"O espírito consumista e o sistema
capitalista crescem a uma velocidade exponencial; outros modelos de vida que
com dificuldade resistem à agressão deles observam-nos com angústia e
incompreensão, definindo-os, lucidamente, 'sistemas suicidas'. Desse ponto de
vista, a leitura de Laudato Sí poderia ter profundas implicações
político-econômicas", afirma Dário Bossi, padre comboniano, membro da rede
Justiça nos Trilhos e da Rede Brasileira de Justiça Ambiental.
Eis
o artigo.
Os Ka’apor do Maranhão levantaram a voz.
Por isso querem amordaçá-los.
Cansados de esperar que o Estado os
defenda e garanta proteção para eles e a floresta, organizaram por sua conta
“missões” de controle da reserva em que vivem.
Vigiam sobre os acessos à sua terra e
surpreendem os madeireiros que a invadem e saqueiam, protegidos e aliados a
políticos e empresários locais. Quando os índios os descobrem, apoderam-se de
suas motosserras, incendeiam seus caminhões e os expulsam de suas terras,
declaradas Kaar Husak Há, isto é Áreas Protegidas.
Eusébio Ka’apor era um dos defensores da
terra indígena. Mataram-no com dois tiros nas costas, no final de abril, pouco
distante de sua aldeia. No Brasil as vítimas da violência em terra indígena
nesses últimos anos aumentaram com a mesma proporção da arrogante bancada
ruralista.
O que esperariam os Ka’apor da encíclica
Laudato Sí de Papa Francisco? Será preciso lê-la do ponto de vista deles e de
muitas outras vítimas da violência ambiental.
Nós missionários combonianos faremos
dela instrumento de estudo popular da realidade, com as comunidades cristãs
junto às quais vivemos.
Muitos estão esperando por essa
encíclica. Sobretudo as comunidades e igrejas perseguidas por seu empenho em
defesa da Criação e em conflito com os grandes projetos nas regiões amazônicas:
mineração, monoculturas, hidrelétricas e barragens, infraestruturas para a
exportação de commodities... Chamados “projetos de desenvolvimento”, revelam
rapidamente o interesse quase exclusivo de desenvolver os capitais de quem
investe nisso, provocando graves violações dos direitos socioambientais às
populações locais e criminalização dos líderes populares que a eles se opõem.
Um dos motivos da criação da rede
latinoamericana Iglesias y Minería, por exemplo, foi exatamente evitar o
isolamento das comunidades mais empenhadas nessas frentes e demonstrar apoio
moral, político e institucional da Igreja a seu lado. Esse talvez será o efeito
prático mais imediato e importante de Laudato Sí.
Esperamos que essa encíclica confirme
uma posição clara da Igreja ao lado das vítimas do assim chamado “racismo
ambiental”. Desejamos que, ao denunciar os riscos da sobrevivência do Planeta,
o documento seja solidário às comunidades mais pobres. Essas são de um lado as
vítimas maiormente atingidas por essa violência e, do outro, em muitos casos,
indicam-nos caminhos de preservação da vida e de organização de economias a
baixo impacto ambiental nos territórios.
Em muitos países está sendo
implicitamente declarada uma guerra de baixa intensidade, disputando territórios
e bens naturais. A história se repete no estilo das antigas colônias, como bem
demonstra o saudoso Eduardo Galeano em “As veias abertas da América Latina”,
mas com ritmos e tecnologias bem mais impactantes, chegando assim a violar
também os direitos das futuras gerações.
O espírito consumista e o sistema
capitalista crescem a uma velocidade exponencial; outros modelos de vida que
com dificuldade resistem à agressão deles observam-nos com angústia e
incompreensão, definindo-os, lucidamente, “sistemas suicidas”. Desse ponto de
vista, a leitura de Laudato Sí poderia ter profundas implicações
político-econômicas.
As comunidades que a Convenção 169 da
Organização Internacional do Trabalho define “indígenas e tribais” representam
ao nosso ver um “baluarte” (Kaar Husak Há). Assim como ao longo da história as
fortalezas protegeram inteiros territórios das invasões e frearam o controle
inimigo dos territórios, da mesma forma o direito à autodeterminação das
populações locais pode ser uma estratégia, hoje, para evitar a entrega
indiscriminada dos bens comuns às corporações mineiras ou às multinacionais da
comunicação, da água ou das grandes cadeias de produtos alimentares.
A Igreja deveria apoiar com força o
direito à “consulta prévia, livre e informada” das comunidades locais, assim
que seja garantido o autocontrole de seus territórios.
A Red Eclesial Panamazónica
comprometeu-se nesse sentido em diversos Países da América Latina. Articula
comunidades cristãs de base, grupos e instituições religiosas e as conferências
episcopais da grande Amazônia, com especial atenção aos direitos dos povos
indígenas e com uma interessante proposta de colaboração permanente com a
Comissão Interamericana dos Direitos Humanos.
A visita de Papa Francisco a Washington
em setembro, poucos meses depois da publicação da Encíclica, poderá tocar
também esses temas delicados e urgentes.
Em chave de política internacional, a
encíclica poderia ser oportunidade para relançar a proposta de criação de uma
Corte Penal de Justiça Ambiental. Hoje, de fato, não existem adequados
mecanismos de responsabilização em nível internacional por crimes ambientais.
Assim, mesmo em caso de graves violações desses direitos, as multinacionais e
os governos locais, vinculados entre si por acordos e interesses econômicos,
acabam praticamente impunes.
Sobretudo, esperamos que o documento vaticano
sobre ecologia ofereça uma releitura teológica das referências bíblicas que ao
longo da história, por interpretações patriarcais e colonizadoras, separaram a
Criação do homem, considerando esse último o dominador e controlador da vida.
Sabemos quanto o sistema capitalista,
ecocida e suicida, herdou da cultura religiosa cristã. Por outro lado, temos a
inspiração radicalmente evangélica de São Francisco e o testemunho vivo de
muitos e muitas mártires que nos relançam em defesa da vida.
Precisamos igualmente de um profundo e
humilde processo de conversão e purificação. Uma nova escuta da Revelação, a
partir do encontro fecundo entre a Palavra bíblica, o livro da criação e a
sabedoria dos povos e das religiões.
Fonte:
http://www.ihu.unisinos.br
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