A
decisão do Papa Francisco de retomar a opção preferencial pelos
pobres e dar uma guinada na conduta da Igreja Católica transformou os cardeais
ultraconservadores da instituição em combatentes aguerridos do argentino.
Herdeiro
dos papados de João Paulo II (1978-2005) e Bento XVI (2005-2013),
o jesuíta Francisco enfrenta a fúria da Cúria conservadora,
contrária às suas reformas.
A
reportagem é de Mauro Lopes e Sérgio Kraselis, publicada por Calle2,
17-12-2016.
Nos corredores do Vaticano, altos
funcionários chamam Francisco à boca pequena de “esse
argentinozinho”. Se, num primeiro momento, o novo Papa enfrentou uma oposição
silenciosa, hoje ela está escancarada. A batalha explodiu em setembro de 2016
com a carta divulgada por quatro cardeais, definida como verdadeira “guerra
civil” pelo jornalista italiano Marco Politi, do jornal Il Fatto e um dos mais respeitados
vaticanistas.
Francisco
quer reformas e as reformas tendem a mexer nas estruturas. É óbvio que quem é
favorecido pela estrutura não quer mudança', analisa Cesar Kuzma, um dos mais expressivos
teólogos católicos brasileiros da nova geração.
Para guerrear
contra Francisco,
os conservadores escolheram as questões de fundo moral, aproveitando-se da onda
reacionária que varre o planeta. A escalada começou em 2014, tomou impulso no
segundo semestre de 2015 e agora está em seu momento-auge.
Dois momentos
deste combate foram um livro lançado por cinco cardeais afirmando que o segundo casamento equivaleria a adultério, para a doutrina cristã, e
um abaixo-assinado endereçado ao Papa com quase 800 mil assinaturas de
católicos, entre eles 100 bispos, em defesa da família.
Para termos
uma ideia do que Francisco enfrenta é preciso retroceder na
história. Ao ser apresentado ao mundo, o novo Papa surgiu no balcão do Vaticano
vestido de branco, sem ouro algum. Num gesto inédito, curvou-se diante da
multidão que ocupava a Praça São Pedro e pediu que as pessoas rezassem por
ele. Com isso, rompeu uma tradição secular que se construiu em torno da figura
do Papa desde a Idade Média, abalada com João XXIII no Concílio Vaticano II,
há 50 anos, e que foi reconstruída por seus dois antecessores. Um Papa humilde, sem ornamentos e vestes
pomposas.
Com a chegada
de Francisco,
voltaram à tona ideais concebidos no Concílio Vaticano II,
cujo ápice foi a Teologia da Libertação na América
Latina, combatida ferozmente pelos conservadores da Cúria.
O confronto
atual chega a ponto de cardeais e teólogos conservadores armarem oposição
cerrada a todas as ideias de atualização dos conceitos da Igreja em relação à
família propostas por Francisco,
chamando-as de “heréticas”. Numa entrevista, o cardeal norte-americano Raymond L. Burke, que tem buscado se
apresentar como líder da oposição, afirmou que seu grupo poderá decretar “um ato formal de correção de um erro grave”
contra o Papa, se ele não ceder às exigências. Francisco respondeu dizendo que as críticas “não
são honestas” e foram feitas “com espírito mau para fomentar a divisão”.
A pressão dos
conservadores não tem paralisado Francisco.
No encerramento do Jubileu da Misericórdia (um Ano Santo proclamado por ele entre
outubro de 2015 e novembro último), o Papa operou uma significativa mudança na
posição da Igreja quanto ao aborto, extinguindo a pena de excomunhão
às mulheres que o realizam e permitindo que os padres concedam o perdão a este
pecado.
O foco dos
conservadores nas questões de fundo “moral” permanece, apesar da enorme
fragilidade do discurso da Cúria e de dezenas de bispos e cardeais que nos
últimos anos acobertaram os milhares de casos de abusos sexuais cometidos por
religiosos contra crianças e jovens ao redor do planeta.
Um dos
líderes do bloco conservador, o cardeal George Pell, prefeito da Secretaria de
Economia do Vaticano, é alvo de um processo no qual é pesadamente acusado de
encobrir casos de pedofilia na Austrália durante os anos 1970 e 1980 e, mais
recentemente, de ele próprio estar envolvido em casos de abusos.
