RESUMO:
Após o
encerramento do Jubileu Extraordinário da Misericórdia, foi apresentada a Carta
Apostólica do papa Francisco “Misericórdia e mísera”.
A carta, disponível em português, é dividida em 22 pontos e começa com a
explicação do título: misericórdia e mísera são as duas palavras que Santo
Agostinho utiliza para descrever o encontro de Jesus com a adúltera. O perdão e
a caridade são os dois eixos centrais do documento divulgado nesta
segunda-feira, dia 21 de novembro.
No
texto, o papa Francisco explica o título que recorda a abordagem de Santo
Agostinho da passagem do encontro de Jesus com a mulher adúltera. “Esta
página do Evangelho pode ser considerada como ícone de tudo o que celebramos no
Ano Santo. (...) No centro, não temos a lei e a justiça legal, mas o amor de
Deus. (...) Não se encontram o pecado e o juízo em abstrato, mas uma pecadora e
o Salvador. (...) A miséria do pecado foi revestida pela misericórdia do amor”,
escreve o pontífice.
Francisco
recorda que ninguém pode pôr condições à misericórdia. “Esta permanece sempre
um ato de gratuidade do Pai celeste”. Concluído o Jubileu, há o convite para se
olhar para frente e compreender como se pode continuar experimentando a riqueza
da misericórdia divina.
Alguns pontos foram destacados do texto do
papa pela Rádio Vaticano:
Celebração eucarística
Em
primeiro lugar, Francisco aponta a celebração da misericórdia através da missa.
Dirigindo-se aos sacerdotes de modo especial, o Papa recomenda a preparação da
homilia e o cuidado na sua proclamação. “Comunicar a certeza de que Deus nos
ama não é um exercício de retórica, mas condição de credibilidade do próprio
sacerdócio”, adverte o pontífice. O papa faz algumas sugestões, como de um
domingo dedicado inteiramente à Palavra de Deus, em prol de sua difusão,
conhecimento e aprofundamento.
Perdão
O
pontífice dedica amplo espaço na Carta Apostólica para falar do sacramento da
Reconciliação, “que precisa voltar a ter o seu lugar central na vida cristã”.
Francisco agradece aos “missionários da misericórdia”, que ele instituiu no
início deste Jubileu para aproximar os fiéis da confissão. De fato, determinou
que este ministério não termine com o fechamento da Porta Santa, mas permaneça
até novas ordens. Aos confessores, o papa pediu acolhimento, disponibilidade,
generosidade e clarividência. “Não há lei nem preceito que possa impedir a Deus
de reabraçar o filho. Deter-se apenas na lei equivale a invalidar a fé e a
misericórdia divina”, escreve, pedindo que seja reforçada nas dioceses a
celebração da iniciativa “24 horas para o Senhor”, nas proximidades do IV
domingo para a Quaresma.
Absolvição do aborto
Neste
contexto, se encontra a grande novidade da Carta Apostólica. A partir de agora,
o pontífice concede a todos os sacerdotes a faculdade de absolver a todas as
pessoas que incorreram no pecado do aborto. “Aquilo que eu concedera de forma
limitada ao período jubilar fica agora alargado no tempo, não obstante qualquer
disposição em contrário. Quero reiterar com todas as minhas forças que o aborto
é um grave pecado, porque põe fim a uma vida inocente; mas, com igual força,
posso e devo afirmar que não existe algum pecado que a misericórdia de Deus não
possa alcançar e destruir, quando encontra um coração arrependido que pede para
se reconciliar com o Pai. Portanto, cada sacerdote faça-se guia, apoio e
conforto no acompanhamento dos penitentes neste caminho de especial
reconciliação.”
Fraternidade de São Pio X
Na
mesma linha, o papa estende a absolvição sacramental dos pecados aos fiéis que
frequentam as igrejas oficiadas pelos sacerdotes da Fraternidade de São Pio X,
instituída no Ano Santo. “Para o bem pastoral destes fiéis e confiando na boa
vontade dos seus sacerdotes para que se possa recuperar a plena comunhão na
Igreja Católica, estabeleço por minha própria decisão de estender esta
faculdade para além do período jubilar, até novas disposições sobre o assunto,
a fim de que a ninguém falte jamais o sinal sacramental da reconciliação
através do perdão da Igreja.”
