O padre e teólogo
polonês, Krzysztof Charamsa, acaba de protagonizar uma das “saídas do armário”
mais clamorosas da história do Vaticano. Morando em Barcelona, faz, nesta
entrevista exclusiva, uma duríssima acusação contra a Congregação para a
Doutrina da Fé e seu prefeito, o cardeal Müller, a quem acusa ser homofóbico e
de tentar “sabotar o pontificado de Francisco”. A entrevista é de José Manuel
Vidal e publicada por Religión Digital, 23-10-2015. A tradução é de André
Langer.
Eis a entrevista.
Você foi feliz durante os seus anos de sacerdócio?
Sim, eu sempre fui um
padre feliz. Sinto-me feliz servindo as pessoas, ouvindo e aconselhando as
pessoas. Estou feliz quando comunico a palavra e a graça de Deus. Mas, ao mesmo
tempo, não me sentia feliz pela negação imposta pela Igreja à minha natural orientação
sexual. Estes dois sentimentos, no sacerdócio, entravam em conflito. Ao final,
prevaleceu a infelicidade causada pela homofobia da Igreja. Compreendi que para
ser um padre feliz, devo dizer à minha Igreja que está paralisada pela
homofobia, e isto não faz ninguém feliz.
Você é a favor do celibato opcional na Igreja católica? Por
quê?
Sim, à luz dos meus
estudos sobre o celibato, hoje estou convencido de que a única disciplina que
se poderia aceitar é a disciplina do celibato opcional, assim como a
encontramos nas Igrejas católicas orientais, onde os candidatos ao sacerdócio
podem realmente decidir se querem viver como celibatários ou como casados. Há,
no entanto, outro problema. Penso que hoje em dia deve-se também discutir e
rever o valor humano do celibato. O celibato obrigatório, imposto na Igreja
latina, sem possibilidade de decidir, é, sem dúvida, uma prática desumana.
Devemos confrontar a disciplina do celibato com o estado das ciências modernas
sobre o homem e com a experiência dramática de muitos padres. A Igreja, muitas
vezes, esconde uma dupla vida em sua corporação do clero.
Você foi chamado de “traidor” por ter saído do armário e
ter rompido seu compromisso celibatário?
Seria um traidor se
continuasse no armário. Só assim seria um traidor de Deus e da humanidade.
Seria um mentiroso. Eu não traí ninguém. Eu me libertei da paranoia homofóbica
da Igreja, que é irracional e absurda, e incapaz de refletir, porque está cheia
de um adoutrinamento ideológico. Pessoalmente, vejo que quem trai é a Igreja,
como comunidade de fiéis e como hierarquia, porque não é capaz de rever uma
posição que já não pode continuar defendendo. Esta traição é muito clara na
Congregação para a Doutrina da Fé e no Vaticano em geral.
Traição é também a
dupla vida de uma parte do clero. A dupla vida para mim não significa apenas
ter um cônjuge, homem ou mulher, que é uma realidade muito saudável e
recomendável para um padre. Dupla vida é também masturbar-se regularmente ou
ser dependente da masturbação, como são muitos padres, e ao mesmo tempo lutar
contra a masturbação, que faz parte de uma vida sexual a dois saudável.
A Igreja prega misericórdia, mas segue perseguindo os
homossexuais?
Sim, há uma
verdadeira perseguição por parte da Igreja católica tanto das pessoas como da
comunidade LGBTI em geral. É a perseguição das minorias sexuais que não
pertencem e não podem pertencer à maioria heterossexual. Trata-se de um projeto
ideológico da Igreja. Minha Igreja permite-se afirmar que deve lutar contra os
homossexuais assim como lutava contra o nazismo. Comparam-nos com os nazistas,
os inimigos da humanidade. Esta afirmação saiu da boca do cardeal africano
Sarah bem no meio do Sínodo, que em vez disso deveria pensar com misericórdia
sobre as famílias. A Igreja está obcecada pela homossexualidade, assim como com
a sexualidade humana em geral.
