Frei Ildo Perondi
Quando eu estava em Roma escrevendo
a minha tese, devia fazer uma análise do termo hebraico “Shalôm”. Não estava
contente com as explicações dadas pelos dicionários, que em geral traduziam o
termo por “Paz”. Por isso, fui procurar um rabino hebreu, que muito
carinhosamente me recebeu.
- Falar de Shalôm é algo muito
importante... – disse-me ele. Talvez seja um dos termos hebraicos mais
carregados de sentido e força que temos em nossa língua. É certo que traduzir
simplesmente por “Paz” empobrece muito o sentido da palavra original.
Enquanto ele falava, calmamente,
pegou um copo e tomando uma jarra de água, foi colocando no copo muito devagar,
deixando soar o borbulhar da água. O copo foi enchendo, e quando mais chegava
perto da borda ele ia cuidadosamente derramando ainda água...
- Veja bem, não cabe mais nada. Nem
uma gota de água neste copo. Se eu colocar mais, vai derramar, vai transbordar.
Está me entendendo?
Balancei a cabeça em sentido
negativo, olhando para o copo cheio de tal modo que não coubesse mais nada.
- O Shalôm é isso, irmão meu. É o
máximo que pode caber. Quando eu desejo um Shalôm a alguém, eu desejo todo o
bem, tudo de bom, tanto bem que mais do que isso é impossível desejar. Estás
entendendo?
- Sim, agora entendi o que é o Shalôm!
- Não ainda, irmão meu. Para
entender bem o sentido do Shalôm é preciso receber o Shalôm; é preciso ter o
Shalôm... Posso ver em você perturbações, conflitos internos... Para você ter o
Shalôm é preciso que você tenha a harmonia interna, que você equilibre dentro
de você as forças, que se sinta bem, que você esteja em harmonia consigo mesmo,
que esteja em paz...
- Agora entendi...
- Ainda não... Você não está sozinho
neste mundo. Você convive com pessoas. As pessoas são importantes na nossa
vida. E devemos estar em relação de harmonia com elas. Harmonizar-se com as
pessoas que estão perto de nós; harmonizar-se com as pessoas que amamos e
queremos bem; harmonizar-se com as pessoas que não gostamos e que às vezes nos
fazem mesmo o mal; harmonizar-se com as pessoas que estão longe; harmonizar-se
com as pessoas que necessitam de paz, de ajuda, que vivem em dificuldades, que
são excluídas, que passam fome, dor, solidão... Quando nos harmonizamos com as
pessoas então sim temos o Shalôm.
- Entendi...
- Mais um pouco... Não estamos
sozinhos no mundo. Vivemos rodeados pelas criaturas de Deus. Você está sentindo
a cadeira onde está sentado? Sente o chão onde firma os seus pés? Sente o ar
que está respirando? Escute! Aposto que não está ouvindo a beleza do canto do
passarinho, o cachorro que late, o grito da vida e da natureza, a suavidade do
vento... Estar em harmonia com a Criação, com as criaturas, com a vida... Isso
é também ter o Shalôm.
- Agora estou entendendo...
- Tenha ainda um pouco de paciência.
Irmão meu, você é uma criatura, não o Criador. Como um ser criado, você deve
estar em harmonia constante com Deus. O Deus que te amou, e que pensou em ti no
momento da Criação. Para ter o verdadeiro Shalôm, você deve estar em sintonia e
em plena harmonia com Deus, nosso Criador... Harmonize a tua vida com Ele,
deixe que Ele guie os teus passos. E então terás o Shalôm.
- Acho que nunca vou entender o que
é o Shalôm...
- Não, agora você começou a entender
o verdadeiro sentido desta expressão hebraica. Nenhuma palavra das línguas
modernas pode traduzir toda a força e o conteúdo do Shalôm da nossa língua mãe.
Mas só quando conseguirmos harmonizar dentro de nós estas quatro dimensões é
que poderemos dizer que temos o Shalôm; só então é que poderemos desejar verdadeiramente
um Shalôm. Estar como um copo cheio onde não cabe mais nada; deixar o outro
como um copo repleto.
E me abraçando, olhando-me nos
olhos, e então me desejou Shalôm...