Caridade
Francisco
fala ainda da importância da consolação, principalmente na família e no momento
da morte, mas é à caridade que dedica outra grande parte da Carta Apostólica:
“Termina o Jubileu e fecha-se a Porta Santa. Mas a porta da misericórdia do
nosso coração permanece sempre aberta. (...) Por sua natureza, a misericórdia
se torna visível e palpável numa ação concreta e dinâmica”.
O papa
cita algumas iniciativas deste Ano Jubilar, como as sextas-feiras da
misericórdia, para agradecer aos inúmeros voluntários que dedicam seu tempo ao
próximo. Mas para incrementar essas iniciativas, o Pontífice pede que se
“arregace as mangas”, com imaginação e criatividade. As obras de misericórdia –
escreve – têm “valor social” diante de um mundo que continua gerando novas
formas de pobreza espiritual e material, que comprometem a dignidade das
pessoas.
“O
caráter social da misericórdia exige que não permaneçamos inertes mas
afugentemos a indiferença e a hipocrisia para que os planos e os projetos não
fiquem letra morta”. Para Francisco, com as obras de misericórdia se pode criar
uma verdadeira revolução cultural.
Dia Mundial dos Pobres
No
final da Carta Apostólica, como mais um sinal concreto deste Ano Santo
Extraordinário, o papa Francisco institui para toda a Igreja o Dia Mundial dos
Pobres, a ser celebrado no 33º Domingo do Tempo Comum. “Será a mais digna
preparação para bem viver a solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo Rei do
Universo, que Se identificou com os mais pequenos e os pobres. Será um Dia que
vai ajudar as comunidades e cada batizado a refletir como a pobreza está no
âmago do Evangelho e tomar consciência de que não poderá haver justiça nem paz
social enquanto Lázaro jazer à porta da nossa casa. Além disso este Dia
constituirá uma forma genuína de nova evangelização”, explicou.
Com informações da Rádio Vaticano.
LEIA NA ÍNTEGRA:
CARTA
APOSTÓLICA MISERICORDIA ET MISERA do Santo Padre FRANCISCO
MISERICÓRDIA
E MÍSERA (misericordia et misera) são as duas palavras que Santo Agostinho
utiliza para descrever o encontro de Jesus com a adúltera (cf. Jo 8, 1-11). Não
podia encontrar expressão mais bela e coerente do que esta, para fazer
compreender o mistério do amor de Deus quando vem ao encontro do pecador:
«Ficaram apenas eles dois: a mísera e a misericórdia».[1] Quanta piedade e
justiça divina nesta narração! O seu ensinamento, ao mesmo tempo que ilumina a
conclusão do Jubileu Extraordinário da Misericórdia, indica o caminho que somos
chamados a percorrer no futuro.
1.
Esta página do Evangelho pode, com justa razão, ser considerada como ícone de
tudo o que celebramos no Ano Santo, um tempo rico em misericórdia, a qual pede
para continuar a ser celebrada e vivida nas nossas comunidades. Com efeito, a
misericórdia não se pode reduzir a um parêntese na vida da Igreja, mas
constitui a sua própria existência, que torna visível e palpável a verdade
profunda do Evangelho. Tudo se revela na misericórdia; tudo se compendia no
amor misericordioso do Pai.
Encontraram-se
uma mulher e Jesus: ela, adúltera e – segundo a Lei – julgada passível de
lapidação; Ele que, com a sua pregação e o dom total de Si mesmo que O levará
até à cruz, reconduziu a lei mosaica ao seu intento originário genuíno. No
centro, não temos a lei e a justiça legal, mas o amor de Deus, que sabe ler no
coração de cada pessoa incluindo o seu desejo mais oculto e que deve ter a
primazia sobre tudo. Entretanto, nesta narração evangélica, não se encontram o
pecado e o juízo em abstrato, mas uma pecadora e o Salvador. Jesus fixou nos
olhos aquela mulher e leu no seu coração: lá encontrou o desejo de ser
compreendida, perdoada e libertada. A miséria do pecado foi revestida pela
misericórdia do amor. Da parte de Jesus, nenhum juízo que não estivesse
repassado de piedade e compaixão pela condição da pecadora. A quem pretendia
julgá-la e condená-la à morte, Jesus responde com um longo silêncio, cujo
intuito é deixar emergir a voz de Deus tanto na consciência da mulher como nas
dos seus acusadores. Estes deixam cair as pedras das mãos e vão-se embora um a
um (cf. Jo 8, 9). E, depois daquele silêncio, Jesus diz: «Mulher, onde estão
eles? Ninguém te condenou? (...) Também Eu não te condeno. Vai e de agora em
diante não tornes a pecar» (8, 10.11). Desta forma, ajuda-a a olhar para o
futuro com esperança, pronta a recomeçar a sua vida; a partir de agora, se
quiser, poderá «proceder no amor» (Ef 5, 2). Depois que se revestiu da
misericórdia, embora permaneça a condição de fraqueza por causa do pecado, tal
condição é dominada pelo amor que consente de olhar mais além e viver de
maneira diferente.
