Frei Donald Buggert,
O. Carm.
O projeto
de todos os carmelitas é caminhar nas pegadas de Jesus. Mas nossa compreensão
de Jesus muda, assim como muda a situação histórica. E a mudança da situação
histórica apresenta novos desafios ao nosso caminhar nas pegadas de Jesus.
Portanto, para rearticular a espiritualidade cristocêntrica da Regra de Alberto
devemos levar em conta tanto nossa compreensão contemporânea do Jesus histórico
quanto nossa situação contemporânea.
Não nos
serve qualquer Jesus. Em nosso caminhar nas pegadas de Jesus, que Jesus
seguimos? Não é qualquer Jesus que é conciliável com o Jesus histórico e sua
prática. Jesus tem sido usado, abusado e manipulado, tornando-se um apoio
ideológico para o status quo. Ele tem sido invocado, e até recebe orações, para
manter o oprimido na opressão, os opressores no poder, os “ricos” em suas
riquezas e os que “não têm” em sua pobreza. Se Bultmann “desmitologizou” Jesus,
devemos “despacificar” Jesus, para que ele não seja conivente com os ídolos,
como a mercantilização, e para que ele não mantenha esta realidade em paz. [i]
Devemos nos
perguntar: o que teria a dizer um Jesus “despacificado” sobre a tremenda
desigualdade na distribuição e no uso dos bens da terra entre ricos e pobres,
nações ricas e pobres, sobre a escravidão, injustiça, desumanização e pilhagem
ecológica que resulta dessa distribuição desigual? O que teria a dizer o Jesus
“despacificado” sobre a opressão e a marginalização das mulheres ou de qualquer
minoria? Não aceitar Jesus e sua prática libertadora, como se ele não tivesse
nada a dizer sobre essas questões, é na verdade apresentar um Jesus celestial e
escatologizado, desprovido de significado para a história, para nossa salvação aqui e agora. É reduzir o reino de Deus
à uma realidade exclusivamente escatológica.
Qualquer seguimento de Cristo que nos
anestesie da história e de seus conflitos, é na melhor das hipóteses, uma
espiritualidade fuga mundi, que nega
a própria história encarnacional de Deus. Em Jesus, Deus assumiu para si mesmo
nossa história, precisamente para curá-la e realizá-la. Na pior das hipóteses,
tal espiritualidade anestesiadora direcionada para a “vida interior” da pessoa,
negligenciando a criação e a história, é uma gnosticização ou platonização do
cristianismo.
Um
cristianismo supostamente mágico, um vodu, que tenta manipular o divino e
escapar dos compromissos e dos esforços dolorosos, algumas vezes, “arriscando a
própria vida”, mas necessários para tornar o Reino de Deus mais uma realidade
em nosso mundo.
Caminhar
nas pegadas de Jesus significa assumir a prática de Jesus na construção do
Reino de Deus. Ainda existe uma terra de Cristo com um povo a ser resgatado.
Mas essa terra com seu povo não está limitada ao espaço geográfico de Cristo.
Jesus queria muito mais que isso. Jesus queria a inauguração do Reino de Deus
agora e na história. Um Reino de Deus que envolveria e transformaria toda criação e toda história. Um Reino
que agora mesmo, na história, começaria a vencer o Reino de Satã e todas as suas conseqüências: injustiça,
violência, guerra, opressão, dominação. Um Reino que restauraria todo o estado paradisíaco. A partir da
perspectiva da proclamação do Reino de Deus e da prática de Jesus, a terra e o
povo de Jesus significam toda a
criação e toda a história,
especialmente a dos marginalizados, das vítimas da opressão e da injustiça, os
menores dos irmãos e das irmãs.[ii]
Portanto, caminhar nas pegadas de Jesus Cristo para
reconquistar a terra é inserir-se na história com seus conflitos, assumir a
cidadania terrena e política como fizeram os primeiros eremitas do Carmelo.[iii]
O obsequium da Regra não permite
uma espiritualidade privatizada, espiritualizada, escatologizada. Ele não pode
separar-se da polis. Tanto o Jesus
quanto o discipulado da teologia e da espiritualidade clássicas devem ser
“secularizados”, ou seja, serem relevantes ao saeculum, o mundo e sua história. Os carmelitas também devem ficar
atentos à sabedoria da décima primeira tese de Marx contra Feuerbach: “Os
filósofos apenas interpretaram o mundo de diversas formas. A questão, no
entanto, é transformá-lo”.[iv]
Caminhar
nas pegadas de Jesus exige entrar num combate espiritual com o leão rugidor do
mercado. No que poderia consistir esse combate espiritual? Proponho três
elementos: os votos, o silêncio-solidão-oração e a comunidade.
A pobreza, a castidade e a
obediência são em si posturas contraculturais. Elas se opõem ao modo de
produção, pois seu propósito é a humanização e a liberdade. Liberdade frente
aos poderes que nos levam aos valores da produção, da dominação e da posse, e
liberdade para fortalecer os outros como pessoas. Da mesma maneira, existe uma
economia nos votos. Mas eles não favorecem muito o crescimento financeiro.[v]
Existe
também uma economia no silêncio, na solidão e na oração. Eles também são
financeiramente sem valor e, por isso, tornam-se uma denúncia profética do modo
de produção.[vi] O silêncio e a solidão estão cheios de
riscos, pois revelam nossas necessidades e nossa pobreza interior, que são
fortemente negadas pelo comercialismo e materialismo do modo de produção. O
silêncio e a solidão são irremediavelmente inegociáveis.[vii] A oração é um ato de interiorização que exige
que nos libertemos dos padrões de comportamento normativos no modo de produção
da sociedade. A oração significa estar presente diante de Deus e, por isso, a
nossa verdadeira identidade como pessoas. A oração é um ataque contra a fraude
dos ridículos papéis exigidos pelo modo de produção. É uma centralização no
“ser”, contrário ao “ter” do modo de produção. A oração é uma
anti-comercialização de nossas vidas e uma reapropriação de nossa
personalidade.[viii]
O silêncio,
a solidão e a oração também exercem outro papel em nossa batalha espiritual.
