silêncio e denunciam a
violência sofrida dentro de casa. Homens são presos e mantidos na cadeia por
agredirem suas companheiras. Cada vez mais frequentes, situações assim rompem
com o que acontecia em décadas passadas. São avanços creditados à Lei Maria da
Penha, que completa dez anos continuando a enfrentar desafios. O Brasil
ainda registra um alto índice de homicídios nesse gênero, com uma mulher
morta a cada duas horas.
Atacada mesmo sob proteção.
Há um ano e meio,
Lúcia de Fátima Falcão Rodrigues da Silva, 29, vive com medo.
Tenho medo, tenho
pânico. Tenho pesadelos, acordo assustada. Escuto gente batendo na porta
Em fevereiro de
2015, ela foi baleada e esfaqueada pelo pai de sua filha e por outros dois
homens, em Jaboatão dos Guararapes, no Grande Recife.
A manicure ficou
40 dias internada, sendo 20 deles em coma. Ela ficou com o rosto desfigurado,
perdeu a visão de um dos olhos. Já passou por quatro cirurgias e ainda tem ao
menos outras três para fazer.
O acusado, Ivson
Thiago do Chile Júnior, foi preso pouco mais de um mês depois do que aconteceu
e, segundo a polícia, assumiu o crime.
Ela não sabe ao
certo por que ele quis matá-la. Lúcia conta que ele não gostou quando ela
entregou a guarda da filha para a mãe dela.
Mas a ameaça de
morte veio depois que a manicure deu o telefone da mãe dele para um traficante,
que tinha ido em sua casa cobrar uma dívida de droga.
Lúcia prestou
queixa na delegacia e conseguiu que a Justiça o proibisse de se aproximar dela.
A medida protetiva não impediu que ela fosse atacada.
A manicure diz que
ainda recebe ameaças dele, por meio de conhecidos. O recado: ele vai matá-la
quando sair da prisão.
Com medo, a
manicure não tem endereço fixo; muda de casa a cada seis meses. Espera terminar
de fazer as cirurgias para sair de Pernambuco.
Quero sair do
Estado, ir embora, começar minha vida em outro lugar
Com a palavra, Maria da
Penha
"Qualquer lei
estando só no papel é uma lei ineficaz, ou seja, não funciona. O que a Lei
Maria da Penha precisa é ser devidamente implementada. Os seus equipamentos
(centros de referência, delegacia da mulher, juizado da mulher, casa abrigo)
devem ser criados e estruturados, e os profissionais que trabalham nesses
locais devem ser constantemente capacitados para que a mulher em situação de
violência seja prontamente atendida e amparada pelo Estado.
Qualquer mudança
na lei agora representaria um caminho ao enfraquecimento de uma norma tão bem
estruturada e que, se for devidamente cumprida, beneficia e possibilita à
mulher e a seus filhos saírem da violência doméstica e familiar a qual estejam
submetidas.
Nós precisamos
unir forças para que, juntas, possamos garantir um futuro sem violência
para nossas descendentes."
Alto risco
Dados mais
recentes revelam que ao menos uma mulher é assassinada no Brasil a cada duas
horas.
Lúcia está viva,
mas correu um sério risco de morrer. Quando a manicure pernambucana foi
ameaçada pelo pai de sua filha, procurou socorro. Sabia que a Lei Maria da
Penha poderia ajudá-la. Denunciou o caso à polícia e conseguiu uma determinação
da Justiça para que ele não chegasse perto dela.
Não foi suficiente.
Desobedecer uma
medida protetiva não é crime no país, explica Valéria Scarance, promotora de
Justiça do MP-SP (Ministério Público Estadual de São Paulo) e coordenadora da
Copevid (Comissão Permanente de Combate à Violência Doméstica e Familiar contra
a Mulher). "Se não é crime, a pessoa não pode ser presa em flagrante.
Quando a vítima relata que houve desobediência à medida de proteção, alguns
delegados entendem que é crime e pedem a prisão preventiva do agressor",
diz Scarance.
O problema, aponta
ela, é que entre o pedido ser feito à Justiça e a prisão ser concedida e
aplicada, a mulher fica exposta ao perigo.
