O
estilo literário chamado apocalipse descreve simplesmente a realidade muitas
vezes cruel da existência humana na qual nos encontramos, para lançar um grito
de esperança, por causa da nossa fé na Ressurreição. Sim! Nós somos prometidos
à Ressurreição, mas devemos passar pelo sofrimento e pela morte, por causa da
nossa finitude humana. Não devemos, sobretudo, desesperar, e esses textos
apocalípticos existem para nos fazer refletir.
A
reflexão é de Raymond Gravel, padre da Diocese de Joliette, Canadá, e publicada
no sítio Réflexions de Raymond Gravel, comentando as leituras do 33º Domingo do
Tempo Comum – Ciclo C do Ano Litúrgico (17 de novembro de 2013). A tradução é
de André Langer.
Referências bíblicas:
Primeira leitura: Ml 3,19-20a
Segunda leitura: 2 Tm 3,7-12
Evangelho: Lc 21,5-19
Eis o texto.
No
domingo passado, nós ouvimos os saduceus colocarem Jesus à prova sobre a
Ressurreição dos mortos; hoje, o próprio Jesus começa um discurso sobre o fim
dos tempos. Ao invés de ter medo e viver na angústia, o discípulo deve utilizar
o tempo que lhe é dado para suportar e testemunhar o Evangelho: “É permanecendo
firmes que vocês irão ganhar a vida” (Lc 21,19). Quando chegamos ao fim do ano
litúrgico, a cada ano, temos textos do evangelho de sabor apocalíptico. Mas
atenção! Alguns gostariam de ver nisso anúncios de catástrofes e de tragédias
que precedem o fim dos tempos, por causa das imperfeições e dos limites
humanos... mas, não é nada disso. Pelo contrário, esse estilo literário chamado
apocalipse descreve simplesmente a realidade muitas vezes cruel da existência
humana na qual nos encontramos, para lançar um grito de esperança, por causa da
nossa fé na Ressurreição. Sim! Nós somos prometidos à Ressurreição, mas devemos
passar pelo sofrimento e pela morte, por causa da nossa finitude humana. Não
devemos, sobretudo, desesperar, e esses textos apocalípticos existem para nos
fazer refletir.
No
tempo em que Lucas escreve o seu evangelho (80-90 d.C.), estamos em um período
de plena perseguição. A guerra judaica de 66, que desembocou na tomada de
Jerusalém pelos romanos e na destruição do Templo em 70, poderia ser percebida
tanto pelos judeus como pelos cristãos como sinais precursores do fim dos
tempos, tanto mais que durante os anos que se seguiram a essas turbulências, os
cristãos conheceram tempos muito difíceis, tempos de perseguições. O livro dos
Atos dos Apóstolos reúne as provas encontradas pela jovem Igreja: “Os
sacerdotes, o chefe dos guardas do Templo e os saduceus prenderam Pedro e João”
(At 4,11-3); “Paulo e Silas tiveram suas vestes rasgadas, foram acoitados e
lançados na prisão” (At 16,22-24). A fidelidade a Cristo por parte dos
discípulos provoca a oposição de todos: dos judeus, dos pagãos, do Estado
romano e da sua própria família: “Vocês serão odiados por todos, por causa do
meu nome” (Lc 21,17). Por outro lado, apesar dos sofrimentos e das aflições, os
discípulos podem continuar a ter esperança: “Isso acontecerá para que vocês
deem testemunho. Portanto, tirem da cabeça a ideia de que vocês devem planejar
com antecedência a própria defesa; porque eu lhes darei palavras de sabedoria,
de tal modo que nenhum dos inimigos poderá resistir ou rebater vocês” (Lc
21-13-15). E mais ainda: “Mas não perderão um só fio de cabelo” (Lc 21,18).
2. Os falsos messias
O
que torna o discurso de Lucas original é o anúncio dos falsos messias. Podemos
assinalar a atividade dos profetas zelotes durante a guerra judaica (66-70)
que, segundo Flávio Josefo, anunciam como iminentes os sinais da salvação. Na
ótica de Lucas, trata-se antes de falsos doutores que perturbam as comunidades:
“Cuidado para que vocês não sejam enganados, porque muitos virão em meu nome,
dizendo: ‘Sou eu’. E ainda: ‘o tempo já chegou’. Não sigam esta gente” (Lc
21,8). Esses profetas da desgraça tinham uma influência maior sobre os cristãos
à medida que esses eram realmente perseguidos: “Mas, antes que essas coisas
aconteçam, vocês serão presos e perseguidos; entregarão vocês às sinagogas, e
serão lançados na prisão; serão levados diante de reis e governadores, por
causa do meu nome” (Lc 21,12).
Lucas
reconhece que sua comunidade vive momentos difíceis e que a Igreja nascente
atravessa tempos conturbados, mas esses momentos de prova podem ser encontrados
ao longo de toda a história humana. Já o profeta Malaquias, no século V antes
de Cristo, anunciava dias melhores, numa época de grandes turbulências, quando
sua comunidade vivia um certo desânimo: “Vejam! O dia está para chegar, ardente
como forno” (Ml 3,19a). Malaquias critica severamente o culto de seu tempo: faz
críticas contra os fiéis que apresentam a Deus animais aleijados (Ml 1,8),
críticas contra os sacerdotes negligentes que não ensinam a Lei de Deus (Ml
2,1-9). Por outro lado, o profeta compartilha seu otimismo: “Mas para vocês que
temem a Javé brilhará o sol da justiça, que cura com seus raios” (Ml 3,20a).