2. Aliás
Jesus ensinara-o claramente quando, em casa dum fariseu que O convidara para
almoçar, se aproximou d’Ele uma mulher conhecida por todos como pecadora (cf.
Lc 7, 36-50). Esta ungira com perfume os pés de Jesus, banhara-os com as suas
lágrimas e enxugara-os com os seus cabelos (cf. 7, 37-38). À reação
escandalizada do fariseu, Jesus retorquiu: «São perdoados os seus muitos
pecados, porque muito amou; mas àquele a quem pouco se perdoa, pouco ama» (7,
47).
O
perdão é o sinal mais visível do amor do Pai, que Jesus quis revelar em toda a
sua vida. Não há página do Evangelho que possa ser subtraída a este imperativo
do amor que chega até ao perdão. Até nos últimos momentos da sua existência
terrena, ao ser pregado na cruz, Jesus tem palavras de perdão: «Perdoa-lhes,
Pai, porque não sabem o que fazem» (Lc 23, 34).
Nada
que um pecador arrependido coloque diante da misericórdia de Deus pode ficar
sem o abraço do seu perdão. É por este motivo que nenhum de nós pode pôr
condições à misericórdia; esta permanece sempre um ato de gratuidade do Pai
celeste, um amor incondicional e não merecido. Por isso, não podemos correr o
risco de nos opor à plena liberdade do amor com que Deus entra na vida de cada
pessoa.
A
misericórdia é esta ação concreta do amor que, perdoando, transforma e muda a
vida. É assim que se manifesta o seu mistério divino. Deus é misericordioso
(cf. Ex 34, 6), a sua misericórdia é eterna (cf. Sal 136/135), de geração em
geração abraça cada pessoa que confia n’Ele e transforma-a, dando-lhe a sua
própria vida.
3.Quanta
alegria brotou no coração destas duas mulheres: a adúltera e a pecadora! O
perdão fê-las sentirem-se, finalmente, livres e felizes como nunca antes. As
lágrimas da vergonha e do sofrimento transformaram-se no sorriso de quem sabe
que é amado. A misericórdia suscita alegria, porque o coração se abre à
esperança duma vida nova. A alegria do perdão é indescritível, mas transparece
em nós sempre que a experimentamos. Na sua origem, está o amor com que Deus vem
ao nosso encontro, rompendo o círculo de egoísmo que nos envolve, para fazer
também de nós instrumentos de misericórdia.
Como
são significativas, também para nós, estas palavras antigas que guiavam os
primeiros cristãos: «Reveste-te de alegria, que é sempre agradável a Deus e por
Ele bem acolhida. Todo o homem alegre trabalha bem, pensa bem e despreza a
tristeza. (...) Viverão em Deus todas as pessoas que afastam a tristeza e se
revestem de toda a alegria».[2] Experimentar a misericórdia dá alegria; não
no-la deixemos roubar pelas várias aflições e preocupações. Que ela permaneça
bem enraizada no nosso coração e sempre nos faça olhar com serenidade a vida do
dia-a-dia.
Numa cultura
frequentemente dominada pela tecnologia, parecem multiplicar-se as formas de
tristeza e solidão em que caem as pessoas, incluindo muitos jovens. Com efeito,
o futuro parece estar refém da incerteza, que não permite ter estabilidade. É
assim que muitas vezes surgem sentimentos de melancolia, tristeza e tédio, que
podem, pouco a pouco, levar ao desespero. Há necessidade de testemunhas de
esperança e de alegria verdadeira, para expulsar as quimeras que prometem uma
felicidade fácil com paraísos artificiais. O vazio profundo de tanta gente pode
ser preenchido pela esperança que trazemos no coração e pela alegria que brota
dela. Há tanta necessidade de reconhecer a alegria que se revela no coração
tocado pela misericórdia! Por isso guardemos como um tesouro estas palavras do
Apóstolo: «Alegrai-vos sempre no Senhor!» (Flp 4, 4; cf. 1 Ts 5, 16).
