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quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Shalôm!

Frei Ildo Perondi 

             Quando eu estava em Roma escrevendo a minha tese, devia fazer uma análise do termo hebraico “Shalôm”. Não estava contente com as explicações dadas pelos dicionários, que em geral traduziam o termo por “Paz”. Por isso, fui procurar um rabino hebreu, que muito carinhosamente me recebeu.
            - Falar de Shalôm é algo muito importante... – disse-me ele. Talvez seja um dos termos hebraicos mais carregados de sentido e força que temos em nossa língua. É certo que traduzir simplesmente por “Paz” empobrece muito o sentido da palavra original.
            Enquanto ele falava, calmamente, pegou um copo e tomando uma jarra de água, foi colocando no copo muito devagar, deixando soar o borbulhar da água. O copo foi enchendo, e quando mais chegava perto da borda ele ia cuidadosamente derramando ainda água...
            - Veja bem, não cabe mais nada. Nem uma gota de água neste copo. Se eu colocar mais, vai derramar, vai transbordar. Está me entendendo?
            Balancei a cabeça em sentido negativo, olhando para o copo cheio de tal modo que não coubesse mais nada.
            - O Shalôm é isso, irmão meu. É o máximo que pode caber. Quando eu desejo um Shalôm a alguém, eu desejo todo o bem, tudo de bom, tanto bem que mais do que isso é impossível desejar. Estás entendendo?
            - Sim, agora entendi o que é o Shalôm!
            - Não ainda, irmão meu. Para entender bem o sentido do Shalôm é preciso receber o Shalôm; é preciso ter o Shalôm... Posso ver em você perturbações, conflitos internos... Para você ter o Shalôm é preciso que você tenha a harmonia interna, que você equilibre dentro de você as forças, que se sinta bem, que você esteja em harmonia consigo mesmo, que esteja em paz...
            - Agora entendi...
            - Ainda não... Você não está sozinho neste mundo. Você convive com pessoas. As pessoas são importantes na nossa vida. E devemos estar em relação de harmonia com elas. Harmonizar-se com as pessoas que estão perto de nós; harmonizar-se com as pessoas que amamos e queremos bem; harmonizar-se com as pessoas que não gostamos e que às vezes nos fazem mesmo o mal; harmonizar-se com as pessoas que estão longe; harmonizar-se com as pessoas que necessitam de paz, de ajuda, que vivem em dificuldades, que são excluídas, que passam fome, dor, solidão... Quando nos harmonizamos com as pessoas então sim temos o Shalôm.
            - Entendi...
            - Mais um pouco... Não estamos sozinhos no mundo. Vivemos rodeados pelas criaturas de Deus. Você está sentindo a cadeira onde está sentado? Sente o chão onde firma os seus pés? Sente o ar que está respirando? Escute! Aposto que não está ouvindo a beleza do canto do passarinho, o cachorro que late, o grito da vida e da natureza, a suavidade do vento... Estar em harmonia com a Criação, com as criaturas, com a vida... Isso é também ter o Shalôm.
            - Agora estou entendendo...
            - Tenha ainda um pouco de paciência. Irmão meu, você é uma criatura, não o Criador. Como um ser criado, você deve estar em harmonia constante com Deus. O Deus que te amou, e que pensou em ti no momento da Criação. Para ter o verdadeiro Shalôm, você deve estar em sintonia e em plena harmonia com Deus, nosso Criador... Harmonize a tua vida com Ele, deixe que Ele guie os teus passos. E então terás o Shalôm.
            - Acho que nunca vou entender o que é o Shalôm...
            - Não, agora você começou a entender o verdadeiro sentido desta expressão hebraica. Nenhuma palavra das línguas modernas pode traduzir toda a força e o conteúdo do Shalôm da nossa língua mãe. Mas só quando conseguirmos harmonizar dentro de nós estas quatro dimensões é que poderemos dizer que temos o Shalôm; só então é que poderemos desejar verdadeiramente um Shalôm. Estar como um copo cheio onde não cabe mais nada; deixar o outro como um copo repleto.
            E me abraçando, olhando-me nos olhos, e então me desejou Shalôm...
