Oscar Romero, modelo profeta para hoje
Dom Gregorio Rosa, amigo e colaborador
do arcebispo salvadorenho, veio a Portugal, a convite dos Missionários da
Consolata, para falar sobre pensamento e espiritualidade do homem de Igreja
assassinado há 33 anos
OC/Agência ECCLESIAAgência ECCLESIA – Como conheceu D. Oscar Romero?
D. Gregorio Rosa –Ele era um
sacerdote, quando eu o conheci – ele tinha 40 anos e eu tinha 15 anos, quando
começava os meus estudos no seminário menor. Depois trabalhei com ele um ano
inteiro no seminário menor de San Miguel, como seu assistente, em 1968, e
tornamo-nos amigos.
No seu diário, o meu nome aparece
muitas vezes, porque éramos muito próximos. Aparece sobretudo quando Romero
era arcebispo e tinha de preparar relatórios para Roma, a fim de explicar-se
e defender-se de ataques injustos que chegavam contra ele. Isso aparece no
diário, era uma experiência de amizade muito profunda e uma graça para mim,
muito especial.
AE – O percurso de
vida de D. Oscar Romero ficou marcado por incompreensões, dúvidas. Pensa que
ainda hoje há gente na Igreja e não só que não entendeu esta figura?
GR – Eu também sou
jornalista e preparei com ele muitas vezes um programa de rádio, de 30
minutos, que era transmitido todas as semanas. Fazia questões muito
provocadoras a Romero e uma vez perguntei-lhe: você transformou-se,
monsenhor? Ele respondeu-me que não diria que era uma transformação, mas uma
evolução.
Esta mesma ideia aparece num
documentário da televisão suíça em 1979, um ano antes de morrer.
Perguntam-lhe a mesma coisa e ele diz com mais pormenor como, quando era
bispo no interior do país (Tambeae, ndr), via as coisas de
uma forma e quando chegou a arcebispo e está na capital, descobre de forma
brutal o que é a violência estrutural, o que chama de injustiça
institucionalizada. E descobre que tem uma vocação, a de acompanhar o povo que
está esmagado pela violência, pela repressão, pelos esquadrões da morte, e
ser voz dos que não têm voz.
Romero vai evoluindo para uma missão
profética – os profetas nunca são compreendidos -, ele nas suas homilias fala
muito do tema do profeta e compara a missão de Jesus com a missão dos
profetas. Ele foi um profeta e por isso foi incompreendido, perseguido, foi
assassinado: é muito fácil perceber, a partir daí, o que foi a missão de
Romero, o que foi a sua opção, a sua vida, também o seu martírio, um profeta
fiel à sua missão, porque foi acima de tudo um discípulo de Jesus Cristo.
AE – Esse martírio
aconteceu já há 33. Porque há tantas dificuldades no processo de beatificação
de D. Oscar Romero?
GR – Essa pergunta
aparece permanentemente e vou aprendendo a responder com elementos novos.
Quero fazer uma breve história deste facto: Romero foi incompreendido em
primeiro lugar pelos seus próprios irmãos bispos – quando era arcebispo, eram
seis bispos no país (El Salvador, ndr), quatro contra
dois, tinha apenas um bispo a seu favor (05h00), que foi depois seu sucessor
em San Salvador (D. Arturo Rivera Damas), quando havia
votações, perdia sempre. Este é um ponto importante.
Ele disse uma vez, falando com jovens
de um colégio católico: “Para uns sou a causa de todos os males do país, para
outros sou o pastor que acompanha o povo”. Portanto, há duas visões sobre
Romero, o homem recusado e o homem amado como pastor.
Depois, há um segundo momento: Romero
é assassinado por um grupo preparado por um militar (Roberto D'Aubuisson) que fundou um partido político (ARENA), e esse partido chegou ao Governo, governando durante 20 anos. Nunca
nesses 20 ano se interessou por Romero, pelo contrário, interessou-se em ir
contra ele, já que tinha morrido por causa deles. Por isso, Roma nunca teve
um sinal positivo sobre a canonização por parte do Governo, porque Romero era
um inimigo.
Há quatro anos, temos um primeiro
Governo de esquerda, que levou Romero a sério. O presidente (Mauricio) Funes, no dia da sua proclamação, disse: Romero é a minha
inspiração, o meu modelo, e quero como ele optar pelos pobres e seguir os
seus ensinamentos. Assim, Roma começa a ouvir algo diferente, nos últimos
anos.
Um terceiro elemento é que Romero é
um Santo incómodo, os profetas são incómodos. Não é Madre Teresa de Calcutá,
é outra coisa, por isso é um profeta que, como Jeremias, é incómodo e querem
acabar com ele. Estes santos desinstalam-nos, tiram-nos do sítio, obrigam-nos
a rever a nossa vida medíocre.
Isso também foi um fator contra
Romero, mas ao mesmo tempo há uma corrente cada vez maior em seu favor e os
Papas foram entendendo isto. O Papa João Paulo II entendeu Romero a partir do
ano de 1983, quando visitou o seu túmulo pela primeira vez, e acabou por
compreendê-lo bem a partir dos anos 2000 e 2001, quando disse que era um
mártir da Igreja.
Tenho os testemunhos diretos dessa
visão do Papa: não foi fácil para o Papa João Paulo II entender como é que um
bispo é morto por cristãos, como eram os comunistas de El Salvador – que não
eram como os da Polónia ou da Europa de Leste -, era outra coisa. Finalmente
foi-o compreendendo, era outra visão do que era a esquerda, é um problema
complexo que se foi esclarecendo, pouco a pouco.
