Manhã de domingo, igreja cheia. Muitos
homens vestem trajes formais. Mulheres levam véus sobre os cabelos. O silêncio
absoluto é quebrado por um canto gregoriano. O padre passa pelos fiéis a
caminho do altar. Sempre de costas para a audiência, dá início à missa em
inconfundível latim: In nomine Patris et Filii et
Spiritus Sancti. A resposta vem em uníssono: Introibo ad altare Dei, ad
Deum qui lætificat juventutem meam(Subirei ao altar de Deus, o
Deus que alegra minha juventude). A cena evoca imediatamente imagens medievais,
mas ocorreu no último dia 13 de julho, no Centro do Rio de Janeiro. Lá, a
antiga Sé do Brasil, atual Igreja de Nossa Senhora do Carmo,
sítio da coroação de João VI e Pedro I, é palco para uma das
muitas missas tridentinas que se espalham pelo Brasil, numa ressurreição de formas
litúrgicas antigas que atrai incontáveis jovens fiéis. O termo Juventutem,
aliás, designa um movimento de volta às tradições católicas liderado por
pessoas de 16 a 34 anos. A reportagem é de Leonardo Vieira,
publicada pelo jornal O Globo, 28-07-2014.
— Descobri a missa há uns
anos, é um tesouro. Está claro que tem algo de sagrado aqui. É possível
perceber tanto com os ouvidos quanto com os olhos — arrisca o engenheiro Felipe Alves, de
25 anos.
Origens no império romano do ocidente
A missa tridentina, ou rito
latino, foi normatizada no Concílio de Trento, em 1570, mas tem bases bem mais
antigas, que remontam ao Império Romano do Ocidente, extinto
no século V. O conservadorismo, a sobriedade e o extremo recolhimento dos fiéis
na cerimônia foram utilizados pela Igreja no século XVI como resposta às
reformas protestantes do Norte da Europa que abalaram as estruturas pontifícias.
Nela, o único idioma
utilizado é o latim, chamado pelos adeptos de “língua universal da fé”.
Enquanto nas missas comuns nos nossos tempos os católicos se ajoelham apenas
uma vez, na antiga esse número salta para quase dez, incluindo o momento de
receber a hóstia. Há intervalos para a meditação, quando o silêncio chega ao
extremo de permitir que se ouça tudo o que se passa do lado de fora da igreja.
Durante quase toda a cerimônia o padre permanece de frente para a cruz do
altar.
Foram séculos assim, até
que o Concílio
Vaticano II, na década de 1960, introduziu inúmeras mudanças, o
uso da língua local e o padre de frente para os fiéis entre elas. Mas o século
XXI vive uma intrigante retomada de tradições conservadoras na Igreja. Em 2007,
o agora papa emérito Bento XVI promulgou a carta “Summorum Pontificum”,
em que exaltava a volta às tradições e o caráter “excepcional” da missa tridentina.
Até então, párocos que quisessem rezar no estilo antigo deveriam pedir
permissão direta à Cúria, no Vaticano. Desde então, a escolha passou a caber
a cada paróquia.
Para o padre Luís Correa Lima, professor de
Teologia da PUC-Rio, o mistério por trás da missa tridentina é o que fascina.
— Tudo nela é meio
misterioso. O padre fica de costas, falando em uma língua desconhecida e
seguindo uma liturgia extremamente codificada. Mas esse rito encanta por ser
algo ancestral e imutável, por evocar a transcendência de Deus. São elementos
que fascinam o jovem — opina.
Curiosamente, a introdução
da missa moderna e a ressurreição da antiga têm a mesma preocupação: tentar
estancar a perda de fiéis da maior designação cristã. Não há números que
revelem se a volta ao passado teve algum efeito nesse sentido. Mas é fato que,
amparadas pelos jovens católicos conservadores, as missas tridentinas crescem
país afora. Em 2007, uma organização independente contabilizou 20 dessas
celebrações no território nacional. Agora, cerca de cem ocorrem com
regularidade.
— Vivemos numa sociedade
muito centrada no indivíduo, na qual se valoriza a autodeterminação e tudo é
incerto. Então surgem grupos que evocam o passado, em que tudo estava
respondido pelo religioso — analisa o historiador Sérgio Coutinho, presidente do Centro de Estudos em
História da Igreja na América Latina (CEHILA).