Há outros dois
temas em disputa neste momento: a liturgia, especialmente o rito da missa, e a
relação da Igreja com o planeta, a sociedade, os seres humanos e muito
particularmente com os pobres.
Os
conservadores defendem a restauração do rito tridentino da missa – onde havia
um único celebrante que rezava de costas para as pessoas, em latim, pois a
missa era “do padre”. Pode parecer incrível, mas os conservadores querem mesmo que
este “modelo” de ritual seja restaurado. O Papa tem reduzido o espaço do
arquiconservador cardeal Robert Sarah, prefeito da Congregação para o Culto Divino.
A questão da
relação da Igreja com o mundo, a humanidade e especialmente os pobres é o
terceiro polo da disputa. Os pobres são o centro da Igreja, tem anunciado Franciscodesde os primeiros dias de
seu Papado. Ele promoveu três edições do Encontro Mundial dos Movimentos Populares (no
Vaticano, em 2014 e em 2016, e na Bolívia, em 2015) e tem criticado de maneira
cada vez intensa o capitalismo.
No
encerramento da terceira edição de encontro, em 5 de novembro, ele disse que o
mundo está dividido entre “um projeto-ponte dos povos contra o projeto-muro do
dinheiro” e defendeu “a destinação universal dos bens”, além de denunciar a
“internacional do dinheiro”.
Em 27 de
novembro, Francisco avançou no tema dos pobres para dentro
da Igreja ao questionar 800 gestores financeiros participantes do Simpósio sobre Economia da Congregação,
em Roma: “A hipocrisia dos consagrados que vivem como ricos fere a consciência
dos fiéis e prejudica a Igreja”. Francisco alertou que a gestão destas
organizações (e de toda a Igreja) deve “escutar o sussurro de Deus e o grito
dos pobres, dos pobres de sempre e dos novos pobres”. Os conservadores têm
urticária quando escutam ou leem essas palavras do Papa e acusam-no (por
enquanto nos bastidores) de “ressuscitar a Teologia da Libertação”.
O equilíbrio
de forças no interior da Igreja, fortemente impactado pela onda conservadora
dos últimos 35 anos, parece manter Francisco em relativo isolamento na cúpula
católica. Num discurso sem precedentes diante da Cúria romana em um tradicional encontro de
Natal, em 22 de dezembro de 2014, ele investiu frontalmente contra o espírito
da hierarquia diante de cardeais e bispos entre constrangidos e indignados.
Nele, apontou o que chamou de “as 15 enfermidades” da Cúria, entre elas a de
“perder a capacidade de chorar com os que choram e se alegrar com os que se
alegram. É a enfermidade dos que perdem os ‘sentimentos de Jesus’, porque o seu
coração, com o passar do tempo, endurece-se e torna-se incapaz de amar
incondicionalmente o Pai e o próximo”.
De lá para cá,
alguma água passou por debaixo da ponte e, segundo seus aliados e alguns
vaticanistas, Francisco está, aos poucos, modificando o perfil
da Igreja. É o que diz dom Cláudio Hummes, o cardeal brasileiro que
se tornou conhecido mundialmente pelo fato de, estando ao lado do Papa no exato
momento de sua eleição, cumprimentá-lo sussurrando em seu ouvido uma frase que
inspirou Bergoglio a escolher o nome de Francisco: “Não se esqueça dos pobres”.
Hummes assegura que a imensa maioria dos
cardeais está ao lado do Papa: “Sem querer relativizar este fato, são quatro
cardeais. E na Igreja somos mais de 200. Sem querer relativizar demasiadamente,
são quatro de um grupo enorme que está dando todo o seu apoio ao Papa”.
Francisco tem atacado com contundência o
clericalismo (a doutrina que estrutura e organiza em boa medida o pensamento
conservador na Igreja) e seguidamente compara os clérigos católicos (padres,
bispos e cardeais) e leigos poderosos nas estruturas eclesiais aos chefes
religiosos que perseguiram Jesus até sua morte.
