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segunda-feira, 26 de outubro de 2015

“No clero católico há muitos homossexuais reprimidos que odeiam quem é gays como eles”. Entrevista com Krzysztof Charamsa

O padre e teólogo polonês, Krzysztof Charamsa, acaba de protagonizar uma das “saídas do armário” mais clamorosas da história do Vaticano. Morando em Barcelona, faz, nesta entrevista exclusiva, uma duríssima acusação contra a Congregação para a Doutrina da Fé e seu prefeito, o cardeal Müller, a quem acusa ser homofóbico e de tentar “sabotar o pontificado de Francisco”. A entrevista é de José Manuel Vidal e publicada por Religión Digital, 23-10-2015. A tradução é de André Langer.

Eis a entrevista.
Você foi feliz durante os seus anos de sacerdócio?
Sim, eu sempre fui um padre feliz. Sinto-me feliz servindo as pessoas, ouvindo e aconselhando as pessoas. Estou feliz quando comunico a palavra e a graça de Deus. Mas, ao mesmo tempo, não me sentia feliz pela negação imposta pela Igreja à minha natural orientação sexual. Estes dois sentimentos, no sacerdócio, entravam em conflito. Ao final, prevaleceu a infelicidade causada pela homofobia da Igreja. Compreendi que para ser um padre feliz, devo dizer à minha Igreja que está paralisada pela homofobia, e isto não faz ninguém feliz.

Você é a favor do celibato opcional na Igreja católica? Por quê?
Sim, à luz dos meus estudos sobre o celibato, hoje estou convencido de que a única disciplina que se poderia aceitar é a disciplina do celibato opcional, assim como a encontramos nas Igrejas católicas orientais, onde os candidatos ao sacerdócio podem realmente decidir se querem viver como celibatários ou como casados. Há, no entanto, outro problema. Penso que hoje em dia deve-se também discutir e rever o valor humano do celibato. O celibato obrigatório, imposto na Igreja latina, sem possibilidade de decidir, é, sem dúvida, uma prática desumana. Devemos confrontar a disciplina do celibato com o estado das ciências modernas sobre o homem e com a experiência dramática de muitos padres. A Igreja, muitas vezes, esconde uma dupla vida em sua corporação do clero.

Você foi chamado de “traidor” por ter saído do armário e ter rompido seu compromisso celibatário?
Seria um traidor se continuasse no armário. Só assim seria um traidor de Deus e da humanidade. Seria um mentiroso. Eu não traí ninguém. Eu me libertei da paranoia homofóbica da Igreja, que é irracional e absurda, e incapaz de refletir, porque está cheia de um adoutrinamento ideológico. Pessoalmente, vejo que quem trai é a Igreja, como comunidade de fiéis e como hierarquia, porque não é capaz de rever uma posição que já não pode continuar defendendo. Esta traição é muito clara na Congregação para a Doutrina da Fé e no Vaticano em geral.
Traição é também a dupla vida de uma parte do clero. A dupla vida para mim não significa apenas ter um cônjuge, homem ou mulher, que é uma realidade muito saudável e recomendável para um padre. Dupla vida é também masturbar-se regularmente ou ser dependente da masturbação, como são muitos padres, e ao mesmo tempo lutar contra a masturbação, que faz parte de uma vida sexual a dois saudável.

A Igreja prega misericórdia, mas segue perseguindo os homossexuais?
Sim, há uma verdadeira perseguição por parte da Igreja católica tanto das pessoas como da comunidade LGBTI em geral. É a perseguição das minorias sexuais que não pertencem e não podem pertencer à maioria heterossexual. Trata-se de um projeto ideológico da Igreja. Minha Igreja permite-se afirmar que deve lutar contra os homossexuais assim como lutava contra o nazismo. Comparam-nos com os nazistas, os inimigos da humanidade. Esta afirmação saiu da boca do cardeal africano Sarah bem no meio do Sínodo, que em vez disso deveria pensar com misericórdia sobre as famílias. A Igreja está obcecada pela homossexualidade, assim como com a sexualidade humana em geral.
Infelizmente, neste momento da Igreja não há pessoas capazes de abrir uma discussão séria, livre de qualquer ideologia ditatorial. O nível intelectual e espiritual dos pastores em geral não é muito elevado. Assim, faltam interlocutores com os quais se poderia confrontar na Igreja. Esta é a minha experiência na Congregação para a Doutrina da Fé: um adoutrinamento frio e cego, um legalismo automático, cheio de farisaísmo insensível. Com quem se poderia discutir na Igreja as questões humanas se a Igreja permite as palavras de Sarah? Ele deveria ser denunciado por difamação de um grupo social. A Congregação para a Doutrina da Fé pensa como Sarah. Estão obcecados pela homossexualidade.