Guerras,
terremotos, fomes, epidemias e intempéries de todo tipo, sempre houve e sempre
haverá. Este ano, houve terremotos em muitos países, um tufão acaba de destruir
uma parte das Filipinas, a guerra continua a castigar na Síria e em outras
partes do mundo; a aids continua a fazer vítimas nos países pobres e os
cientistas temem catástrofes por causa do aquecimento climático. A partir
destas duras realidades ainda existem profetas da desgraça e falsos messias
para assustar as pessoas e para anunciar-lhes que é o fim do mundo. Chegam
inclusive a anunciar que será em breve. Lucas nos reiterou: “Não sigam essa
gente” (Lc 21,8b); “Não será logo o fim” (Lc 21,9b); “Isso acontecerá para que
vocês deem testemunho” (Lc 21,13); “É permanecendo firmes que vocês irão ganhar
a vida” (Lc 21,19).
3. Atualização
Ao
atualizar a Palavra de hoje me dou conta de que sempre temos necessidade desses
relatos de apocalipse para nos recordar que somos, em primeiro lugar, seres de
finitude, isto é, seres materiais, frágeis, limitados, submissos às leis
naturais e às regras muitas vezes cruéis da natureza humana, mas nós somos
também seres espirituais, prometidos à Vida com V maiúsculo, porque salvos
gratuitamente pelo Cristo ressuscitado. Como acontece, então, que na própria
Igreja, ainda existem homens que ocupam funções importantes e que agem como
profetas da desgraça e falsos messias? Quando se começou a falar de laicidade,
o ex-arcebispo de Quebec, o cardeal Ouellet afirmou em alto e bom tom que em
Quebec perdemos todos os nossos pontos de referência e que a sociedade laica na
qual estamos dirigia-se para um beco sem saída. Felizmente, o bispo de
Trois-Rivières da época disse exatamente o contrário. Ele optou por uma
laicidade aberta; reconheceu que Quebec havia sofrido durante muito tempo um
casamento às vezes fechado entre a religião e os governos, o que deixou um
gosto amargo em muitos dos nossos contemporâneos.
Temos,
pois, duas aproximações completamente diferentes: de um lado, o tom pessimista
de um cardeal que fala de vazio espiritual, de ruptura religiosa e cultural, de
crise da família e da educação, de cidadãos desorientados, desmotivados,
sujeitos à instabilidade e apegados a valores passageiros e superficiais, ao
relativismo religioso e ao fundamentalismo laicista... e de outro lado, o tom
otimista de um bispo que, embora reconhecendo os limites da sociedade
quebecoense atual, fala de esperança e de uma visão positiva sobre o futuro.
Infelizmente, com o projeto de lei 60 do governo atual sobre os valores da
laicidade, estamos em vias de dar razão ao cardeal Ouellet. E, assim mesmo, o
bispo Vaillette escreveu coisas tão bonitas... Disse: “Eu defendo uma laicidade
aberta... Eu não sou nostálgico da sociedade eclesial de antes de 1960 e,
sobretudo, não quero restabelecê-la. O aumento da laicidade foi salutar para a
sociedade e para a religião católica. Uma depuração. Um apelo que nos foi
lançado, a nós católicos, para reencontrar as raízes profundas da nossa fé,
para nos aproximarmos da humildade dos evangelhos e para continuar a trabalhar
por um mundo melhor e mais justo numa economia de meios, mas animados pelo
mesmo sopro. Eu faço um apelo por um diálogo com os defensores de todas as
formas de laicidade. Um diálogo construtivo inspirado em nossos valores comuns
e respeitosos da verdade da história”. Mas quando um governo quer proibir os
seus funcionários de usar sinais religiosos, não estamos mais em uma laicidade
aberta, mas numa espécie de perseguição daquelas e daqueles que tem fé e que
querem simplesmente expressá-la.
Para
terminar, gostaria de citar o exegeta francês Jean Debruynne, em seu comentário
sobre o evangelho de hoje. Ele escreve: “... Virão dias em que não ficará pedra
sobre pedra... É com estas palavras que Lucas anuncia a ruína do Templo de
Jerusalém. Jesus, provavelmente, não se refere à demolição do prédio. Jesus não
é um promotor que sonha em substituir uma velha igreja por uma nova, mais na
moda e mais moderna. Jesus não quer mais o Templo porque não quer mais a
religião. Chegou o momento em que seu Evangelho corre o risco de transformar-se
rapidamente em religião: Muitos virão dizendo em meu nome: sou eu! Não sigam
essa gente. Jesus não veio para anunciar uma religião, mas a fé”. E eu
acrescentaria, a fé pode se expressar por um sinal e ninguém tem o direito de
proibi-lo...
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