O Jesus
ressuscitado ainda traz as marcas e as chagas da sua paixão. A ressurreição de
Jesus não o fez retroagir ao passado, como se sua morte nunca tivesse
acontecido. Pelo contrário, venceu a morte e ainda traz as marcas da
crucificação. O Jesus ressuscitado não virou anjo; ele continua sendo homem. A
ressurreição de Jesus muda o nosso olhar sobre o homem.
A reflexão é de Raymond
Gravel, padre da Diocese de Joliette, Canadá, e publicada no sítio Réflexions de Raymond Gravel, comentando as leituras do 2º
Domingo da Páscoa – Ciclo A do Ano Litúrgico (27 de abril de 2014). A tradução
é de André Langer.
Referência bíblica:
Evangelho: Jo 20,19-31
Eis o texto.
Cada ano, no
segundo domingo da Páscoa, nós temos esse belíssimo relato que só se encontra
em João, passagem que marcava, originalmente, o fim do seu evangelho. Esta
dupla aparição do Ressuscitado aos discípulos, primeiro na ausência de Tomé,
e depois na sua presença, nos diz algo sobre a Igreja primitiva, mas também
sobre a nossa Igreja hoje. Como em todos os relatos evangélicos, encontramos o
testemunho de fé dos primeiros cristãos, e podemos identificar, ao mesmo tempo,
mensagens para os cristãos do século XXI.
1.A Ressurreição...
uma questão. Ao ler os relatos da Páscoa dos quatro evangelistas, podemos ter a
impressão de que a Ressurreição é uma realidade tangível que não deixa margem
para dúvidas, de tal modo sua manifestação parece clara: pensemos no tremor de
terra evocado por Mateus e o anjo luminoso que vem do céu, enquanto
que os soldados que guardam o túmulo tremeram de medo e ficaram como mortos (Mt
28,1-4). De modo especial, não devemos esquecer que esses relatos, escritos
muito tempo depois da Páscoa, querem simplesmente expressar a fé na
Ressurreição que vai gradativamente se desenvolvendo nas comunidades cristãs e
que esses relatos carregam as marcas do autor que os compôs. Portanto, Mateus que
era judeu, procura mostrar que o Cristo ressuscitado realiza plenamente os profetas
da Antiga Aliança e que ele é o novo Moisés, o libertador do seu povo, da
Igreja, o que explica os sinais resplandecentes das teofanias que encontramos
nos textos do Antigo Testamento. Por outro lado, nos outros evangelhos, os
sinais da Ressurreição são antes necessários e colocam mais perguntas para as
quais não têm respostas: um túmulo vazio, em Lucas; o silêncio das
mulheres em Marcos; um lençol dobrado no canto, emJoão; uma palavra no
caminho, uma partilha do pão, etc. Assim, em todos os evangelhos, as
testemunhas devem passar da angústia e da dúvida ao momento em que eles
reconhecem que é o Cristo que está aí, que está vivo, que é verdadeiramente
ressuscitado. Todos esses testemunhos da primeira hora descobrem aos poucos o
caminho da fé. É o que emerge do evangelho de João de hoje.
2. A
Ressurreição... uma presença na ausência. Jesus morreu. Ele não pode estar aí
fisicamente como antes; ele só pode está aí como depois, isto é, através dos
seus discípulos. De fato, os discípulos se sentem sozinhos, nos dizJoão. Eles
estão num lugar fechado, com todas as portas trancadas, por causa do medo que
sentem (Jo 20,19a). Mesmo assim, o Cristo está no meio deles (Jo 20,19b). Ele
é, em primeiro lugar, Palavra: “A paz esteja com vocês!” (Jo 20,19c).
Depois destas palavras, ele mostra a sua humanidade ferida (Jo 20,20c). Não
esqueçamos que estamos no final do século I, no momento das piores perseguições
aos cristãos: na comunidade de João, muitos cristãos martirizados se
reúnem, no primeiro dia da semana, no domingo, para recordar o Ausente,
isto é, através da Palavra partilhada e do testemunho da sua vida, eles
descobrem a presença do Ressuscitado na ausência do Crucificado. Imediatamente,
é a alegria experimentada por toda a comunidade reunida (Jo 20,20b).