O combate ao
clericalismo está na origem do atual papado: foi o centro do discurso do então
cardeal Bergoglio no colégio de cardeais reunidos para a
sucessão de Bento XVI,
em 7 de março de 2013, seis dias antes de ser escolhido, e é considerado
decisivo para sua eleição. A contundência de Francisco é resultante de um mandato que recebeu
de seus eleitores, o que tornam arriscadas quaisquer previsões sobre o
equilíbrio de poder na Igreja.
Os movimentos
no tabuleiro da Igreja estão sendo pensados de olho no próximo Papa, pois Francisco, aos 80 anos, não terá
tempo para concluir suas reformas. Ele sabe disso e está redesenhando o colégio
eleitoral do próximo Papa com frieza e tirocínio típicos dos jesuítas. Para o
teólogo brasileiro César Kuzma, Francisco “não joga no escuro e nem mesmo faz
apostas para ver onde vai dar, ao contrário, ele sabe o que quer e sabe o que
deve buscar. Ele também sabe que não terá um Pontificado longo e que não terá
como resolver e mudar tudo.”
Por isso, ao
nomear 13 cardeais com direito a voto (menos de 80 anos de idade) em 19 de
novembro, ele é responsável por 1/3 do total de indicações do colégio de
cardeais com direito a voto neste momento (44 de um total de 121). Em três
rodadas de nomeações desde 2013, o Papa já conseguiu um feito memorável na
história da Igreja: acabou com a maioria europeia. São agora 54 cardeais do
Velho Continente contra 67 do resto do mundo. Espera-se mais uma ou duas
rodadas de nomeações à frente. Com isso, o cálculo e a esperança dos
conservadores para o próximo Papa pode estar em risco, o que explica a
radicalização da luta no interior da Igreja nas últimas semanas, com este
caráter de “guerra civil”.
A batalha no Brasil
A nomeação em
massa de bispos conservadores por João Paulo II e Bento XVImodificou
profundamente o perfil da Igreja no país. Se, mesmo nos anos 1970-80, quando a
Igreja era protagonista das causas populares no país, a hierarquia
apresentava-se dividida, na virada do século os conservadores passaram à
ofensiva.
Hoje, dois dos
expoentes do conservadorismo são os arcebispos de São Paulo, dom Odilo Pedro Scherer, exatamente o candidato
que procurou contrapor-se a Bergoglio,
e o do Rio de Janeiro, dom Orani Tempesta.
Ambos
lideraram a visita de uma comitiva de bispos a Michel Temer em 10 de novembro a pretexto de uma
audiência sobre a Rede Vida (emissora de TV católica) mas que se
tornou um ato de apoio à PEC do teto dos gastos e de bênção ao
governo, exatamente no dia da primeira votação da proposta que congelou os
gastos sociais no país.
O Rio
tornou-se uma espécie de quartel-general do segmento mais radicalizado da
direita eclesial, que se expressou com virulência durante o segundo turno da
eleição municipal na capital do Estado. Padres e membros da Cúria chegaram a
ameaçar de “excomunhão” os católicos que faziam campanha por Marcelo Freixo, do PSOL.
A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), que se manteve calada
desde 2013, evitando confrontos com os conservadores, começou a se mover na
direção de Francisco nos últimos meses: divulgou notas
duras contra a PEC que corta os gastos sociais e a reforma do ensino médio. Seu presidente,
dom Sérgio da Rocha, arcebispo de Brasília, foi nomeado cardeal pelo Papa em 19
de novembro.
Segundo o
bispo belga dom André De Witte,
vice-presidente da Comissão Pastoral da Terra, a hierarquia no Brasil está
“silenciosa, mas não afastada” em relação ao Papa, que apoia as pastorais
sociais e movimentos de base. O bispo belga, no Brasil há 40 anos, afirma que
há de fato um novo modelo na administração da Igreja, uma mudança de paradigma
que apenas a Teologia da Libertação tinha ousado
antes de Francisco,
porque implica que os líderes eclesiásticos (dos padres aos bispos, cardeais e
até o Papa) abram mão de seus poderes e assumam uma relação direta com os
católicos e católicas. Os cristãos católicos no Brasil e no mundo finalmente
são convidados pela Igreja, no Papado de Francisco,
a ingressarem na idade adulta.
Fonte: http://www.ihu.unisinos.br
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