A criação de um
tipo penal específico de "desobediência à medida protetiva", no
âmbito da Lei Maria da Penha, é uma das melhorias que ela sugere que a legislação
deva ter para tornar mais rigoroso o combate à violência contra a mulher.
A promotora de
Justiça afirma que ampliar e aperfeiçoar as medidas protetivas "seriam um
instrumento para salvar vidas".
Outra mudança na
lei sugerida por ela é incluir de forma clara que as medidas de proteção são
autônomas, ou seja, "não dependem de inquérito, investigação criminal e
processo" para serem concedidas.
"Muitas
mulheres não suportam o peso de serem acusadoras de seus parceiros. Condicionar
a proteção a uma postura da vítima de processar o agressor faz com que ela
desista da proteção para não enfrentar um processo."
Segundo Scarance,
há uma decisão do STJ (Superior Tribunal de Justiça) que considera essas
medidas como autônomas, mas isso não tem poder de lei. "Há juiz que
entende que elas são autônomas e há juízes que não veem assim."
"Incluir [na
Lei Maria da Penha] essa possibilidade expressa de proteção mesmo que a vítima
não registre boletim de ocorrência poderia salvar muitas vidas. Quando as
mulheres acionam o sistema de Justiça, elas querem sobreviver; muitas vítimas
desejam unicamente viver em paz."
Para a promotora,
a Lei Maria da Penha é um "marco histórico na defesa das mulheres".
Há dez anos não se
falava em violência contra a mulher; as mulheres não denunciavam a violência
[que sofriam]. Houve uma conscientização nacional, mas ainda temos muito para
evoluir. Estamos atravessando uma ponte
Agressões em números
-38.019 denúncias de
violência contra a mulher foram recebidas entre janeiro e março de 2016 pelo
Ligue 180
-46% foram de
violência física; 25% foram de violência psicológica
72% dos casos
denunciados em 2015 foram cometidos por atuais ou ex-companheiros, cônjuges,
namorados ou amantes
-Ao menos 1 em
cada 3 mulheres no mundo é vítima de violência física ou sexual praticada por
um companheiro, diz ONU
Filippo
Monteforte/AFP
Armas contra violência
Especialistas no
combate à violência contra a mulher concordam que houve avanços --embora muito
longe do ideal-- nos últimos dez anos em relação ao tema, principalmente nas
áreas da segurança e da Justiça, com a criação de delegacias e juizados
especializados e centros de atendimento à mulher.
No Brasil, 8% das
cidades contam atualmente com alguma delegacia ou núcleo dedicados a
ocorrências envolvendo mulheres. Segundo a Secretaria Nacional de Políticas
para as Mulheres, ainda há Estados que não possuem promotorias e varas
especializadas.
Para a advogada
Leila Barsted, uma das diretoras da Cepia --a entidade fez parte de um grupo de
organizações que elaborou o anteprojeto da Lei Maria da Penha--, a legislação
não foi totalmente aplicada nos últimos dez anos.
“O foco tem sido
na aplicação [da lei] na área da segurança e da Justiça. Esse enfoque é
importante porque a mulher agredida tem que ter um bom acolhimento na área da
segurança, da Justiça, nos centros de referência. [...] Mas há uma parte [da
legislação] que é fundamental ser implementada, na área de educação, na área
cultural, de mudança de padrões culturais violentos. É preciso levar a
discussão para o sistema de ensino."
Na opinião da
advogada, o combate à violência contra a mulher passa, necessariamente, pela
educação, por uma mudança de cultura, pela "difusão grande de que homens e
mulheres têm os mesmos direitos". "É um processo longo. Mudanças
culturais são lentas e significam investimento em educação."
Barsted afirma que
os investimentos cabem aos governos, mas destaca que a sociedade também tem o
seu papel. "É tarefa de cada cidadão não apenas seguir esses princípios
[de igualdade entre homens e mulheres] mas também de transmiti-los para as
novas gerações."
A ativista chama a
atenção ainda para a necessidade de todos e todas nós sermos solidários com as
mulheres agredidas. "Vemos manifestações nas redes sociais de uma parcela
da sociedade ainda extremamente intolerante com as mulheres, insensível ao
sofrimento delas."
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