Esses três valores tipicamente desérticos do Carmelo nos tornam atentos à
gratuidade do amor de Deus em nossas vidas, nos dispõem a reconhecer que Deus
está presente em todas as coisas, purificam nosso relacionamento com os outros
da tendência materialista em impor uma vontade alienada a eles, e
possibilitando assim um encontro real e pleno com o próximo.[ix] O
silêncio, a solidão e a oração são as “substâncias” que geram profetas
místicos. Por “experimentar” a presença divina, o profeta (ele/ela) também
pode experimentar a ausência do divino na história, no modo de produção. É essa
consciência da presença divina que levou o profeta a denunciar o velho, o reino
de Satã, e a anunciar o novo, o Reino de Deus. O silêncio, a solidão e a oração são a escola dos profetas de Elias.[x]
A
comunidade também é uma forma de contracultura no combate espiritual. Os
primeiros eremitas do Carmelo contextualizaram seu caminhar nos passos de Jesus
Cristo abraçando a visão ideal da comunidade de Jerusalém. A fórmula de vida de
Alberto descreve esta visão comunitária em termos de uma partilha de bens e de
vida, um estilo de vida igualitário, discernimento comunitário-dialogal e um
respeito pelo indivíduo. Os eremitas dentro da própria Regra logo foram
chamados de “irmãos”, chamados a trilhar uma forma participativa da vida
comunitária. Esta vida comunitária é em si um protesto alternativo e profético
contra o modo de produção, que materializa a pessoa através de relacionamentos
dominantes e desumanizadores, com sua falta de zelo e de respeito, sua
escravização da liberdade e sua idolatria da competição, do empreendimento e do
controle.[xi]
Por sua vez, tal vida comunitária testemunha os valores do modo interpessoal, o
valor intrínseco das pessoas: a liberdade, o desprendimento, a generosidade, a
justiça, a paz, o perdão, a cura, a compaixão, o fortalecimento dos menores.
A terra de
Cristo ainda deve ser reconquistada. Todas as coisas ainda devem se sujeitar a
ele para que seu Pai possa reinar plenamente e ser tudo em todos. Como nos dias de Alberto e dos primeiros
eremitas do Carmelo, a terra será reconquistada não por armas e forças, mas
pelo caminhar nas pegadas de Jesus Cristo. Esse obsequium Jesu Christi envolve uma batalha espiritual que, como
aconteceu com o próprio Jesus, insere a pessoa na história num combate contra o
leão rugidor. Caminhar nas pegadas de Jesus Cristo hoje é ser chamado a uma
vida comunitária da resistência contra-cultural, enraizada no silêncio, na
solidão e na oração, restabelecendo a prática profética de Jesus anunciando o
Reino de Deus na solidariedade com todos. Especialmente com os pecadores, os
proscritos e a ralé de nossos dias.
[i] Sobrino, Jesus
in Latin America, p. 59. Sobre as imagens e invocações ideológicas ou
desumanizadoras de Jesus, ver José Miguez Bonino, ed., Faces of Jesus: Latin American Christologies, trad. Robert Barr
(Maryknoll, New York: Orbis Press, 1977).
[ii] É este impulso para a universalização,
enraizado no Reino de Deus proclamado e decretado pelo próprio Jesus, que
define as Cristologias de inspiração sapienciais, universalistas e cósmicas que
encontramos no Cristo apresentado pelos escritos posteriores do Novo
Testamento, tais como Colossenses, Efésios e o Evangelho de João. Se Jesus deve
ser o “Senhor”, então esse domínio deve ser tão amplo quanto o de Yahweh, cujo
nome ele partilha agora. Por isso, ele deve abraçar toda a criação e a
história. Sobre essa questão
ver Reginald Fuller, The Foundations of
New Testament Christology (New York, New York: Charles Scribner’s Sons,
1965), pp. 62-85; e. Schillebeeckx, Christ:
The Experience of Jesus as Lord, trad. John Bowden (New York, New York:
Seabury Press, 1980) pp. 179-217; James D. G. Dunn, Christology in the Making (Philadelphia PA: Westminster Press,
1980), pp. 163-250.
[iii]
Fitzgerald, “How To Read the Rule: An Interpretation”, p. 59.
[iv]
Ver “Theses on Feuerbach” in Robert C. Tucker, ed. The Marx-Engels Reader (New York: W. W. Norton and Company, 1978),
p. 145.
[v]
Kavanaugh, Following Christ,
pp. 48, 137-138.
[vi]
Ibid., p. 48.
[vii] Ibid., p. 121.
[viii] Ibid., p. 121-122.
[ix] Gutiérrez, Beber no Próprio Poço, p. 99-102.
[x] Sobre “profetas místicos”, ver minha
“Liberation Theology: Praxis and Contemplation”, Carmelus 34 (1989), p. 55. Sobre a importância da espiritualidade
do deserto do Carmelo para a ação de libertação profética, ver Segundo Galilea,
“The Future of Our Past”, pp. 25-43.
[xi]
Ver Fitzgerald, “How To Read the Rule: An Interpretation”, pp. 61-62.
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