Infelizmente, neste
momento da Igreja não há pessoas capazes de abrir uma discussão séria, livre de
qualquer ideologia ditatorial. O nível intelectual e espiritual dos pastores em
geral não é muito elevado. Assim, faltam interlocutores com os quais se poderia
confrontar na Igreja. Esta é a minha experiência na Congregação para a Doutrina
da Fé: um adoutrinamento frio e cego, um legalismo automático, cheio de
farisaísmo insensível. Com quem se poderia discutir na Igreja as questões
humanas se a Igreja permite as palavras de Sarah? Ele deveria ser denunciado
por difamação de um grupo social. A Congregação para a Doutrina da Fé pensa
como Sarah. Estão obcecados pela homossexualidade.
Há alguns dias o cardeal Kasper dizia que “nasce-se
homossexual”. Era a primeira vez que eu ouvi isso de algum hierarca da Igreja.
E você?
Sim, é verdade, creio
que pela primeira vez. O cardeal Kasper é uma das poucas pessoas que pensa na
Igreja. Não compartilho sua posição sobre o juízo moral em relação aos atos
homossexuais realizados por pessoas homossexuais seguindo sua própria natureza.
Parece-me que ele, por um lado, defende que se nasce homossexual, mas ao mesmo
tempo exclui estas pessoas da possibilidade de amar, possibilidade reservada
apenas às criaturas heterossexuais. É contraditório. Em outras palavras, se é
verdade que “se nasce homossexual”, como ele disse, então os católicos têm um
problema com a questão homossexual. Devem refletir novamente sobre todo o tema
da orientação sexual e, na sequência, rever a doutrina moral à luz desta
reflexão.
Não obstante esta
frase, parece-me que o cardeal Kasper segue a infeliz teoria da
complementaridade homem-mulher. Trata-se de uma verdadeira construção mental
católica, que já foi provada como teoricamente frágil, para não dizer falsa.
Infelizmente, o termo “complementaridade” converteu-se em um slogan com o qual
a Igreja quer eliminar a discussão sobre pessoas homossexuais como criaturas de
Deus em vista do amor.
Assim, a Igreja
promove também uma falsa imagem homofóbica das pessoas homossexuais, como
naturalmente incapazes de amar. Dessa maneira, promove também o ódio na
mentalidade das pessoas contra as pessoas LGBTI, as quais são apresentadas como
anormais. Trata-se de uma posição ideológica de uma Igreja que tem medo de
pensar. Estou seguro de que isto vai passar e no futuro a Igreja pedirá perdão
por este atraso. Este tipo de erro se repete continuamente na história da
Igreja.
Voltando ao cardeal
Kasper: ele é um cristão que pensa, com quem se pode discutir. Há também outros
como ele: como o cardeal Schönborn, o cardeal Marx, dom Forte ou dom Bonnyt,
para citar alguns, e sem esquecer o Papa Francisco. São homens de Deus e da Igreja,
sensíveis, fiéis, capazes de conhecer a humanidade e de dialogar com ela. Mas a
maioria está obcecada, incapaz de pensar e de amar, como o cardeal Sarah. A
estigmatização promovida pela maioria é uma arma.
A espiritualidade e a sensibilidade atraem os gays para o
altar? Há mais homossexuais na Igreja do que em outras instâncias sociais?
Pessoalmente, estou
seguro de que sim. Muitas vezes, no passado, ser padre para um homossexual era
a maneira de esconder sua homossexualidade e realizar-se socialmente. Hoje,
provavelmente, essa razão funciona apenas em sociedades homofóbicas e
retrógradas. Imagino que na minha pátria, a Polônia, ainda é assim. Penso que
hoje em dia é muito mais frequente que um gay, com sua sensibilidade e com sua
abertura ao transcendente e ao divino, queira ser padre.
E na cúria, há muitos gays? É verdade que existe um lobby
gay vaticano do qual se costuma falar?
Neste campo também
posso falar apenas da minha experiência. Não temos estudos sobre a presença de
pessoas homossexuais no clero, porque é um tabu, um tema sobre o qual não se
deve falar. Na cúria há muitos gays. Muitos deles são bons padres, se não são
homofóbicos, se não pensam apenas em sua carreira, se não se preocupam apenas
com o dinheiro e o poder. O problema aparece quando os gays são homofóbicos
internalizados. No clero católico há muitos homossexuais que, reprimidos por
sua própria orientação, odeiam que é gay como eles.
