Em
maio de 1986, os irmãos Clodovis e Leonardo Boff publicaram uma carta aberta ao
cardeal Joseph Ratzinger. O artigo analisava a instrução "Libertatis
Conscientia", em que o futuro papa Bento XVI visava corrigir os supostos
desvios da Teologia da Libertação na América Latina. Os religiosos brasileiros
desaprovavam, com uma ponta de ironia e uma boa dose de audácia, a
"linguagem com 30 anos de atraso" no texto.
Em
2007, o irmão mais novo de Leonardo Boff voltou à carga. Mas, dessa vez, o alvo
foi a própria Teologia da Libertação - movimento do qual ele foi um dos
principais teóricos e que defende a justiça social como compromisso cristão.
Ele censurou a instrumentalização da fé pela política e enfureceu velhos
colegas ao sugerir que teria sido melhor levar a sério a crítica de Ratzinger.
Em
entrevista por telefone, frei Clodovis diz que Bento XVI defendeu o
"projeto essencial" da Teologia da Libertação, mas o critica por
superdimensionar a força do secularismo no mundo.
A
entrevista é de Alexandre Gonçalves e publicada pelo jornal Folha de S. Paulo,
11-03-2013.
Eis a entrevista.
Bento XVI foi o grande inimigo da Teologia da
Libertação?
Isso
é uma caricatura. Nos dois documentos que publicou, Ratzinger defendeu o
projeto essencial da Teologia da Libertação: compromisso com os pobres como
consequência da fé. Ao mesmo tempo, critica a influência marxista. Aliás, é uma
das coisas que eu também critico. No documento de 1986, ele aponta a primazia
da libertação espiritual, perene, sobre a libertação social, que é histórica.
As correntes hegemônicas da Teologia da Libertação preferiram não entender essa
distinção. Isso fez com que, muitas vezes, a teologia degenerasse em ideologia.
E os processos inquisitoriais contra alguns
teólogos?
Ele
exprimia a essência da igreja, que não pode entrar em negociações quando se
trata do núcleo da fé. A igreja não é como a sociedade civil, onde as pessoas
podem falar o que bem entendem. Nós estamos vinculados a uma fé. Se alguém
professa algo diferente dessa fé, está se autoexcluindo da igreja. Na prática,
a igreja não expulsa ninguém. Só declara que alguém se excluiu do corpo dos
fiéis porque começou a professar uma fé diferente.
Não há margem para a caridade cristã?
O
amor é lúcido, corrige quando julga necessário. Jon Sobrino diz: "A
teologia nasce do pobre". Roma simplesmente responde: "Não, a fé
nasce em Cristo e não pode nascer de outro jeito". Assino embaixo.
Quando o sr. se tornou crítico à Teologia da
Libertação?
Desde
o início, sempre fui claro sobre a importância de colocar Cristo como o
fundamento de toda a teologia. No discurso hegemônico da Teologia da
Libertação, no entanto, eu notava que essa fé em Cristo só aparecia em segundo
plano. Mas eu reagia de forma condescendente: "Com o tempo, isso vai se
acertar". Não se acertou.
"Não é a fé que confere um sentido
sobrenatural ou divino à luta. É o inverso que ocorre: esse sentido objetivo e
intrínseco confere à fé sua força." Ainda acredita nisso?
Eu
abjuro essa frase boba. Foi minha fase rahneriana. Karl Rahner estava fascinado
pelos avanços e valores do mundo moderno e, ao mesmo tempo, via que a
modernidade se secularizava cada vez mais.
Rahner
não podia aceitar a condenação de um mundo que amava e concebeu a teoria do
"cristianismo anônimo": qualquer pessoa que lute pela justiça já é um
cristão, mesmo sem acreditar explicitamente em Cristo. Os teólogos da
libertação costumam cultivar a mesma admiração ingênua pela modernidade.
O
"cristianismo anônimo" constituía uma ótima desculpa para, deixando
de lado Cristo, a oração, os sacramentos e a missão, se dedicar à transformação
das estruturas sociais. Com o tempo, vi que ele é insustentável por não ter
bases suficientes no Evangelho, na grande tradição e no magistério da igreja.
Quando o sr. rompeu com o pensamento de
Rahner?
Nos
anos 70, o cardeal d. Eugênio Sales retirou minha licença para lecionar
teologia na PUC do Rio. O teólogo que assessorava o cardeal, d. Karl Joseph
Romer, veio conversar comigo: "Clodovis, acho que nisso você está
equivocado. Não basta fazer o bem para ser cristão. A confissão da fé é
essencial". Ele estava certo.
