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sexta-feira, 30 de março de 2012

A NOITE ESCURA: Reflexão sobre a espiritualidade da noite escura na vida de São João da Cruz e na história da salvação.

Frei Pedro Caxito, 0.Carm. In memoriam (Foto).

            São João da Cruz (1540-1591), filho de Elias, pela vida e pelos escritos mostrou conhecer noites escuras pontilhadas de estrelas ou de trevas sem luz. E ensina a caminhar.
            A Noite Escura "é o fim do narcisismo e da abstração, é disponibilidade para o encontro com o Outro e com os outros. É a constante adaptação do homem a Deus. Não é um breve período de crises, um intermezzo, mas uma situação permanente, porque nunca nós acabamos de nos adaptarmos à lógica divina, ao amor de Deus. Atitude crítica para consigo mesmo e perante a realidade; discernimento frente à história e dentro da história; uma consciência da relatividade das metas alcançadas, concedendo espaço para a novidade do Espírito. A noite é conseqüência do amor, é escola de amor. É o meio pelo qual se consegue uma nova consciência: tornamo-nos mais livres para Subir a Montanha sem que Nada se interponha (cf. 1S,13)"[1]
            Há noite dos sentidos e há noite do espírito. Há um escurecer aos poucos, progressivo, até à plena noite e há um caminhar por um manso amanhecer até deslumbrar-se na claridade plena da luz do Sol. Noite Escura do crescimento e Noite Escura do envelhecimento. Noite Escura dos caminhos da libertação e Noite Escura das ânsias que nunca se realizaram. Noite Escura das estradas da Fé e Noite Escura das esperanças que teimam em se realizar. Noite Escura debaixo da carga da opressão e Noite Escura tenebrosa por sob o peso do aviltamento da pessoa. Noite Escura, que entenebrece a alma do artista e Noite Escura da arte, que se condói do seu genitor. Noite Escura do homem e da mulher e Noite Escura de todas as veredas do Universo em busca da Luz. Noite Escura pelo eclipse do Esposo Divino e Noite Escura, filha da debilidade da alma ou da falta de amor[2].
                                                                

            Noite Escura de Elias - Elias, feliz na tranqüilidade de Carit ou no aconchego da casa pobre da mulher de Sarepta e seu filhinho, é despertado pela tristeza da morte de um menino: é escuridão. "Javé, meu Deus, matando o filho dela, o Senhor quer afligir até mesmo esta viúva que me deu hospedagem?" (1Rs 17,20)
     "Responda-me, Senhor! Responda-me!" (1Rs 18,37)     
            "Javé, agora já é demais! Pode tirar a minha vida, pois não sou melhor do que os meus pais!" (1Rs 19,4)
            Comeu e bebeu e tornou a prostrar-se (1Rs 19,6).
            Depois quarenta dias e quarenta noites a caminho, sem comer nem beber (1Rs 19,8).
            "Estou só e querem tirar-me a vida!" (1Rs 19,10.14)
            Javé não estava não, nem no furacão desmantelador de montes e rachador de rochedos.
            Javé não estava nos tremores de terra, não (1Rs 19,11).
            Javé não estava no furor do fogo e dos raios, também não.
            Estava sim numa brisa calma, que cobriu Elias com o manto e com força o trouxe fora das cavernas (Rs 19,12-13).
            Um carro de fogo e cavalos de fogo arrancaram Elias de junto de Eliseu, e num redemoinho de fogo lá se foi Elias para o céu. Noites e luzes. Procurado por três dias (2Rs 2,11.17)[3]
                                                                 
            Noite Escura de Maria - Virgem feliz em casa de Joaquim e Ana, mas é preciso não dizer não à Vontade de Javé: "Eis-me aqui! Eu sou a escrava do Senhor. Aconteça em mim tudo segundo a tua palavra" (°1,38).
            É preciso deixar pai e mãe e Nazaré, com muita coisa preparada para o nascimento e seguir José até Belém. Na hospedaria não há lugar e o Menino não vai esperar mais: Ela mesma tem de envolvê-Lo em faixas e acomodá-Lo dentro da manjedoura (°2,5.6.7). O boi e burro tenham paciência, e as mansas ovelhinhas...
            É preciso que o velho Simeão venha com aquela profecia? Para rebaixamento e soerguimento? Alvo diante da contradição? Uma espada que transpassa a alma? O velho estava vendo a Virgem-Mãe de pé junto à Cruz? (°2,34-35)
            O Menino não se perde, mas é por gosto que se mete por três dias nos interesses do Pai. "O seu pai, meu Filho, e eu, cheios de angústia tivemos de procurar Você!" O Menino respondeu uma resposta que fez pensar, mas na hora não lhes dizia nada: só três dias depois que o seu Menino morreu para ressuscitar é que deu para entender. Interesse do Pai: o seu Menino beber do cálice até todo cálice passar? (°2,46-50). A Mãe estaria de pé junto à Cruz, na escuridão da sexta-feira, mas já antes que alvorecesse "o primeiro dia depois do sábado" (24,1) havia de encontrar o seu Jesus vivo e ressuscitado para sempre[4].
            Mas nos dias de glórias humanas a Mãe nem conseguiu chegar perto d'Ele, que agora tem outras mães e outros irmãos. E Ela não é Mãe duas vezes? Bem que O recebeu como Palavra de Deus e está a produzir Fruto mais do que cem por um (8,15.19-21).
                                                                 