Para Meditação
            Depois de ter retornado ao Brasil, continuei refletindo muito sobre esta conversa com o rabino. Nas minhas reflexões pessoais, na oração meditada, superando a depressão, procurei levar a sério esta questão. E por isso, aos poucos, fui trabalhando dentro de mim estes quatro pontos que aprendi com toda a beleza da mística e da espiritualidade hebraica. Tentei incorporar alguns elementos importantes da espiritualidade cristã e também da experiência de São Francisco de Assis.
            Quando vou à Capela, quando me deito na cama ou quando estou na natureza, procuro criar estas harmonias necessárias. Importante estar em uma posição confortável. Respirar profundamente, deixar o ar entrar dentro de nós, sentir a respiração, sentir a vida dentro de vós, ao nosso redor.
            Buscar primeiro a harmonia interna, comigo mesmo... Talvez o mais difícil dos quatro passos. Dentro de nós temos esses nossos conflitos, essa bipolaridade, marcadas por aquilo que fomos e que somos. Medos e tensões provocadas pelo cansaço, pelo stress da vida moderna... Mas pouco a pouco, recomeçando sempre, no fim se chega a criar essa harmonia, esta paz interior.
            Harmonizar-se com as pessoas com as quais convivemos. Perdoar falhas nossas, aquilo que fazemos contra nós mesmos, contra a harmonia da nossa vida. Perdoar os outros a quem fizemos mal ou sem querer magoamos. Perdoar aqueles que pensamos que nos fizeram o mal. Manter sintonia com as pessoas que queremos bem. Recordar as pessoas que precisam de nossa ajuda, aquelas que sofrem, que estão doentes, nos cárceres, quem está na luta, pessoas perseguidas e maltratadas. Manter a solidariedade, enviar às pessoas mensagens de energia positiva, de Shalôm....
            A harmonização com o mundo ao nosso redor é fundamental. Sentir o que nos cerca, o chão onde pisamos, sentir nossos apoios, o canto da vida, os sons da natureza. Perceber a grandeza do universo criado, olhar para o infinito, sentir a luz e a energia dos astros... sentir-se parte deste grande universo, onde somos tão pequenos e tão importantes.
            E harmonizar a nossa relação com o Deus Criador, do qual recebemos tudo, sobretudo o dom precioso da Vida. Reatar a relação com o Deus Comunidade, com o Deus Trindade: com o Pai, com Jesus nosso Salvador, com o Espírito nosso Consolador e que nos guia e conduz... Rezar, louvar, agradecer... Serenar diante de Deus, reconciliar-se, abrir-se ao seu projeto, deixar-se conduzir por Ele, colocar-se a serviço da Vida e daqueles que mais precisam de nós. Enfim, deixar que seja feita a sua vontade, como nos lembrou Jesus (Mt 6,10; 26,42).
            (OBS. Não é necessário seguir esta ordem, ou seja os quatro momentos. Às vezes pode ser melhor criar paz e harmonia primeiro com a Criação; ou com as pessoas; ou então começar pelo nosso relacionamento com Deus Criador).
            Depois é importante recordar passagens bíblicas que falam de Shalôm, como:
            - “O Shalôm é fruto da justiça” (Is 32,17);
            - “Justiça e Shalôm se abraçarão...” (Sl 85,11)
            - “O Shalôm esteja convosco!” (Jo 20,19.21.26)
            - “Graça e Shalôm da parte de Deus nosso Pai e de Jesus Cristo” (cf. Rm 1,7 e no início da maioria das Cartas paulinas).
            - “Deixo-vos o Shalôm; o meu Shalôm eu vos dou...” (Jo 14,27).
            É certo que esta proposta não exclui a oração comunitária, antes necessita dela, e também da vida em comunidade, pois é só na comunidade que podemos viver e sentir o verdadeiro Shalôm. Mas se estivermos em paz e se pudermos transmitir paz aos outros, com certeza seremos instrumentos de libertação para o nosso povo. Quando estamos com paz e em paz, com o Shalôm, seguramente seremos mais solidários e faremos muito mais e ajudaremos melhor na luta para a construção de uma sociedade mais fraterna e mais justa que tanto sonhamos e buscamos. Uma sociedade nova, sinal do Reino, bela e cheia de paz, cheia do Shalôm de Deus!

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