4. Celebramos
um Ano intenso, durante o qual nos foi concedida, em abundância, a graça da
misericórdia. Como um vento impetuoso e salutar, a bondade e a misericórdia do
Senhor derramaram-se sobre o mundo inteiro. E perante este olhar amoroso de Deus,
que se fixou de maneira tão prolongada sobre cada um de nós, não se pode ficar
indiferente, porque muda a vida.
Antes
de mais nada, sentimos necessidade de agradecer ao Senhor, dizendo-Lhe: «Vós
abençoastes a vossa terra (…). Perdoastes as culpas do vosso povo» (Sal 85/84,
2.3). Foi mesmo assim: Deus esmagou as nossas culpas e lançou ao fundo do mar
os nossos pecados (cf. Miq 7, 19); já não Se lembra deles, lançou-os para trás
de Si (cf. Is 38, 17); como o Oriente está afastado do Ocidente, assim os nossos
pecados estão longe d’Ele (cf. Sal 103/102, 12).
Neste
Ano Santo, a Igreja pôde colocar-se à escuta e experimentou com grande
intensidade a presença e proximidade do Pai, que, por obra do Espírito Santo,
lhe tornou mais evidente o dom e o mandato de Jesus Cristo relativo ao perdão.
Foi realmente uma nova visita do Senhor ao meio de nós. Sentimos o seu sopro
vital efundir-se sobre a Igreja, enquanto, mais uma vez, as suas palavras
indicavam a missão: «Recebei o Espírito Santo. Àqueles a quem perdoardes os
pecados, ficarão perdoados; àqueles a quem os retiverdes, ficarão retidos» (Jo
20, 22-23).
5. Agora,
concluído este Jubileu, é tempo de olhar para diante e compreender como se pode
continuar, com fidelidade, alegria e entusiasmo, a experimentar a riqueza da
misericórdia divina. As nossas comunidades serão capazes de permanecer vivas e
dinâmicas na obra da nova evangelização na medida em que a «conversão
pastoral», que estamos chamados a viver,[3] for plasmada dia após dia pela
força renovadora da misericórdia. Não limitemos a sua ação; não entristeçamos o
Espírito que indica sempre novas sendas a percorrer para levar a todos o
Evangelho da salvação.
Em
primeiro lugar, somos chamados a celebrar a misericórdia. Quanta riqueza está
presente na oração da Igreja, quando invoca a Deus como Pai misericordioso! Na
liturgia, não só se evoca repetidamente a misericórdia, mas é realmente
recebida e vivida. Desde o início até ao fim da Celebração Eucarística, a
misericórdia reaparece várias vezes no diálogo entre a assembleia orante e o
coração do Pai, que rejubila quando pode derramar o seu amor misericordioso.