Ligado à ala progressista
da Igreja, Coutinho entende que os fiéis da missa tridentina
são conservadores em tudo, inclusive politicamente:
— Eles creem que o Concílio Vaticano II não deveria ter acontecido,
pois teria aberto demais a Igreja. Querem uma fuga do mundo, encontrar formas
tradicionais de se viver. É como se quisessem que o passado voltasse.
Responsável por rezar a
missa tridentina aos domingo na igreja do Centro do Rio, o padre Bruce Judice discorda.
Segundo ele, dois dos princípios pregados em sua celebração são o respeito às
diferenças e a orientação para que os fiéis não se fechem em círculos católicos
isolados.
— Sempre dizemos que este
não é o único modo de rezar. Não somos contra o Concílio Vaticano II —
esclarece o padre, de 35 anos.
— O que há, sim, é uma sede
de espiritualidade entre os jovens. Há quem procure ioga, meditação,
natureza... E há quem busque a missa tridentina.
Foi esta última a escolha
do adolescente Eduardo Salomão, de 15 anos. Ele aprendeu
latim sozinho e quer ser padre. Aos domingos, vai a uma missa tridentina e a
outra contemporânea:
— Claramente prefiro a
tridentina. Já cheguei a ser tachado de maluco. O rito contemporâneo não é para
mim. No antigo, a meditação, o silêncio e a beleza encantam.
Bárbara Soares descobriu o rito pela internet. Foi no quase
extinto Orkut que
a estudante de Letras conheceu outros jovens adeptos da tradição. Ela ficou tão
encantada com as primeiras celebrações que não parou mais de frequentar as
missas. Numa delas, conheceu seu marido. Hoje, já casada aos 20 anos, Bárbara vai
à igreja com o véu sobre os cabelos e defende a vestimenta:
— Ele mostra a dignidade da
mulher, exalta seu caráter sagrado.
Ela segue a linha de centenas
de integrantes oficiais do Juventutem no Brasil. Fundado em
2004, na Suíça, o movimento teve um primeiro encontro internacional em 2005, na
Alemanha, e, desde então, tem crescido e sido cada vez mais representado nasJornadas Mundiais da Juventude.
Ano passado, milhares deles vieram ao Rio de Janeiro. E, pela internet, muitos
se já se articulam para a próxima edição do evento católico, em 2016, na
Polônia. Em fóruns internacionais do movimento pela internet são comuns
discussões relacionadas à liturgia católica e também a assuntos ligados a
direitos civis, com muitos dos seus membros condenando uniões entre pessoas do
mesmo sexo e o direito ao aborto, por exemplo.
Ortodoxos mantêm uso de grego e árabe
Engana-se quem pensa que o
ritual tridentino é o único dentro do catolicismo que busca a retomada de
tradições ancestrais. A poucas quadras da antiga Sé carioca, na paróquia greco-melquita de
São Basílio e de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, em plena Saara,
histórico lar dos primeiros imigrantes sírios e libaneses católicos ortodoxos,
os idiomas usados em ritos conservadores são o grego e o árabe. A igreja
melquista, espremida entre prédios na rua República do Líbano, é o primeiro
templo católico oriental do Brasil, fundado em 1941. Apesar de ainda ter forte
conexão com a comunidade sírio-libanesa, a missa tem um público crescente de
jovens e de pessoas curiosas.
Lá se celebra a missa
bizantina, tradição que começou ainda no século V numa região onde onde se
estendem parte dos territórios da Turquia, de Israel e da Palestina. Assim como
no rito latino, o sacerdote reza de costas para o público. A música, a liturgia
e as vestimentas remetem à cultura medieval dos católicos orientais.
— O rito chama a atenção
dos jovens, eles se sentem bem pela beleza das orações. Hoje em dia os fieis
estão a procurar as tradições em resposta aos tempos tão conturbados em que
vivemos. Devemos voltar sempre às origens — diz o monsenhor George Khoury,
da paróquia
de São Basílio. Fonte: http://www.ihu.unisinos.br
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