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quarta-feira, 27 de agosto de 2014

O arcebispo que não precisou do Vaticano para ser santo

“A devoção ao ‘São Romero da América’ começou nos anos oitenta, em plena guerra civil, como demonstra as placas deixadas por salvadorenhos anônimos em agradecimento por algum milagre recebido”, é o que afirma Roberto Valencia, jornalista e autor do livro “Hablan de Monseñor Romero” (Fundação Dom Romero, São Salvador, 2011) e trabalha em clic El Faro. O artigo é publicado por BBC Mundo, 25-08-2014. A tradução é do Cepat. Fonte: http://goo.gl/dgCAcb

Eis o artigo.
O papa Francisco falou diretamente do céu sobre o mártir venerado por centena de milhares de pessoas em El Salvador – e além dele – como “São Romero da América”. E “falar do céu” não é uma licença poética: a coletiva de imprensa foi realizada a bordo do Airbus A330 da Alitalia que o levava de volta para Roma, após cinco dias na Coreia do Sul.
É tarde de segunda-feira, 18 de agosto de 2014. Um jornalista felicita o papa pelo seu inglês, aproveita para pedir-lhe, veladamente, uma entrevista, e o interpela: “Como vai o processo de Dom Romero? Como gostaria que ele fosse concluído?”.
Referia-se a Óscar Arnulfo Romero y Galdámez (1917-1980), o arcebispo de São Salvador assassinado de um disparo no peito enquanto ministrava a missa na capela de um hospital para doentes terminais de câncer, e cujo processo de beatificação está parado em Roma desde 1996.
A resposta entusiasmada do Papa Francisco é propagada em um minuto, mas não diz nada de novo; recorda que a causa está desbloqueada, reitera sua crença de que foi “um homem de Deus”, e explica que o caso continua ancorado na Congregação para a Causa dos Santos.
O único romantismo de seu discurso talvez seja o andamento recomendado aos proponentes: “depende de como irão se mover. É muito importante que o façam com rapidez”.

O salvadorenho mais universal
Desde que em 22 de fevereiro de 1977 tomou posse da arquidiocese de São Salvador, a relação do salvadorenho mais universal com seu povo tem sido imensa e sinuosa, como a estrada que sobre a um vulcão.
De tendência conservadora, sua nomeação ganhou no início o repudio dos setores progressistas, que o tinham como um bispo relacionado à oligarquia, papel que havia interpretado desde que, em 1944, iniciou seu trabalho pastoral em El Salvador.
A mudança foi radical e, em meados de 1977, censurava com firmeza o governo militar e denunciava a sistemática violação dos direitos humanos exercida pelo Estado e grupos paramilitares, ainda que também apontasse para os grupos armados que integravam a guerrilha da Frente Farabundo Martí para a Libertação Nacional (FMLN).
Quando a ultradireita o assassinou em março de 1980, já era uma das vozes mais respeitadas da Igreja católica latino-americana, todo um referente da Teologia da Libertação, mesmo que Dom Romero nunca tenha se sentido parte desse movimento.
Em três anos havia ganhado o carinho de uma ampla porcentagem dos salvadorenhos, admiração acentuada nos estratos mais humildes da sociedade. O funeral foi um evento de massas que colapsou a capital.
A devoção para “São Romero da América” começou nos anos oitenta, em plena guerra civil, como demonstram as placas deixadas por salvadorenhos anônimos em agradecimento por algum milagre recebido.