Para Meditação
Depois de ter retornado ao Brasil,
continuei refletindo muito sobre esta conversa com o rabino. Nas minhas
reflexões pessoais, na oração meditada, superando a depressão, procurei levar a
sério esta questão. E por isso, aos poucos, fui trabalhando dentro de mim estes
quatro pontos que aprendi com toda a beleza da mística e da espiritualidade
hebraica. Tentei incorporar alguns elementos importantes da espiritualidade
cristã e também da experiência de São Francisco de Assis.
Quando vou à Capela, quando me deito
na cama ou quando estou na natureza, procuro criar estas harmonias necessárias.
Importante estar em uma posição confortável. Respirar profundamente, deixar o
ar entrar dentro de nós, sentir a respiração, sentir a vida dentro de vós, ao
nosso redor.
Buscar primeiro a harmonia interna,
comigo mesmo... Talvez o mais difícil dos quatro passos. Dentro de nós temos
esses nossos conflitos, essa bipolaridade, marcadas por aquilo que fomos e que
somos. Medos e tensões provocadas pelo cansaço, pelo stress da vida moderna...
Mas pouco a pouco, recomeçando sempre, no fim se chega a criar essa harmonia,
esta paz interior.
Harmonizar-se com as pessoas com as
quais convivemos. Perdoar falhas nossas, aquilo que fazemos contra nós mesmos,
contra a harmonia da nossa vida. Perdoar os outros a quem fizemos mal ou sem
querer magoamos. Perdoar aqueles que pensamos que nos fizeram o mal. Manter
sintonia com as pessoas que queremos bem. Recordar as pessoas que precisam de
nossa ajuda, aquelas que sofrem, que estão doentes, nos cárceres, quem está na
luta, pessoas perseguidas e maltratadas. Manter a solidariedade, enviar às
pessoas mensagens de energia positiva, de Shalôm....
A harmonização com o mundo ao nosso
redor é fundamental. Sentir o que nos cerca, o chão onde pisamos, sentir nossos
apoios, o canto da vida, os sons da natureza. Perceber a grandeza do universo
criado, olhar para o infinito, sentir a luz e a energia dos astros... sentir-se
parte deste grande universo, onde somos tão pequenos e tão importantes.
E harmonizar a nossa relação com o
Deus Criador, do qual recebemos tudo, sobretudo o dom precioso da Vida. Reatar
a relação com o Deus Comunidade, com o Deus Trindade: com o Pai, com Jesus
nosso Salvador, com o Espírito nosso Consolador e que nos guia e conduz...
Rezar, louvar, agradecer... Serenar diante de Deus, reconciliar-se, abrir-se ao
seu projeto, deixar-se conduzir por Ele, colocar-se a serviço da Vida e
daqueles que mais precisam de nós. Enfim, deixar que seja feita a sua vontade,
como nos lembrou Jesus (Mt 6,10; 26,42).
(OBS. Não é necessário seguir esta
ordem, ou seja os quatro momentos. Às vezes pode ser melhor criar paz e
harmonia primeiro com a Criação; ou com as pessoas; ou então começar pelo nosso
relacionamento com Deus Criador).
Depois é importante recordar
passagens bíblicas que falam de Shalôm, como:
- “O Shalôm é fruto da justiça” (Is 32,17);
- “Justiça e Shalôm se abraçarão...” (Sl 85,11)
- “O Shalôm esteja convosco!” (Jo 20,19.21.26)
- “Graça e Shalôm da parte de Deus nosso Pai e de Jesus Cristo” (cf.
Rm 1,7 e no início da maioria das Cartas paulinas).
- “Deixo-vos o Shalôm; o meu Shalôm eu vos dou...” (Jo 14,27).
É certo que esta proposta não exclui
a oração comunitária, antes necessita dela, e também da vida em comunidade,
pois é só na comunidade que podemos viver e sentir o verdadeiro Shalôm. Mas se estivermos
em paz e se pudermos transmitir paz aos outros, com certeza seremos
instrumentos de libertação para o nosso povo. Quando estamos com paz e em paz,
com o Shalôm, seguramente seremos mais solidários e faremos muito mais e
ajudaremos melhor na luta para a construção de uma sociedade mais fraterna e
mais justa que tanto sonhamos e buscamos. Uma sociedade nova, sinal do Reino,
bela e cheia de paz, cheia do Shalôm de Deus!
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