"Para Bauman, a promessa de que a riqueza acumulada pelos que estão no topo chegaria aos que se encontram mais abaixo é uma grande mentira", escreve Tarso Genro, ex-governador do Rio Grande do Sul, publicada por Sul21, 09-01-2017.
Eis o artigo.
Zygmunt
Bauman concedeu recentemente entrevista ao El País (09/01), publicada
sob a designação “As redes sociais são uma armadilha”. O
título da matéria não faz justiça ao seu verdadeiro conteúdo, que refere
ao 15-M da Espanha dos “indignados”, de maio de 2011. À época, estes
movimentos, através de mecanismos de democracia direta, ainda exploravam
exclusivamente esta forma de participação, não de forma combinada, mas “contra”
as instâncias políticas tradicionais.
A
chamada “classe política” espanhola, no período, estava dividida entre os
remédios neoliberais do Partido Popular e a moderação
liberal-centrista do Partido Socialista Espanhol, que, ao fim ao cabo
-quando no poder- governava de maneira mais ou menos idêntica ao seu
tradicional adversário de direita. A maioria dos protagonista do 15-M organizou-se, politicamente, num
novo Partido, o “Podemos”, cuja fundação reordenou a
democracia espanhola, dando a ela uma nova vitalidade. Foi uma conquista das
redes: o “virtual” fez as pessoas se encontrarem no mundo “real” das ruas e
construírem, pelas suas mãos e cérebros, um novo protagonismo político, fundado
na transação de afetos e idéias, de forma direta entre as pessoas.
Entre
diversas preciosidades e formulações doutrinárias deste grande intelectual do
nosso tempo, duas me chamaram atenção pelo poderoso apelo à reflexão que
incitam, neste mundo trágico e demente que vivemos: 1. “O 15-M, de certa
forma, foi uma explosão de solidariedade, mas as explosões são potentes e
breves”. 2. “O poder se globalizou, mas as políticas são tão locais quanto
antes (…) a política tem as mãos cortadas(…) as instituições democráticas não
foram estruturadas para conduzir situações de
interdependência”. Bauman é o mesmo que, em várias oportunidades,
sustentou que a “promessa de que a riqueza acumulada pelos que estão no topo
chegaria aos que se encontram mais abaixo é uma grande mentira!”.
A perda
do sentido da identidade, num mundo cada vez mais individualista, proporcionou
que a vida coletiva em “rede” se tornasse uma forma de compensar a ausência da
comunhão real entre pessoas. O que as redes sociais geram, todavia –
adverte Bauman – é um “substituto” comunitário, não uma comunidade
verdadeiramente humana. Esta, de forma autêntica, só é construída por
sucessivos laços identitários de convívio, tanto no cotidiano como na história.
É verdadeiro que nas “redes” – ainda segundo Bauman – os indivíduos
se sentem um pouco melhor, “porque a solidão é a grande ameaça nestes tempos
individualistas”, mas nelas (redes) é possível “deletar”, tanto o contato
imediato que pede mais tolerância, como aquela interlocução que não agrada,
porque vem do “diferente”: a tolerância, porém, é a qualidade humana mais
elevada e a identidade humana verdadeira, só pode existir pelo contraste da
diferença e das suas lições.
A
contradição entre as necessidades locais e regionais e as questões políticas e
econômicas globais, estão expostas todos os dias nas guerras pelo poder sobre
as fontes de energia fóssil, na luta sem quartel pelos
derradeiros territórios agricultáveis e pelo controle das reservas
aquíferas do planeta. A crise é ascendente, porém, não por um adquirido
sentido de maldade dos seres humanos, mas porque o capital precisa radicalizar
as formas de controle destas riquezas naturais, visando a continuidade
equilibrada do funcionamento da economia dos grandes países industrializados.
Especialmente dos que devem ser reiteradamente financiados, para não sucumbir
como nação.
É o
caso dos EUA, cujo “buraco negro” do seu Tesouro explodiria se
a China – quem diria – subitamente deixasse de comprar os seus
papéis. “O insaciável apetite da América” pelo financiamento da sua dívida –
disse um filósofo – é, ao mesmo tempo que um passivo permanente, um ativo
gigantesco: a “não explosão” de quem faz a pauta militar do mundo é o que dá
sentido “comunitário” a sua liderança (manipulatória), que proporciona a
proteção contra o inimigo comum, o “diferente”, que por escassez de meios,
ainda mantém as suas reservas estratégicas de petróleo, terra e água para
serem exploradas pelos mais fortes.
As
“explosões de solidariedade” são importantes e fixam novos parâmetros para
fazer política. E “fazer política” significa criar mediações, dentro da ordem,
se o regime é democrático, e contra ela – se ele deixa de ser democrático. O
objetivo é dirigir o Estado de forma legítima para responder às
maiorias, combater a pobreza, a miséria, o crime, a insegurança, a solidão
e a insanidade, numa sociedade compartimentada e egoísta. Mas as explosões de
solidariedade na luta contra a extorsão do futuro – encomendada pelas reformas
“liberais” – são breves e impotentes, se não se transformam em organização,
programa, tática e estratégia.
É
fundamental levar em consideração que os confrontos de interesse entre classes
e entre os projetos de nação, hoje, tem duas determinações históricas que
exigem a recriação dos movimentos emancipatórios, num contexto universal muito
mais complexo do que no século passado: primeiro, a nação só é passível de ser
construída, hoje, com interdependência consciente, na qual não se abdica da
soberania, mas esta assimila a interdependência; segundo, as “redes”,
eternamente reproduzidas como aproximação virtual entre os sujeitos, só
reforçarão a solidão e o isolamento -propício para o amortecimento da
criatividade humana- caso as relações entre pessoas e grupos não transcendam
para espaço democrático de rua e para as instâncias políticas do Estado.
Um dos
limites mais graves e autoritários dos projetos socialistas revolucionários do
passado, foi o não reconhecimento – na própria construção da nova sociedade –
que ela deveria ser um abrigo de formas diversificadas, “belas e livres” de
“convivência humana”, passado o período da agressão do nazi-fascismo. “E são belas
e livres” – como diz Agnes Heller – “todas as formas as
quais a comunidade não obstaculiza, mas antes favorece o desenvolvimento
multilateral harmonioso das faculdades e dos carecimentos humanos.” Dentro da
crise e do caos é que se reconstroem as mais belas utopias e as energias para
revidar à brutalidade e à desumanidade. Chacinas e como a
de Campinas ocorrem todos os dias, em todos os lugares do planeta.
Mas a carta que a justifica e exalta é um sintoma de doença grave, tanto do
indivíduo que foi o seu autor, como da sociedade que o gerou. Fonte: http://www.ihu.unisinos.br
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