AE – Essa visita de
João Paulo II ao túmulo de D. Oscar Romero, em 1983, foi um momento de
tensão…
GR – O que é
surpreendente é o que conta o seu secretário pessoal, Dom Estanislau
(Dziwisz), agora arcebispo de Cracóvia, num livro que se intitula ‘Uma vida
com Karol’. Há um capítulo dedicado ao martírio, no qual fala de apenas um
mártir, Romero, e relata dois factos relacionados com o Papa João Paulo II,
que é importante partilhar com quem está a ver este programa.
O primeiro é do ano 1983: conta ele
que antes da visita a El Salvador, disseram ao Papa que não convinha que
visitasse o túmulo de Romero, porque esse era um tema muito politizado, e o
Papa respondeu: Como não o vou visitar, se morreu no altar, durante a
Eucaristia?
Houve pressões no país para que não
fosse ao túmulo de Romero e quero contar uma história: para preparar essa
visita, houve uma comissão mista, Governo-Igreja, para tratar da segurança,
do protocolo, etc., e eu fui um dos encarregados. Estávamos reunidos quando
chegou uma nota da Nunciatura que dizia que o Papa gostaria de visitar o
túmulo. Diziam que não era adequado, que era perigoso, que não havia
condições, que não o devia visitar.
Numa segunda reunião, chegou outra
nota da Nunciatura onde se dizia que o Papa visitará o túmulo. Visitará.
Então, negociamos com o Governo que a visita não seria publicada no programa,
que seria privada e confidencial, digamos. A 6 de março de 1983, quando chega
o dia da visita do Papa, prevista para depois do almoço, o cardeal Tucci
disse-me de manhã: “Vamos já para a Catedral”. João Paulo II chegou ao túmulo
quando não estava ninguém à sua espera.
Outro facto aconteceu no ano 2000,
com o Jubileu dos Mártires, a 7 de maio, no Coliseu. Na quarta-feira
anterior, anunciou-se na sala de imprensa da Santa Sé como seria a cerimónia,
uma grande paraliturgia, e falou-se de cada continente, quem ia ser evocado
como mártir. Na América Latina, são mencionados três nomes de bispos, mas não
apareceu o de Romero, e os jornalistas perguntaram porque é que não estava.
Houve uma reação em Roma, muito forte, de protesto.
Dois dias depois, o Papa convidou
vários cardeais, para jantar, entre eles o cardeal Kasper, que também me
contou o que vem no livro: João Paulo II pediu o livro que ia ser usado na
cerimónia dos mártires, procurou a página da América Latina e a oração
conclusiva dessa secção, onde escreveu “bispos como o inesquecível monsenhor
Romero, que entregou a sua vida no altar”. E teve de se fazer um novo
folheto.
Nós temos os dois folhetos, o que se
ia utilizar, sem referência a Romero, e o que se usou, mencionando-o. Foi o
único nome evocado.
Há um último dado, de que sou
testemunha pessoal, no ano 2001, mês de novembro. Temos visita ‘ad Limina’
com João Paulo II, a última que lhe fizemos, e no momento pessoal com o Papa,
o arcebispo (Fernando Sáenz Lacalle) chega e eu vou com ele. O Papa está
muito cansado, muito doente, não reage ao que diz o arcebispo, mas de repente
levanta a cabeça e pergunta: E Monsenhor Romero?
O arcebispo responde: Estamos a falar
sobre a devoção, não sabemos se há algum milagre por sua intercessão…
O Papa pôs-se de pé, pega na bengala
e diz: É um martírio. E vai-se embora.
São dados do pontificado de João
Paulo II que indicam que ele foi compreendendo e chegou à convicção de que
Romero é um mártir. São dados interessantes, totalmente comprovados, que
indicam uma evolução no Papa: ele entendeu o que se passou com Romero e
chegou à conclusão de que é um mártir da Igreja.
Agência ECCLESIA
–Que atualidade tem este arcebispo assassinado no altar para uma jovem
geração que nunca teve contacto com ele?
GR – Vou responder com uma história do ano 2000. Nesse ano, no 20.º
aniversário (da morte) de Romero, houve uma grande marcha nas ruas de San
Salvador, com archotes. Havia bispos italianos na marcha e eu estava a
celebrar em Roma. Quando eles voltaram, emocionados, os bispos vinham
surpreendidos porque os jovens gritavam na marcha “Sente-se, sente-se, Romero
está presente”.
Os jovens de hoje estão a conhecer
Romero e entusiasmam-se com ele, porque veem um homem coerente com as suas
convicções, um homem que é fiel ao ser humano e defende os Direitos Humanos,
que é fiel a Jesus Cristo, que é fiel à Igreja e dá a vida por esses ideais.
Os jovens precisam de algo que dê
sentido à sua vida e veem em Romero um discípulo de Jesus Cristo que é
coerente com o que diz, com o que faz, e as pessoas precisam de modelos
assim. Hoje vivemos num mundo que não tem modelos, não tem líderes. Romero é
um líder, um modelo para os jovens de hoje, para as pessoas, e por isso é um
santo muito atual.
É espantoso que mesmo no mundo dos
não crentes, Romero seja uma inspiração, pelo que estamos em muito boa
companhia e com o Papa Francisco temos, penso, o melhor momento para que o
processo de canonização possa avançar até ao final.
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