Há alguns dias o cardeal Kasper dizia que “nasce-se homossexual”. Era a primeira vez que eu ouvi isso de algum hierarca da Igreja. E você?
Sim, é verdade, creio que pela primeira vez. O cardeal Kasper é uma das poucas pessoas que pensa na Igreja. Não compartilho sua posição sobre o juízo moral em relação aos atos homossexuais realizados por pessoas homossexuais seguindo sua própria natureza. Parece-me que ele, por um lado, defende que se nasce homossexual, mas ao mesmo tempo exclui estas pessoas da possibilidade de amar, possibilidade reservada apenas às criaturas heterossexuais. É contraditório. Em outras palavras, se é verdade que “se nasce homossexual”, como ele disse, então os católicos têm um problema com a questão homossexual. Devem refletir novamente sobre todo o tema da orientação sexual e, na sequência, rever a doutrina moral à luz desta reflexão.
Não obstante esta frase, parece-me que o cardeal Kasper segue a infeliz teoria da complementaridade homem-mulher. Trata-se de uma verdadeira construção mental católica, que já foi provada como teoricamente frágil, para não dizer falsa. Infelizmente, o termo “complementaridade” converteu-se em um slogan com o qual a Igreja quer eliminar a discussão sobre pessoas homossexuais como criaturas de Deus em vista do amor.
Assim, a Igreja promove também uma falsa imagem homofóbica das pessoas homossexuais, como naturalmente incapazes de amar. Dessa maneira, promove também o ódio na mentalidade das pessoas contra as pessoas LGBTI, as quais são apresentadas como anormais. Trata-se de uma posição ideológica de uma Igreja que tem medo de pensar. Estou seguro de que isto vai passar e no futuro a Igreja pedirá perdão por este atraso. Este tipo de erro se repete continuamente na história da Igreja.
Voltando ao cardeal Kasper: ele é um cristão que pensa, com quem se pode discutir. Há também outros como ele: como o cardeal Schönborn, o cardeal Marx, dom Forte ou dom Bonnyt, para citar alguns, e sem esquecer o Papa Francisco. São homens de Deus e da Igreja, sensíveis, fiéis, capazes de conhecer a humanidade e de dialogar com ela. Mas a maioria está obcecada, incapaz de pensar e de amar, como o cardeal Sarah. A estigmatização promovida pela maioria é uma arma.

A espiritualidade e a sensibilidade atraem os gays para o altar? Há mais homossexuais na Igreja do que em outras instâncias sociais?
Pessoalmente, estou seguro de que sim. Muitas vezes, no passado, ser padre para um homossexual era a maneira de esconder sua homossexualidade e realizar-se socialmente. Hoje, provavelmente, essa razão funciona apenas em sociedades homofóbicas e retrógradas. Imagino que na minha pátria, a Polônia, ainda é assim. Penso que hoje em dia é muito mais frequente que um gay, com sua sensibilidade e com sua abertura ao transcendente e ao divino, queira ser padre.

E na cúria, há muitos gays? É verdade que existe um lobby gay vaticano do qual se costuma falar?
Neste campo também posso falar apenas da minha experiência. Não temos estudos sobre a presença de pessoas homossexuais no clero, porque é um tabu, um tema sobre o qual não se deve falar. Na cúria há muitos gays. Muitos deles são bons padres, se não são homofóbicos, se não pensam apenas em sua carreira, se não se preocupam apenas com o dinheiro e o poder. O problema aparece quando os gays são homofóbicos internalizados. No clero católico há muitos homossexuais que, reprimidos por sua própria orientação, odeiam que é gay como eles.
Outro tema é o lobby gay, que eu não conheci. Li algo sobre isso na Itália, mas não tive nenhuma experiência. Pode ser que exista este lobby, como existe o lobby italiano ou polonês no Vaticano. O Vaticano, o coração da Igreja, é uma mistura de lutas pelo poder, pela política e pelo dinheiro. Penso também que o Vaticano é um lobby em nível italiano e internacional que impõe coisas que jamais foram estudadas seriamente.