Do silêncio oficial ao “guia espiritual”
Durante a guerra civil (1980-1992), o culto à sua figura foi clandestino, mas de uma honestidade formidável. Como testemunhos da incipiente fé nos “aspirantes a santos”, salvadorenhos anônimos esculpiram dezenas de placas “de milagres concedidos”, que hoje são expostos na modesta cabana na qual passou seus últimos anos de vida, que foi transformada em um pequeno, mas cativante museu.
A repressão governamental não rompeu sua aura, mesmo que ter um retrato seu colado na parede fosse suficiente para correr riscos. A salvadorenha Eleonor Chacón, uma mulher que não era politicamente ativa, mas tinha uma fotografia com ele por ter sido o sacerdote que a havia casado, queimou a imagem por sugestão de seu esposo.
O conflito civil, que deixou mais de 70 mil vítimas, desembocou nos governos do partido direitista Aliança Republicana Nacionalista (Arena), fundado por Roberto d'Auibuisson, o mentor intelectual do assassinato, de acordo com o Relatório da Comissão da Verdade, elaborado pelas Nações Unidas.
Foram duas décadas de absoluto silêncio, mas, como consequência dos espaços ganhos pelos Acordos de Paz de 1992, a sociedade civil e a Igreja começaram a se organizar para manterem viva sua memória, com procissões cada vez maiores e com mais visibilidade, principalmente em torno da data do assassinato.
Transformado em partido político, o FMLN tomou o poder em junho de 2009. Em seu discurso de posse, o agora ex-presidente Mauricio Funes não apenas invocou Dom Romero – algo inédito nos 20 anos da Arena -, como também o chamou de “meu mestre” e de “guia espiritual”. O fervor popular de boa parte da efervescência católica já estava assentada e, da noite para o dia, se sobrepôs a uma admiração institucional.
Durante os cinco anos de Funes, se rebatizou o aeroporto internacional e uma estratégica rodovia, a Casa Presidencial também se encheu de referências – um quadro gigantesco, uma importante sala de reuniões renomeada ... –, o governo organizou uma rota turística, e seu túmulo foi visitado pelos presidentes do Equador, Irlanda, Brasil... inclusive Barack Obama caminhou pelo porão da Catedral Metropolitana, onde estão os seus restos mortais.
Dom Romero se instalou no discurso oficial – o FMLN continua no poder, agora com o ex-guerrilheiro Salvador Sánchez Cerén como presidente–, mesmo que o compromisso com os mais necessitados e sua austeridade pareçam ser mais difíceis de assumir para a imensa maioria dos líderes políticos que o invocam.

Figura de culto
Já ameaçado de morte Dom Romero, que vivia em uma cabana de dois quartos, havia renunciou à proteção estatal (“Um bem-estar pessoal não me interessa enquanto ver em meu povo um sistema econômico, social e políticos que tenda, cada vez mais, a abrir essas diferenças sociais”, registrou em seu diário), e dou integralmente os US$10.000 que recebeu de uma universidade para a construção de um lar para crianças.
Já em 1978 três parlamentares britânicos o visitaram em representação dos 118 que haviam assinado a postulação oficial do salvadorenho para ao Prêmio Nobel da Paz.

E o culto se expandiu nos últimos cinco anos, além de ter se sofisticado.
As Nações Unidas entraram na onda e, desde novembro de 2012, reconhece o dia 24 de março, data na qual o assassinaram, como o Dia Internacional do Direito a Verdade em relação a Violações Graves dos Direitos Humanos e da Dignidade das Vítimas.

A atuação de Dom Romero como defensor dos direitos humanos não começou a edificar-se apenas com sua memória. Sua entrega foi reconhecida – em vida – por universidades dos Estados Unidos e Bélgica, com doutorados de Honoris Causa.

Em 24 de março de 2015 serão completos 35 anos do assassinato de Dom Romero.
A candidatura a Nobel da Paz não teve o êxito desejado por seus proponentes. Com o passar dos anos diferentes vozes denunciaram que do Vaticano, onde o Papa polonês João Paulo II acabava de se instalar, foi organizada uma campanha para neutralizar a possibilidade de que o incomodo Dom Romero recebesse um prêmio tão importante. Seja certo ou não, o Nobel da Paz em 1979 foi concedido a uma religiosa politicamente mais dócil: a Madre Teresa de Calcutá.
“Para mim Romero é um homem de Deus, mas o procedimento deve ser realizado, e o Senhor também tem que dar seu sinal... Se Ele o quiser, o fará. Contudo agora os proponentes tem que caminha porque não já não há impedimentos”, respondeu o papa Francisco ao jornalista que o consultou.
No dia 24 de março de 2015 se completarão 35 anos do assassinato de Dom Romero. Antes ou depois o papa Francisco voltará a se referir à questão da beatificação. E sua figura voltará a ser lembrada e venerada em El Salvador – principalmente, mas não apenas –, como já gostariam de serem lembrados e venerados tantos santos sem devotos da Igreja católica.

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