Logo na altura do pedido inicial de perdão com a invocação «Senhor, tende
piedade de nós», somos tranquilizados: «Deus todo-poderoso tenha compaixão de nós,
perdoe os nossos pecados e nos conduza à vida eterna». É com esta confiança que
a comunidade se reúne na presença do Senhor, especialmente no dia semanal que
recorda a ressurreição. Muitas orações ditas «coletas» procuram recordar-nos o
grande dom da misericórdia. No tempo da Quaresma, por exemplo, rezamos com
estas palavras: «Deus, Pai de misericórdia e fonte de toda a bondade, que nos
fizestes encontrar no jejum, na oração e no amor fraterno os remédios do
pecado, olhai benigno para a confissão da nossa humildade, de modo que,
abatidos pela consciência da culpa, sejamos confortados pela vossa
misericórdia».[4] Mais adiante, somos introduzidos na Oração Eucarística pelo
Prefácio que proclama: «Na vossa infinita misericórdia, de tal modo amastes o
mundo que nos enviastes Jesus Cristo, nosso Salvador, em tudo semelhante ao
homem, menos no pecado».[5] Aliás a própria Oração IV é um hino à misericórdia
de Deus: «Na vossa misericórdia, a todos socorrestes, para que todos aqueles
que Vos procuram Vos encontrem».[6] «Tende misericórdia de nós, Senhor»:[7] é a
súplica premente que o sacerdote faz na Oração Eucarística para implorar a
participação na vida eterna. Depois do Pai-Nosso, o sacerdote prolonga a oração
invocando a paz e a libertação do pecado, «ajudados pela vossa misericórdia» e,
antes da saudação da paz que os participantes trocam entre si como expressão de
fraternidade e amor mútuo à luz do perdão recebido, o celebrante reza de novo:
«Não olheis aos nossos pecados, mas à fé da vossa Igreja».[8] Através destas
palavras, pedimos com humilde confiança o dom da unidade e da paz para a Santa
Mãe Igreja. Assim a celebração da misericórdia divina culmina no Sacrifício
Eucarístico, memorial do mistério pascal de Cristo, do qual brota a salvação
para todo o ser humano, a história e o mundo inteiro. Em suma, cada momento da
Celebração Eucarística faz referimento à misericórdia de Deus.
Mas, em
toda a vida sacramental, é-nos dada com abundância a misericórdia. Realmente é
significativo que a Igreja tenha querido fazer explicitamente apelo à
misericórdia na fórmula dos dois sacramentos chamados «de cura»: a
Reconciliação e a Unção dos Enfermos. Assim reza a fórmula da absolvição:
«Deus, Pai de misericórdia, que, pela morte e ressurreição de seu Filho,
reconciliou o mundo consigo e infundiu o Espírito para a remissão dos pecados,
te conceda, pelo ministério da Igreja, o perdão e a paz»;[9] e ao ungir a
pessoa doente: «Por esta santa Unção e pela sua piíssima misericórdia, o Senhor
venha em teu auxílio com a graça do Espírito Santo».[10] Deste modo, a
referência à misericórdia na oração da Igreja, longe de ser apenas parenética,
é altamente realizadora, ou seja, enquanto a invocamos com fé, é-nos concedida;
enquanto a confessamos viva e real, efetivamente transforma-nos. Este é um
conteúdo fundamental da nossa fé, que devemos conservar em toda a sua
originalidade: ainda antes e acima da revelação do pecado, temos a revelação do
amor com que Deus criou o mundo e os seres humanos. O amor é o primeiro ato com
que Deus Se deu a conhecer e vem ao nosso encontro. Por isso mantenhamos o
coração aberto à confiança de ser amados por Deus. O seu amor sempre nos
precede, acompanha e permanece connosco, não obstante o nosso pecado.
6. Neste
contexto, assume significado particular também a escuta da Palavra de Deus.
Cada domingo, a Palavra de Deus é proclamada na comunidade cristã, para que o
Dia do Senhor seja iluminado pela luz que dimana do mistério pascal.[11] Na
Celebração Eucarística, é como se assistíssemos a um verdadeiro diálogo entre
Deus e o seu povo. Com efeito, na proclamação das Leituras bíblicas, repassa-se
a história da nossa salvação através da obra incessante de misericórdia que é
anunciada. Deus fala-nos ainda hoje como a amigos, «convive» connosco[12] oferecendo-nos
a sua companhia e mostrando-nos a senda da vida. A sua Palavra faz-se
intérprete dos nossos pedidos e preocupações e, simultaneamente, resposta
fecunda para podermos experimentar concretamente a sua proximidade. Quão grande
importância adquire a homilia, onde «a verdade anda de mãos dadas com a beleza
e o bem»,[13] para fazer vibrar o coração dos crentes perante a grandeza da
misericórdia! Recomendo vivamente a preparação da homilia e o cuidado na sua
proclamação. Será tanto mais frutuosa quanto mais o sacerdote tiver
experimentado em si mesmo a bondade misericordiosa do Senhor. Comunicar a
certeza de que Deus nos ama não é um exercício de retórica, mas condição de
credibilidade do próprio sacerdócio. Por conseguinte, viver a misericórdia é a
via mestra para fazê-la tornar-se um verdadeiro anúncio de consolação e
conversão na vida pastoral. A homilia, como também a catequese, precisam de ser
sempre sustentadas por este coração pulsante da vida cristã.