A Doutrina da Fé é um dicastério especialmente homofóbico? E seu chefe máximo no dicastério, o cardeal Müller?
Sim, a Congregação para a Doutrina da Fé é o coração de uma homofobia paranoica e irracional. Nela não há possibilidade de conhecimento nem de diálogo. Funciona por estereótipos. Eu tinha a impressão de que nós, na Congregação, não promovemos a fé em Deus, não nos ocupamos de cristologia ou mariologia; apenas lutamos contra os gays e outras minorias sexuais. É uma obsessão. Esta é a nossa verdadeira fé: a paranoia anti-gay. Nada mais. É o nosso tema preferido. Há reuniões em que de cada três casos que tratamos, dois são contra gays. Inventamos para nós um inimigo imaginário e lutamos com todas as nossas forças contra ele. O chamamos de “nossa guerra contra o gender”. Ali não se pode discutir, pensamos que esse gender só promove mudanças de sexo. Esse é o nível de paranoia que reina na Congregação.
O cardeal Müller promoveu toda esta ignorância, este extremismo, esta obsessão entre os oficiais, sem nenhum tipo de raciocínio. Em vez de promover estudos, a Congregação é a agência política de sabotagem do pontificado do Papa Francisco e sua discussão sinodal. É a agência que luta contra o gender, termo que não sabe definir. O que realmente importa é usar a palavra gender de uma forma que assuste as pessoas, não importa que não se tenha lido um único livro sobre estudos de gênero. A homofobia e a misoginia (a verdadeira feminofobia, um complexo ou ódio contra a mulher) obsessivas são um drama para esta Congregação, cujos membros não todos são heterossexuais. Como em todas as partes, há homossexuais. A realidade é que a Congregação odeia os gays, mesmo havendo dentro dela pessoas que se sabe são homossexuais.

A Congregação para a Doutrina da Fé é uma das principais peças de resistência na cúria à primavera de Francisco?
Sem dúvida alguma. A Congregação vive seu período mais obscuro. O que mais importa é manter oculto o nosso tabu: a homossexualidade e a sexualidade em geral. Com a primavera de Francisco, a Congregação tem um novo inimigo. Ao lado dos gays, há o Papa Francisco. Junto com a homofobia aparece uma “Francisco-fobia”. O desprezo pelo Papa na Congregação é muito grande. Pelas coisas que eu ouvi sobre o Papa Francisco na Congregação, esta deveria ser denunciada por ofender o primado de Pedro. No passado, nós destruímos carreiras de teólogos que refletiam com respeito e inteligência sobre novas formas de exercício do primado. Agora a Congregação é contra o Papa e seu primado de uma maneira irracional.
Varias pessoas que trabalham na Congregação são simplesmente fundamentalistas e seu nível intelectual não é tão elevado quanto sua presunção de ser “salvadores deste mundo delinquente”. Dentro dela não há nenhuma possibilidade de discussão. Pessoalmente, não tenho nenhuma dúvida de que o prefeito da Congregação, de uma forma digna e com honra, deveria renunciar após a minha coming out. Para salvar a situação, a Congregação deveria ser fechada pelo Papa para começar sua renovação quanto aos métodos de promoção da fé na Igreja. Atualmente, segue sendo a Inquisição. Está vazia de argumentos racionais e cheia de emoções paranoicas, como aquelas expressadas abertamente pelo cardeal Sarah.

Por que não falou com o Papa antes de anunciar publicamente sua situação?
Falei com todas as pessoas com as quais se podia falar. Falei com todas aquelas que poderiam entender a situação desumana de hipocrisia e falsidade da Igreja de Roma, que não são muitas. A situação atual é um escândalo institucionalizado. Mais que anunciar publicamente a minha situação, anunciei a situação da Igreja na qual vivi. Isto é muito diferente. Graças a Deus já não é mais o meu problema. Libertei-me do escândalo desta Igreja que anunciei publicamente. Queria ajudar para que a Igreja despertasse, oferecendo o testemunho da minha experiência no Vaticano. Alguém deveria dizê-lo claramente.

