Padres chegaram a matar um tupi homossexual
amarrando-o na boca de um canhão
Foi aos
pés do Forte de São Luís do Maranhão, onde hoje funciona o Palácio dos Leões.
1614, o missionário francês Yves D’Évreux (1577-1632), da Ordem dos
Capuchinhos, ordenou a prisão, tortura e execução do índio Tibira, da tribo dos
tupinambás, sob o pretexto de “purificar a terra do abominável pecado da
sodomia”. Tibira ainda tentou fugir, escondendo-se na mata por alguns dias, mas
foi logo capturado. Amarrado pela cintura à boca de um canhão, “onde
deitaram-lhe ferros aos pés”, teve seu corpo destroçado. Uma parte dele caiu
aos pés do forte. A outra desapareceu no mar.
O
extermínio de Tibira foi documentado pelo próprio d’Evreux, que dedicou um
capítulo inteiro de seu livro, Voyage Dans le Nord du Brésil Fait Durant
les Années 1613 et 1614 (“Viagem ao Norte do Brasil feita nos anos de 1613
e 1614”, em livre tradução), ao índio tupinambá – “bruto, mais cavalo do que
homem”. Antes de sentenciá-lo à morte, o capuchinho ainda lhe concedeu um
último desejo: o de fumar tabaco – ou “petum”, em língua tupinambá. Segundo um
costume indígena, quando saíam para caçar, os tupinambás costumavam levar
“petum”. Caso viesse a faltar mantimentos, saciavam a fome, mastigando folhas
de fumo. Para Tibira não morrer pagão, D’Évreux providenciou o batismo dele,
com o nome de Dimas – em alusão ao “bom ladrão” perdoado por Jesus Cristo na
cruz.
Suas
últimas palavras? “Vou morrer. Não tenho mais medo de Jurupari (Diabo). Agora,
sou filho de Deus”. Para não sujar as mãos com sangue inocente, os missionários
franceses concederam a “honra” da execução a outro tupinambá. “Morres por teus
crimes, aprovamos tua morte e eu mesmo quero pôr fogo no canhão para que saibam
e vejam os franceses que detestamos as sujeiras que cometeste”, declarou o
cacique Caruatapirã, seu rival mortal. Daquele dia em diante, o algoz de Tibira
passou a gabar-se de seu feito e, pior, a servir-se dele para impor respeito
aos outros nativos. A execução, em praça pública, foi assistida por autoridades
civis e militares da então colônia francesa, além de chefes de diversas etnias indígenas.
Ainda
hoje, quatrocentos anos depois, o relato da morte de Tibira causa espanto a
Luiz Mott, doutor em Antropologia pela Universidade Estadual de Campinas
(Unicamp). “Não temos notícia no Brasil de outros criminosos que tivessem sido
executados na boca de um canhão”, afirma. Segundo Mott, as razões de tão cruel
execução são duas: medo do castigo divino – não é à toa que o termo sodomia
originou-se a partir do episódio bíblico que narra a destruição das cidades de
Sodoma e Gomorra – e receio de contágio. “Ao castigar um adepto da sodomia com
a pena capital, os religiosos aplicavam a pedagogia do medo não só para
erradicar essa abominação da terra selvagem, como para inibir sua prática
nefanda entre os colonos”, explica o antropólogo e historiador.
Em países
do Velho Mundo, como França, Portugal e Espanha, sodomitas, hereges e bruxos,
entre outros, eram condenados à morte na fogueira, “para não deixar vestígios”.
No Brasil colonial, a utilização de um canhão como instrumento de execução só
pode ser explicada como artifício para espetacularizar a morte de um pecador.
Segundo Mott, o extremismo homofóbico perpetrado em São Luís do Maranhão
infringia o próprio Direito Canônico da Igreja Católica, que não autorizava
missionários de condenarem suspeitos de sodomia à morte. “A execução de Tibira
foi totalmente arbitrária. Só o tribunal do Santo Ofício tinha jurisdição papal
para queimar sodomitas”, afirma Mott.
Outros costumes
Os três
navios franceses da expedição de Daniel de La Touche, que trouxeram o
missionário francês Yves D’Évreux ao Brasil, ainda não tinham sequer zarpado do
porto de Cancele, na Bretanha, em março de 1612 e os colonizadores portugueses
já se escandalizavam com os hábitos sexuais dos silvícolas brasileiros. Um dos
primeiros documentos que se tem notícia é o do jesuíta português Padre Manuel
da Nóbrega (1517-1570). “Os índios do Brasil cometem pecados que clamam aos
céus”, denunciou o sacerdote à Coroa Portuguesa, em 1549. Outro relato que
chama a atenção é o do historiador português Gabriel Soares de Sousa
(1540-1592). “São os tupinambás tão luxuriosos que não há pecado que eles não
cometam”, decretou em seu “Tratado Descritivo do Brasil”, de 1587.