7. A
Bíblia é a grande narração que relata as maravilhas da misericórdia de Deus.
Nela, cada página está imbuída do amor do Pai, que, desde a criação, quis
imprimir no universo os sinais de seu amor. O Espírito Santo, através das
palavras dos profetas e dos escritos sapienciais, moldou a história de Israel
no reconhecimento da ternura e proximidade de Deus, não obstante a infidelidade
do povo. A vida de Jesus e a sua pregação marcam, de forma determinante, a
história da comunidade cristã, que compreendeu a sua missão com base no mandato
que Cristo lhe confiou de ser instrumento permanente da sua misericórdia e do
seu perdão (cf. Jo 20, 23). Através da Sagrada Escritura, mantida viva pela fé
da Igreja, o Senhor continua a falar à sua Esposa, indicando-lhe as sendas a
percorrer para que o Evangelho da salvação chegue a todos. É meu vivo desejo
que a Palavra de Deus seja cada vez mais celebrada, conhecida e difundida, para
que se possa, através dela, compreender melhor o mistério de amor que dimana
daquela fonte de misericórdia. Claramente no-lo recorda o Apóstolo: «Toda a
Escritura é inspirada por Deus e adequada para ensinar, refutar, corrigir e
educar na justiça» (2 Tm 3, 16).
Seria
conveniente que cada comunidade pudesse, num domingo do Ano Litúrgico, renovar
o compromisso em prol da difusão, conhecimento e aprofundamento da Sagrada
Escritura: um domingo dedicado inteiramente à Palavra de Deus, para compreender
a riqueza inesgotável que provém daquele diálogo constante de Deus com o seu
povo. Não há de faltar a criatividade para enriquecer o momento com iniciativas
que estimulem os crentes a ser instrumentos vivos de transmissão da Palavra.
Entre tais iniciativas, conta-se certamente uma difusão mais ampla da lectio
divina, para que, através da leitura orante do texto sagrado, a vida espiritual
encontre apoio e crescimento. A lectio divina sobre os temas da misericórdia
consentirá de verificar a grande fecundidade que deriva do texto sagrado, lido
à luz de toda a tradição espiritual da Igreja, que leva necessariamente a
gestos e obras concretas de caridade. [14]
8. A
celebração da misericórdia tem lugar, duma forma muito particular, no
sacramento da Reconciliação. Este é o momento em que sentimos o abraço do Pai,
que vem ao nosso encontro para nos restituir a graça de voltarmos a ser seus
filhos. Nós somos pecadores e carregamos connosco o peso da contradição entre o
que quereríamos fazer e aquilo que, ao invés, acabamos concretamente por fazer
(cf. Rm 7, 14-21); mas a graça sempre nos precede e assume o rosto da
misericórdia que se torna eficaz na reconciliação e no perdão. Deus faz-nos
compreender o seu amor imenso precisamente à vista da nossa realidade de
pecadores. A graça é mais forte, e supera qualquer possível resistência, porque
o amor tudo vence (cf. 1 Cor 13, 7).
No
sacramento do Perdão, Deus mostra o caminho da conversão a Ele e convida a
experimentar de novo a sua proximidade. É um perdão que pode ser obtido,
começando antes de mais nada a viver a caridade. Assim no-lo recorda o apóstolo
Pedro, quando escreve que «o amor cobre a multidão dos pecados» (1 Ped 4, 8).
Só Deus perdoa os pecados, mas também nos pede que estejamos prontos a perdoar
aos outros, como Ele perdoa a nós: «Perdoai-nos as nossas ofensas, assim como
nós perdoamos a quem nos tem ofendido» (Mt 6, 12). Como é triste quando ficamos
fechados em nós mesmos, incapazes de perdoar! Prevalecem o ressentimento, a
ira, a vingança, tornando a vida infeliz e frustrando o jubiloso compromisso
pela misericórdia.
9.Uma
experiência de graça que a Igreja viveu, com tanta eficácia, no Ano Jubilar
foi, certamente, o serviço dos Missionários da Misericórdia. A sua ação
pastoral pretendeu tornar evidente que Deus não põe qualquer barreira a quantos
O procuram de coração arrependido, mas vai ao encontro de todos como um Pai.