            Noite Escura de Jesus - Menino unido com a Mãe que faz parte e participa da Noite Escura da Mãe nos mistérios da sua infância. Cresce e, conduzido pelo Espírito, caminha pelo deserto de Elias. Tem fome e é tentado pelo chato do diabo, que se cansa e o deixa em paz por enquanto, até um momento, "áchri kairú", até um "kairós". Como os "kairós" são demorados e duros de chegar e de passar!... (4,3-13)
            O que parece é que este "kairós" vai continuar até o fim: já em Nazaré, sua cidade, onde cresceu e que lhe deu o apelido, encontra exaltação... e uma vontade doida de precipitá-lo lá de cima, serra abaixo (°4,22-29). Bem cedo os adversários o vigiam e fiscalizam: perdoa o paralítico e eles resmungam (5,21); chama

Levi-Mateus, publicano, e tornam a resmungar (5,30); mesmo quando jejua (4,2), dizem que não faz jejuns (5,33).
            Colher umas espigas, debulhar alguns grãos, esmagá-los nas palmas das mãos e comê-los é tão bom: é mais divertimento do que trabalho, mas reclamam (6,2). Curar um aleijado da mão para fazer o bem e não o mal atiça os olhos deles e os enche de fúria (6,7.9.11). Pobres velhotes; parecem meninos emburrados, pois nem cantam nem choram (7,32), mas não são meninos em assunto de malícia e maldade. Veja °7,39: o mau pensamento do fariseu por Jesus deixar-se tocar pela pecadora arrependida; 11,15: atribuem a Beelzebul as expulsões de diabos realizadas por Jesus; °11,38: o fariseu anfitrião maravilha-se por Jesus não ter feito as abluções.
            Sempre a tratá-Lo com hostilidade e armar-Lhe ciladas (°11, 53-54; 19,48; 20,19-20; 22,2). Conselhos hipócritas e avisos maldosos, como se Jesus tivesse medo de uma "Raposa" chamada Herodes (°13,31-33). Avarentos e ricos boa-vida, caçoam de quem aconselha o bom uso do dinheiro e carinho com os pobres (°16,14. 20).
            Sempre fiscalizado nas suas atitudes e resoluções. Se livra   uma pobre senhora encurvada, filha de Abraão (°13,10-17), se dá saúde a um senhor que sofre de barriga d'água (°14,1), se o povo aclama o Grande Rei que entra na sua cidade montado no jumentinho dos 40 filhos e 30 netos do juiz Abdon ou dos 30 do juiz Jair ou, talvez, do Rei Salomão e dos outros filhos do Rei Davi[5]. São corações mais duros do que a dureza das pedras (°19,39-40).
            São fragílimos os amigos do Senhor - pura porcelana! São, contudo, os amigos que tem para desabafar. Sofre por eles. Como anunciar-lhes os sofrimentos futuros, a rejeição, a traição, os escárnios, os escarros, os açoites, o abandono, a morte enfim; o medo por eles e a ressurreição? Anunciar-lhes uma (9,22), duas (9,44), três (°17,25), quatro vezes! (18,31-34)
            E o "kairós"?  Chegará logo? "Vim lançar fogo sobre a terra e como gostaria que já se tivesse alastrado! Tenho que receber um batismo e como me sinto angustiado até que se realize!" (°12, 49-50) "Com ânsia desejei comer com vocês esta Páscoa antes da minha Paixão!" (°22,15) "Este é o meu corpo dado por vocês. É a Nova Aliança no meu sangue" (22,19.20).
            Jerusalém causa-Lhe lágrimas e tristeza, e sentida elegia e lamentação. Amor traído faz sofrer. Jesus chorou. Quis ser como a galinhazinha de Nazaré, que com carinho sempre juntava a ninhada debaixo das asas, mas Jerusalém não quis... "Ser-te-á a tua casa deixada em abandono" (13,34-35). A Cidade da Paz vai pedir que o Príncipe da Paz morra como todos os profetas: hoje, de angústia ela aperta o Coração sensível e sentido de Jesus, mas "dias vão chegar para ti, quando de todos os lados os inimigos hão de apertar-te, no chão lançarão a ti e os teus filhos que estão dentro do teu seio, e não ficará pedra por cima de pedra, pois não quiseste reconhecer o tempo da tua visitação" (°19, 43-44). "Coitadas daquelas pobrezinhas que estiverem então grávidas ou dando de mamar naqueles dias!" (°21,23). Sempre pensa nas mães (°23,28-29).
            Mas os inimigos querem mesmo matá-Lo. Há um profeta que fala da Vinha amada do Senhor Javé. Há um salmo que fala da Pedra que rejeitaram[6]: eles entenderão e se converterão? (20,9-17) Os ditos do Senhor são cheios de paciência e caridade: podia não ter dito nada como não dirá nada a Herodes (°23,9). Mas existe Judas, chamado o "Sicáriot", e então Satanás entrou nele (°22,3): Jesus, para maior angústia do seu Coração, sabia de tudo (22,21-22). Que faz sofrer a Amizade traída!
            No meio da Escuridão é preciso falar com os amigos sobre a beleza da Luz e das alegrias do Reino: "o meu Corpo é dado em sacrifício por vós", "o meu Sangue é derramado por vós": "no meu Reino haveis de comer e beber à minha mesa" (22,19-20.30). Esperança: consolo e esperança somente... Expectativa de guerra: bolsa e alforje para se ter o que comer e espada para atacar e defender-se... E até à morte Jesus vive a agonia das Oliveiras, o Cálice (22,39-42), o Suor de Sangue (°22,44), a traição (22,47), a hora deles - o "kairós"? - e o império da escuridão (22,53), a prisão e negação de Pedro (22,54-62), a zombaria e os insultos (22,63-65), o julgamento de farsa (22,63-71), os falsos (23,2-5), a cara de Herodes (°23,9), a preferência por Barrabás, o homicida (23,18), a omissão covarde de Pôncio Pilatos e a condenação (23,24-25), a caminhada para a ladeira da Caveira (23,26-33), a condolência pelo futuro das mães e dos seus filhinhos (°23,28), mais zombarias, caçoadas e vinagre (23,35-38); e depois trevas e morte (23,44 e 46), e depois RESSURREIÇÃO E LUZ (24,4 e 6).
            "De fato não temos um Sumo Sacerdote ignorante de como compadecer-se das nossas fraquezas, uma vez que foi Ele próprio  provado em todas as coisas, à nossa semelhança, menos o pecado. Repletos de confiança, acheguemo-nos, pois, ao trono da graça, para recebermos misericórdia e encontrarmos graça e sermos ajudados no momento oportuno"[7]
            João da Cruz comentava os seus próprios versos:
                        "sem outra luz nem guia,
                        senão a que no coração ardia!"
e explicava: "ainda que (a alma) não vá arrimada a nenhuma luz interior particular nem a alguma guia exterior para receber dela satisfação neste alto caminho, porque estas trevas escuras a mantêm privada de tudo isto, contudo, enquanto o coração solicita pelo Amado, só o amor, que neste tempo está ardendo, só ele é quem então guia e move a alma, fazendo-a voar até junto do seu Deus pelo caminho da solidão, sem saber ela nem como nem de que maneira" (3N 2,4).