Além deles,
o jesuíta português Pero Correia (1551), o missionário francês Jean de Léry
(1557) e o historiador português Pero de Magalhães Gandavo (1576) também
reportaram casos de sodomia entre os tupinambás. Curiosamente, algumas mulheres
da tribo também assumiam papéis diferentes do habitual. Saíam para caçar,
participavam de guerras, tinham esposas. Se os gays eram conhecidos como
“tibira”, as lésbicas eram chamadas de “çacoaimbeguiras”. “Algumas índias
deixam todo o exercício de mulheres e, imitando os homens, seguem seus ofícios
como se não fossem fêmeas. E cada uma tem mulher que a serve, com quem diz que
é casada. E assim se comunicam e conservam como marido e mulher”, relata Pero
de Magalhães Gandavo (1540-1580) em “Tratado da Terra do Brasil”, de 1576.
Os
tupinambás, porém, não eram os únicos a praticar o que Yves D’Évreux chamava de
“o mais torpe, sujo e desonesto dos pecados”. Outras etnias, como guaicurus,
xambioás, nambiquaras, bororos e tikunas, só para citar algumas, também não
viam problema com a homossexualidade. “Tal conjunto de práticas era comum em
sociedades indígenas brasileiras, sem que houvesse estigma sobre essas pessoas
por parte de seu grupo”, afirma o sociólogo Estevão Rafael Fernandes, da
Universidade Federal de Rondônia (UNIR). “Há várias fontes, inclusive,
apontando para um papel espiritual desempenhado por esses indivíduos em suas
aldeias. O que os missionários e colonizadores percebiam como depravação era,
muitas vezes, percebido como potencial xamânico pelos indígenas”.
Autor do
artigo “Homossexualidade Indígena no Brasil”, Fernandes observa que, nos EUA e
Canadá, tribos indígenas com uma sexualidade fora do modelo predominante também
foram perseguidas por ingleses, franceses e espanhóis. E mais: lá, os indígenas
homossexuais são chamados de two-spirit pelos seus iguais. Mais do
que uma maldição, nascer com “dois espíritos” seria uma benção. É como se
estivessem em transição entre dois mundos: o masculino e o feminino, o terreno
e o espiritual, o indígena e o não-indígena. “Isso garantia a eles um papel de
destaque em suas tribos”, completa.
Perseguição no primeiro século
1547 –
O português Estêvão Redondo é o primeiro homossexual degredado pelo Santo
Ofício da Inquisição para o Brasil. Ele chegou a Recife, em fevereiro daquele
ano, vindo de Lisboa. Teve seu nome inscrito no Livro dos Degregados pelo
próprio governador de Pernambuco, Dom Duarte d’Albuquerque Coelho.
1580 – O
medo de morrer queimado era tanto que levava os suspeitos de sodomia a praticar
atos impensáveis. Como o do professor baiano Fernão Luiz. Na esperança de
apagar as provas do “crime”, tramou a morte de seu parceiro e de sua família:
pôs veneno em uma galinha, preparou uma canja e a deu para eles como
refeição.
1586 – Para
escapar da repressão inquisitorial, o feitor baiano Gaspar Roiz subornou um
padre para queimar o sumário de culpas que o acusava de sodomia com um jovem
chamado Matias. Muitas vezes, os acusados tinham seus bens confiscados pelo
Santo Ofício, antes mesmo de conseguirem provar sua inocência.
1591 – O
padre Frutuoso Álvares foi o primeiro homossexual a ser interrogado pela
Inquisição no Brasil. Era acusado de praticar atos libidinosos, como
masturbação e sodomia, em homens e rapazes. Seu inquisidor foi o padre Heitor
Furtado de Mendonça, responsável pela primeira visitação do Tribunal do Santo
Ofício à colônia.
1592 –
Filipa de Souza foi a primeira lésbica a ser açoitada publicamente pela
Inquisição no Brasil. Nascida em Portugal, chegou à colônia em data ignorada.
Viúva, foi denunciada por “práticas nefandas” e presa em 18 de dezembro de
1591, aos 35 anos. Depois de expulsa da capitania, não se teve mais notícias de
seu paradeiro.
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