Outro tema é o lobby
gay, que eu não conheci. Li algo sobre isso na Itália, mas não tive nenhuma
experiência. Pode ser que exista este lobby, como existe o lobby italiano ou
polonês no Vaticano. O Vaticano, o coração da Igreja, é uma mistura de lutas
pelo poder, pela política e pelo dinheiro. Penso também que o Vaticano é um
lobby em nível italiano e internacional que impõe coisas que jamais foram
estudadas seriamente.
A Doutrina da Fé é um dicastério especialmente homofóbico?
E seu chefe máximo no dicastério, o cardeal Müller?
Sim, a Congregação
para a Doutrina da Fé é o coração de uma homofobia paranoica e irracional. Nela
não há possibilidade de conhecimento nem de diálogo. Funciona por estereótipos.
Eu tinha a impressão de que nós, na Congregação, não promovemos a fé em Deus,
não nos ocupamos de cristologia ou mariologia; apenas lutamos contra os gays e
outras minorias sexuais. É uma obsessão. Esta é a nossa verdadeira fé: a
paranoia anti-gay. Nada mais. É o nosso tema preferido. Há reuniões em que de
cada três casos que tratamos, dois são contra gays. Inventamos para nós um
inimigo imaginário e lutamos com todas as nossas forças contra ele. O chamamos
de “nossa guerra contra o gender”. Ali não se pode discutir, pensamos que esse
gender só promove mudanças de sexo. Esse é o nível de paranoia que reina na
Congregação.
O cardeal Müller
promoveu toda esta ignorância, este extremismo, esta obsessão entre os
oficiais, sem nenhum tipo de raciocínio. Em vez de promover estudos, a
Congregação é a agência política de sabotagem do pontificado do Papa Francisco
e sua discussão sinodal. É a agência que luta contra o gender, termo que não
sabe definir. O que realmente importa é usar a palavra gender de uma forma que
assuste as pessoas, não importa que não se tenha lido um único livro sobre
estudos de gênero. A homofobia e a misoginia (a verdadeira feminofobia, um
complexo ou ódio contra a mulher) obsessivas são um drama para esta
Congregação, cujos membros não todos são heterossexuais. Como em todas as
partes, há homossexuais. A realidade é que a Congregação odeia os gays, mesmo
havendo dentro dela pessoas que se sabe são homossexuais.
A Congregação para a Doutrina da Fé é uma das principais
peças de resistência na cúria à primavera de Francisco?
Sem dúvida alguma. A
Congregação vive seu período mais obscuro. O que mais importa é manter oculto o
nosso tabu: a homossexualidade e a sexualidade em geral. Com a primavera de
Francisco, a Congregação tem um novo inimigo. Ao lado dos gays, há o Papa
Francisco. Junto com a homofobia aparece uma “Francisco-fobia”. O desprezo pelo
Papa na Congregação é muito grande. Pelas coisas que eu ouvi sobre o Papa
Francisco na Congregação, esta deveria ser denunciada por ofender o primado de
Pedro. No passado, nós destruímos carreiras de teólogos que refletiam com
respeito e inteligência sobre novas formas de exercício do primado. Agora a
Congregação é contra o Papa e seu primado de uma maneira irracional.
Varias pessoas que
trabalham na Congregação são simplesmente fundamentalistas e seu nível
intelectual não é tão elevado quanto sua presunção de ser “salvadores deste
mundo delinquente”. Dentro dela não há nenhuma possibilidade de discussão.
Pessoalmente, não tenho nenhuma dúvida de que o prefeito da Congregação, de uma
forma digna e com honra, deveria renunciar após a minha coming out. Para salvar
a situação, a Congregação deveria ser fechada pelo Papa para começar sua
renovação quanto aos métodos de promoção da fé na Igreja. Atualmente, segue
sendo a Inquisição. Está vazia de argumentos racionais e cheia de emoções
paranoicas, como aquelas expressadas abertamente pelo cardeal Sarah.
Por que não falou com o Papa antes de anunciar publicamente
sua situação?
Falei com todas as
pessoas com as quais se podia falar. Falei com todas aquelas que poderiam
entender a situação desumana de hipocrisia e falsidade da Igreja de Roma, que
não são muitas. A situação atual é um escândalo institucionalizado. Mais que
anunciar publicamente a minha situação, anunciei a situação da Igreja na qual
vivi. Isto é muito diferente. Graças a Deus já não é mais o meu problema.