Não lhe parece que o Vaticano reagiu rápida e energicamente com você, ao passo que não faz o mesmo com os padres pederastas?
A reação foi automática. O automatismo legalista e formalista é a alma da Igreja católica diante daquele que lhe diz a verdade, apesar de que o Papa Francisco continuamente fale contra os formalismos legalistas.
É verdade também que muitos casos de padres pedófilos foram e são tratados de um modo diferente, não tão energicamente. A pedofilia é uma vergonha do clero católico. Está relacionada com a imaturidade sexual de seus membros. Não é influenciada pelo mundo, como afirma obsessivamente a Igreja. É o resultado de uma obsessão provocada por uma sexualidade reprimida, não aceita, rechaçada.
Também é verdade que em vários níveis da Igreja a pedofilia continua sendo protegida para salvar sua imagem e não indenizar pelos danos causados. Vou lhe dar um exemplo. No final do verão passado, na prisão do Vaticano morreu o núncio polonês, o arcebispo Wesolowski, julgado pela Congregação como pedófilo. Este homem teve um enterro que durou 10 dias, entre o Vaticano e a Polônia. Dez dias de enterro de um prisioneiro que já foi julgado por um tribunal eclesiástico por abusos de pedofilia. Este enterro começou com uma missa celebrada pelos colaboradores mais próximos do Papa e terminou ao final de 10 dias na Polônia, com uma leitura de uma carta em que se dizia que as acusações de sua pedofilia eram invenções da máfia da República Dominicana. O Vaticano permitiu todo esse espetáculo, em vez de pensar em como indenizar imediatamente as vítimas desse bispo pederasta. Vendo tudo isso, pode-se chegar à conclusão de que existe um lobby pedófilo no Vaticano. Sim, muitos padres e bispos pederastas têm um tratamento especial e muitos continuam livres de qualquer pena.
A esta luz, a reação do Vaticano a um padre gay que diz a verdade é um automatismo vergonhoso. Mas esta é a lógica da Igreja: tudo deve permanecer escondido “pelo bem da Igreja”. Enquanto estiver escondido, não acontece nada. Para a Igreja, “o demônio” é o padre que diz a verdade, aquele que sai à luz, que sai do armário.

Vai continuar sendo padre, vai pedir a secularização ou vão lhe impor essa condição?
Sou e me sinto padre. Hoje sou um padre melhor que antes. Pelo contrário, sou eu que vou pedir à Igreja para que abra os olhos.

Pensou em escrever um livro sobre suas vivências no Vaticano?
Sim, estou convencido de que é meu dever explicar mais amplamente a minha experiência na Igreja, e o farei pelo bem da própria Igreja, que deve converter-se e pedir desculpas por seus escândalos institucionais, por seus atrasos, por sua paranoia irracional da homofobia. Todo aquele que vê isso e o experimenta tem o dever de despertar a Igreja, o que já ultrapassou qualquer limite suportável.

Se o Papa pedisse pessoalmente, deixaria seu parceiro e voltaria ao Vaticano?
Não, não deixaria meu parceiro, porque o amo e porque não há razões doutrinais para fazê-lo. Ter um parceiro, seja homem ou mulher, para um padre não vai contra a sua fé, não vai contra a doutrina da nossa fé. Pelo contrário, é a Igreja e o Papa que deveriam começar a refletir seriamente sobre a desumana disciplina do celibato obrigatório, e sua obsessão pela homossexualidade e a sexualidade em geral.
Voltar ao Vaticano? Não, não voltaria. Deveria ser um masoquista, uma pessoa que busca o sofrimento e a ofensa de sua própria identidade. Eu não sou masoquista. O Vaticano é um dos lugares menos santos que conheci na minha vida. Eu quero ser feliz, quero ser santo, o que significa ser feliz e viver à luz da vontade de Deus e da dignidade humana. No Vaticano, a maior parte das pessoas não é feliz. É um lugar que necessita de uma conversão espiritual e mental. Necessita do ar de Deus, ar que ali falta.

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