Lira Neto, jornalista
"Resta saber se a fé visceral e
insubmissa de seus verdadeiros devotos se deixará cooptar pela assepsia de um
perdão oficial" escreve Lira Neto, jornalista e autor de Padre
Cícero: poder, fé e guerra no sertão (Companhia das Letras), que
também escreveu a biografia de Getúlio Vargas, em artigo publicado pelo
jornal O Estado de S. Paulo, 20-12-2015.
Eis o artigo.
A cena não poderia ser mais significativa: no
último domingo, 13 de dezembro, uma pintura a óleo retratando o padre Cícero Romão Batista, em moldura
dourada, adentrou a catedral de Nossa Senhora da Penha, na cidade cearense
do Crato. A imagem do sacerdote, punido como rebelde em 1898 pelo Santo
Ofício, foi conduzida até próximo ao altar principal, por um grupo de seis
sacerdotes católicos paramentados.
No púlpito, ao microfone, falando para um templo
lotado, o bispo D. Fernando Panico – italiano
designado peloVaticano com a missão expressa de pavimentar o caminho para
a reabilitação de Padre Cícero – observou: “Ele entrará como romeiro;
seu lugar não será ainda o altar, mas ele ficará no meio do povo, invocando e
cantando conosco a misericórdia do Pai”.
Ouviu-se o clamor dos aplausos. Muitos ali
presentes, de olhos marejados, esticaram o braço para tocar a imagem ou,
ajoelhados, fizeram o sinal da cruz. Enquanto isso, fogos de artifício
estouraram lá fora. “Viva o Padim Ciço!”, exclamou o bispo. “Viva!”,
respondeu o coro de centenas de vozes.
Para os cerca de 2,5 milhões de romeiros que todos
os anos acorrem à cidade de Juazeiro do Norte – a chamadaMeca
Nordestina –, o episódio representa a correção de uma injustiça histórica.
Até então, a imagem de Padre Cíceroestava banida dos templos católicos.
Acusado de professar falsos milagres, classificado
como um embusteiro incentivador de fanatismos, Cícero foi alvo de um
inquérito eclesiástico que o levou a se defender pessoalmente perante o
tribunal do Santo Ofício, em Roma. Confrontado pelos inquisidores,
protestou inocência. Foi, porém, condenado.
Ficou proibido de rezar missas e de ministrar
sacramentos. Viu-se obrigado a manter eterno silêncio sobre o maior de todos os
presumidos milagres de que foi protagonista: a transformação da hóstia em
sangue, quando dada em comunhão a uma beata, Maria de Araújo, mulher simples
do povo, negra, pobre e analfabeta. Uma mística que dizia falar diretamente com
anjos, santos, a Virgem, Jesus e com o próprio Deus, sem a mediação das
instituições clericais.
As autoridades religiosas da época não aceitaram a
tese de que um milagre eucarístico – como tantos outros chancelados pelo Vaticano ao
redor do mundo e particularmente na Europa – pudesse ter ocorrido no
interior doCeará. “Jesus Cristo não iria deixar os campos europeus para fazer
milagres nos sertões do Brasil”, teria dito o padre francês Pierre-Auguste
Chevalier, reitor do seminário da Prainha, em Fortaleza, onde Cícero foi
ordenado.
Uma comissão formada por um teólogo e um doutor em
direito canônico ficou encarregada de desmascarar a suposta farsa. Após um mês
de trabalho, os dois religiosos escreveram um relatório detalhado, com mais de
quatrocentas páginas, no qual afirmavam que, para seu espanto, teriam
testemunhado a transmutação da hóstia em sangue.
Ambos foram destituídos dos respectivos cargos e o
processo seguiu sob o comando de um cura de aldeia, que disse não ter
presenciado nada de sobrenatural durante uma nova investigação, de apenas três
dias.
Padre Cícero, apesar de castigado, jamais
largou a batina. Continuou a fazer seus sermões da janela de casa, reunindo
multidões, pregando a bem-aventurança do binômio fé-e-trabalho, incentivando a
criação de pequenas manufaturas que deram origem ao desenvolvimento do lugar.
De conselheiro religioso, converteu-se em condutor
político. Dono de uma popularidade sem precedentes na história nordestina,
estabeleceu alianças estratégicas com as elites agrárias e se tornou um líder
respeitado tanto pelos sertanejos mais humildes quanto pelos temidos e
poderosos coronéis.
Trabalhou pela emancipação de Juazeiro e
foi nomeado seu primeiro prefeito. Articulado com o governo federal, abençoou
os jagunços, agricultores, beatos e cangaceiros que pegaram em armas para depor
as autoridades regionais, numa luta que ao final o levaria ao cargo de
vice-governador do Ceará.
A pequena Juazeiro, que antes se resumia a um
povoado de pouco mais de trinta casas, cresceu em torno das romarias e do nome
de Padre Cícero. A cidade se transformou em um pujante centro comercial
varejista e hoje abriga um vigoroso polo universitário.
Em 2001, o cardeal Joseph Ratzinger, então
prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé – desde 1967 o nome
pelo qual passou a ser designado o Santo Ofício –, enviou uma carta
reservada à Nunciatura Apostólica do Brasil. O futuro Bento XVI sugeria
a reabertura dos arquivos históricos sobre Padre Cícero. Como pano de
fundo, a contínua sangria de fiéis no seio da Igreja Católica, proporcional ao
avanço das igrejas neopentecostais no Brasil. “Padre Cícero é um ANTIVÍRUS contra
os evangélicos”, chegou a dizer D. Fernando Panico numa entrevista ao New
York Times.
A entrada da imagem de Padre Cícero na
catedral do Crato deve ser entendida como um passo decisivo para sua
completa reabilitação – e, quem sabe, para sua posterior beatificação e
canonização. Resta saber se o “perdão” oficial tem algum significado para os
verdadeiros devotos de Padre Cícero. Uma fé visceral, que sempre se
caracterizou pelo seu caráter insubmisso, se deixará cooptar pela assepsia do
rito oficial? Fonte: http://www.ihu.unisinos.br
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