Libertei-me do escândalo desta Igreja que anunciei publicamente. Queria ajudar
para que a Igreja despertasse, oferecendo o testemunho da minha experiência no
Vaticano. Alguém deveria dizê-lo claramente.
Não lhe parece que o Vaticano reagiu rápida e energicamente
com você, ao passo que não faz o mesmo com os padres pederastas?
A reação foi
automática. O automatismo legalista e formalista é a alma da Igreja católica
diante daquele que lhe diz a verdade, apesar de que o Papa Francisco
continuamente fale contra os formalismos legalistas.
É verdade também que
muitos casos de padres pedófilos foram e são tratados de um modo diferente, não
tão energicamente. A pedofilia é uma vergonha do clero católico. Está relacionada
com a imaturidade sexual de seus membros. Não é influenciada pelo mundo, como
afirma obsessivamente a Igreja. É o resultado de uma obsessão provocada por uma
sexualidade reprimida, não aceita, rechaçada.
Também é verdade que
em vários níveis da Igreja a pedofilia continua sendo protegida para salvar sua
imagem e não indenizar pelos danos causados. Vou lhe dar um exemplo. No final
do verão passado, na prisão do Vaticano morreu o núncio polonês, o arcebispo
Wesolowski, julgado pela Congregação como pedófilo. Este homem teve um enterro
que durou 10 dias, entre o Vaticano e a Polônia. Dez dias de enterro de um
prisioneiro que já foi julgado por um tribunal eclesiástico por abusos de
pedofilia. Este enterro começou com uma missa celebrada pelos colaboradores
mais próximos do Papa e terminou ao final de 10 dias na Polônia, com uma
leitura de uma carta em que se dizia que as acusações de sua pedofilia eram
invenções da máfia da República Dominicana. O Vaticano permitiu todo esse
espetáculo, em vez de pensar em como indenizar imediatamente as vítimas desse
bispo pederasta. Vendo tudo isso, pode-se chegar à conclusão de que existe um
lobby pedófilo no Vaticano. Sim, muitos padres e bispos pederastas têm um
tratamento especial e muitos continuam livres de qualquer pena.
A esta luz, a reação
do Vaticano a um padre gay que diz a verdade é um automatismo vergonhoso. Mas
esta é a lógica da Igreja: tudo deve permanecer escondido “pelo bem da Igreja”.
Enquanto estiver escondido, não acontece nada. Para a Igreja, “o demônio” é o
padre que diz a verdade, aquele que sai à luz, que sai do armário.
Vai continuar sendo padre, vai pedir a secularização ou vão
lhe impor essa condição?
Sou e me sinto padre.
Hoje sou um padre melhor que antes. Pelo contrário, sou eu que vou pedir à
Igreja para que abra os olhos.
Pensou em escrever um livro sobre suas vivências no
Vaticano?
Sim, estou convencido
de que é meu dever explicar mais amplamente a minha experiência na Igreja, e o
farei pelo bem da própria Igreja, que deve converter-se e pedir desculpas por
seus escândalos institucionais, por seus atrasos, por sua paranoia irracional
da homofobia. Todo aquele que vê isso e o experimenta tem o dever de despertar
a Igreja, o que já ultrapassou qualquer limite suportável.
Se o Papa pedisse pessoalmente, deixaria seu parceiro e
voltaria ao Vaticano?
Não, não deixaria meu
parceiro, porque o amo e porque não há razões doutrinais para fazê-lo. Ter um
parceiro, seja homem ou mulher, para um padre não vai contra a sua fé, não vai
contra a doutrina da nossa fé. Pelo contrário, é a Igreja e o Papa que deveriam
começar a refletir seriamente sobre a desumana disciplina do celibato
obrigatório, e sua obsessão pela homossexualidade e a sexualidade em geral.
Voltar ao Vaticano?
Não, não voltaria. Deveria ser um masoquista, uma pessoa que busca o sofrimento
e a ofensa de sua própria identidade. Eu não sou masoquista. O Vaticano é um
dos lugares menos santos que conheci na minha vida. Eu quero ser feliz, quero
ser santo, o que significa ser feliz e viver à luz da vontade de Deus e da
dignidade humana. No Vaticano, a maior parte das pessoas não é feliz. É um
lugar que necessita de uma conversão espiritual e mental. Necessita do ar de
Deus, ar que ali falta.
Fonte: http://www.ihu.unisinos.br
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