Assumi
postura mais crítica e vi que, com o rahnerismo, a igreja se tornava
absolutamente irrelevante. E não só ela: o próprio Cristo. Deus não precisaria
se revelar em Jesus se quisesse simplesmente salvar o homem pela ética e pelo
compromisso social.
Bento XVI sepultou os avanços do Concílio
Vaticano II?
Quem
afirma isso acredita que o Concílio Vaticano II criou uma nova igreja e rompeu
com 2.000 anos de cristianismo. É um equívoco. O papa João XXIII foi bem claro
ao afirmar que o objetivo era, preservando a substância da fé, reapresentá-la
sob roupagens mais oportunas para o homem contemporâneo.
Bento
XVI garantiu a fidelidade ao concílio. Ao mesmo tempo, combateu tentativas de
secularizar a igreja, porque uma igreja secularizada é irrelevante para a
história e para os homens. Torna-se mais um partido, uma ONG.
Mas e a reabilitação da missa em latim? E a
tentativa de reabilitação dos tradicionalistas que rejeitaram o Vaticano II?
Não
podemos esquecer que a condição imposta aos tradicionalistas era exatamente que
aceitassem o Vaticano II. O catolicismo é, por natureza, inclusivo. Há espaço
para quem gosta de latim, para quem não gosta, para todas as tendências
políticas e sociais, desde que não se contraponham à fé da igreja.
Quem
se opõe a essa abertura manifesta um espírito anticatólico. Vários grupos
considerados progressistas caíram nesse sectarismo.
Esses
grupos não foram exceção. Bento 16 sofreu dura oposição em todo o pontificado.
A
maioria das críticas internas a ele partiu de setores da igreja que se deixaram
colonizar pelo espírito da modernidade hegemônica e que não admitem mais a
centralidade de Deus na vida. Erigem a opinião pessoal como critério último de
verdade e gostariam de decidir os artigos da fé na base do plebiscito.
Tais
críticas só expressam a penetração do secularismo moderno nos espaços
institucionais da igreja.
Como descreveria a relação de Bento XVI com a
modernidade?
É
possível identificar um certo pessimismo na sua reflexão. Ele não está só. Há
um rio de literatura sobre a crise da modernidade, que remete até mesmo a
autores como Nietzsche e Freud. O que ele tem de diferente? Propõe uma saída: a
abertura ao transcendente.
Ainda assim, há pessimismo?.
Há
algo que ele precisaria corrigir: Bento XVI leva a sério demais o secularismo
moderno. É uma tendência dos cristãos europeus. Eles esquecem que o secularismo
é uma cultura de minorias. São poderosas, hegemônicas, mas ainda assim
minorias.
A
religião é a opção de 85% da humanidade. Os ateus não passam de 2,5%. Com os
agnósticos, não chegam a 15%. Minoria culturalmente importante, sem dúvida:
domina o microfone e a caneta, a mídia e a academia. Mas está perdendo o gás.
Há um reavivamento do interesse pela espiritualidade entre os jovens.
Que outras críticas o sr. faria a Bento XVI?
Ele
preferiria resolver problemas teológicos a se debruçar sobre questões
administrativas na Cúria. E isso gerou diversos constrangimentos no seu
pontificado. Ele também não tem o carisma de um João Paulo II. De certa forma,
era o esperado em um intelectual como ele.
Não está na hora de a igreja ficar mais
próxima da realidade dos fiéis?
Bento
XVI não resolveu um problema que se arrasta desde o Concílio Vaticano II: a
necessidade de se criarem canais para a cúpula escutar e dialogar com as bases.
Os
padres nas paróquias muitas vezes ficam prensados entre a letra fria que vem da
cúpula e o cotidiano sofrido dos fiéis, que pode envolver dramas como aborto ou
divórcio. Note que não sugiro mudanças no ensinamento da igreja. Mas acho que
seria mais fácil para as pessoas viverem a doutrina católica se houvesse
processos que facilitassem esse diálogo.
Como vê o futuro da igreja?
A
modernidade não tem mais nada a dizer ao homem pós-moderno. Quais as ideologias
que movem o mundo? Marxismo? Socialismo? Liberalismo? Neoliberalismo? Todas
perderam credibilidade. Quem tem algo a dizer? As religiões e, sobretudo no
Ocidente, a Igreja Católica.
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