3. A
Ressurreição... uma vida nova. No encontro dominical, os primeiros cristãos
tomam consciência de que a missão do Cristo lhes pertence: “Jesus disse
novamente: a paz esteja com vocês! Assim como o Pai me enviou, eu também envio
vocês” (Jo 20,21). É a nova criação; assim como no tempo da primeira criação,
quando Deus sopra nas narinas de Adão para lhe dar a vida, Cristo faz o mesmo
com os seus discípulos reunidos: “Tendo falado isso, Jesus soprou sobre eles,
dizendo: ‘Recebam o Espírito Santo’” (Jo 20,22).
4. A
Ressurreição... uma libertação. Recriados, investidos pelo Espírito de Cristo,
os discípulos tornam-se libertadores, capazes de reconciliar e de libertar as
pessoas: “Os pecados daqueles que vocês perdoarem, serão perdoados. Os pecados
daqueles que vocês não perdoarem, não serão perdoados” (Jo 20,23). É uma
responsabilidade que lhes é confiada, já que os discípulos têm o poder de
libertar as pessoas ou de se recusar a fazê-lo, e esta responsabilidade não é
reservada apenas aos apóstolos; de agora em diante, todos os discípulos podem e
devem fazê-lo, o que significa que ainda hoje somos todos responsáveis pela
reconciliação e pela liberdade. Cabe a nós reconciliar as pessoas e de
torná-las livres.
5. A comunidade...
uma necessidade. A fé cristã não pode ser vivida de maneira isolada; ela tem
necessidade dos outros, da comunidade. É o significado da segunda parte do
relato de João, onde Tomé, nosso gêmeo, não se encontra com os outros.
Esses lhe contaram que o Cristo está vivo e que se faz presente no seu encontro
do domingo, mas Tomé na pode crê-lo, porque ele não se encontrou com
ele, pois estava ausente dessa reunião. É, pois, no âmago da celebração
dominical seguinte que Tomé, desta vez presente, poderá fazer a
experiência do Ressuscitado. E temos então a profissão de fé de Tomé em
toda a sua solenidade: “Meu Senhor e meu Deus!” (Jo 20,28). Mas!!!
6. A fé... um
testemunho. Mas!!! O evangelista João parece dizer que a fé deverá nascer
primeiramente e antes de tudo da experiência dos outros que testemunham seu
encontro com o Ressuscitado. O que significa que o nosso testemunho deve ser
muito confiável e convincente para que os outros adiram à fé e para que tenham
o gosto, também eles, de vir à reunião dominical para encontrar e reconhecer o
Ressuscitado. É através das chagas dos participantes da reunião que
reconhecemos o Crucificado ressuscitado. É uma missão e uma responsabilidade
que é confiada hoje a todos os cristãos.
Concluindo,
podemos dizer que a experiência de Tomé, que é também a nossa, tem um
valor importante para a Igreja de hoje. A este respeito, gostaria de
compartilhar os comentários do exegeta francês Jean Debruynne: “Deste
ponto de vista, Tomé nos presta um grande serviço: as perguntas que
ele faz em voz alta, são as mesmas que nós fazemos em voz baixa. Tomé nos
tranquiliza, uma vez que ele, um incrédulo, chega à experiência da fé. Isso
deveria nos livrar de muitas das nossas dúvidas. Não precisamos refazer a
busca, Tomé já a fez! Mas este pedido de Tomé de querer
colocar os dedos nas chagas das mãos e dos pés de Jesus e suas mãos na chaga do
seu lado, não é apenas expressão do ceticismo; é também uma afirmação muito
importante para a nossa fé: o Jesus ressuscitado ainda traz as marcas e as
chagas da sua paixão. A ressurreição de Jesus não o fez retroagir ao passado,
como se sua morte nunca tivesse acontecido. Pelo contrário, venceu a morte e
ainda traz as marcas da crucificação. O Jesus ressuscitado não virou anjo; ele
continua sendo homem. A ressurreição de Jesus muda o nosso olhar sobre o homem.
As chagas de Jesus dizem que o ressuscitado carrega em si todas as chagas de
todos os humilhados do mundo. Elas dizem também que nenhuma chaga, por mais
injusta e humilhante que seja, pode nos impedir de nos tornarmos pessoas de
cabeça erguida no coração do mundo. De agora em diante, nenhuma das nossas
chagas pode nos impedir de ser livres: Jesus ressuscitado é, em primeiro lugar,
aquele que carrega as chagas da nossa condição humana. De maneira clara, não
esperemos nos livrar dos nossos males para vivermos de cabeça erguida. Jesus
ressuscitou e é hoje que, mesmo com as nossas chagas, podemos nascer para a
liberdade.”
Fonte: http://www.ihu.unisinos.br
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