            Edith Stein (1891-1942), judia-alemã, carmelita, filha dedicada de São João da Cruz, comenta: "Em Cristo, graças à sua natureza (divina) e à sua livre determinação, nada havia que se opusesse ao amor. Viveu Ele cada momento da sua existência em abandono sem reserva ao amor de Deus. Fazendo-se homem, tomou Ele sobre Si todo o peso do pecado do homem, abraçando-o com o seu amor misericordioso e ocultando-o na sua alma: no "Ecce venio" (Aqui estou)[8], com o qual iniciou a sua vida na terra; depois, na renovação expressa desta sua missão no Batismo, e no Fiat do Getsêmani. O fogo da expiação cintilou primeiro no seu íntimo; em seguida, nos sofrimentos todos que acompanharam a sua vida; irrompeu inextinguível no Jardim das Oliveiras e sobre a Cruz, já que então desaparecera a sensação de gozo, que Lhe era concedida pela indissolúvel união com o Pai, lançando-O nos braços da dor a ponto de infligir-Lhe a última provação penosíssima: o abandono extremo por parte do Pai. No Consummatum est divisa-se o último lampejo do fogo da expiação, e no «Pater, in manus tuas commendo spiritum meum» acontece o definitivo retorno à eterna, amorosa e imperturbável união"[9].





    [1]. Camminando en compañia de todo hombre y mujer  Roma  1991 (pg. 74 da Edição da Cúria Generalícia O.Carm.)
    [2]. cf. Bruno Secondin em  Carmelus  Institutum Carmelitanum   Roma  1993  vol 40  fasc. I  pp. 172-198, sob o título  San Giovanni della Croce - Riletture acculturate e attualità del suo Carisma
    [3]. Ver abaixo, nota 96
    [4]. Ver notas da Bíblia de Jerusalém, 2Rs,17; Jo 19,25; 20,1
    [5]. Jz 10,4; 12,14; 2Sm 13,29; 1Rs 1,33.39
    [6]. Is 5,1 e Sl 118 [117],22
    [7]. Hb 4,15-16
    [8]. Hb 10,7 e Sl 39[40],8
    [9]. Edith Stein  "Scientia Crucis"  2ª edição  1982  Roma  Postulação Geral dos Carmelitas Descalços (tradução)

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