Recebi muitos testemunhos de alegria pelo renovado encontro com o Senhor no
sacramento da Confissão. Não percamos a oportunidade de viver a fé, inclusive
como experiência da reconciliação. «Reconciliai-vos com Deus» (2 Cor 5, 20): é
o convite que ainda hoje dirige o Apóstolo a cada crente para lhe fazer
descobrir a força do amor que o torna uma «nova criação» (2 Cor 5, 17).
Quero
expressar a minha gratidão a todos os Missionários da Misericórdia pelo valioso
serviço oferecido para tornar eficaz a graça do perdão. Mas este ministério
extraordinário não termina com o encerramento da Porta Santa. De facto desejo
que permaneça ainda, até novas ordens, como sinal concreto de que a graça do
Jubileu continua a ser viva e eficaz nas várias partes do mundo. Será
responsabilidade do Conselho Pontifício para a Promoção da Nova Evangelização
seguir, neste período, os Missionários da Misericórdia, como expressão direta
da minha solicitude e proximidade e encontrar as formas mais coerentes para o
exercício deste precioso ministério.
10. Aos
sacerdotes, renovo o convite para se prepararem com grande cuidado para o
ministério da Confissão, que é uma verdadeira missão sacerdotal. Agradeço-vos
vivamente pelo vosso serviço e peço-vos para serdes acolhedores com todos,
testemunhas da ternura paterna não obstante a gravidade do pecado, solícitos em
ajudar a refletir sobre o mal cometido, claros ao apresentar os princípios
morais, disponíveis para acompanhar os fiéis no caminho penitencial respeitando
com paciência o seu passo, clarividentes no discernimento de cada um dos casos,
generosos na concessão do perdão de Deus. Como Jesus, perante a adúltera, optou
por permanecer em silêncio para a salvar da condenação à morte, assim também o
sacerdote no confessionário seja magnânimo de coração, ciente de que cada
penitente lhe recorda a sua própria condição pessoal: pecador mas ministro da
misericórdia.
11. Gostaria
que todos nós meditássemos as palavras do Apóstolo, escritas no final da sua
vida, quando confessa a Timóteo ser o primeiro dos pecadores, mas «justamente
por isso alcancei misericórdia» (1 Tm 1, 16). As suas palavras têm uma força
que irrompe também em nós levando-nos a refletir sobre a nossa existência vendo
em ação a misericórdia de Deus na mudança, conversão e transformação do nosso
coração: «Dou graças Àquele que me conforta, Cristo Jesus Nosso Senhor, por me
ter considerado digno de confiança, pondo-me ao seu serviço, a mim que antes
fora blasfemo, perseguidor e violento. Mas alcancei misericórdia» (1 Tm 1,
12-13).
Por isso
lembremos, com paixão pastoral sempre renovada, as palavras do Apóstolo: «Tudo
isto vem de Deus, que nos reconciliou consigo por meio de Cristo e nos confiou
o ministério da reconciliação» (2 Cor 5, 18). Nós, primeiro, fomos perdoados,
tendo em vista este ministério; tornamo-nos testemunhas em primeira mão da
universalidade do perdão. Não há lei nem preceito que possa impedir a Deus de
reabraçar o filho que regressa a Ele reconhecendo que errou, mas decidido a
começar de novo. Deter-se apenas na lei equivale a invalidar a fé e a
misericórdia divina. Há um valor preparatório na lei (cf. Gal 3, 24), cujo fim
é o amor (cf. 1 Tm 1, 5). Mas o cristão é chamado a viver a novidade do
Evangelho, «a lei do Espírito que dá vida em Cristo Jesus» (Rm 8, 2). Mesmo nos
casos mais complexos, onde se é tentado a fazer prevalecer uma justiça que
deriva apenas das normas, deve-se crer na força que brota da graça divina.
Nós,
confessores, temos experiência de muitas conversões que ocorrem diante dos
nossos olhos. Sintamos, portanto, a responsabilidade de gestos e palavras que
possam chegar ao fundo do coração do penitente, para que descubra a proximidade
e a ternura do Pai que perdoa. Não invalidemos estes momentos com
comportamentos que possam contradizer a experiência da misericórdia que se
procura; mas, antes, ajudemos a iluminar o espaço da consciência pessoal com o
amor infinito de Deus (cf. 1 Jo 3, 20).
O
sacramento da Reconciliação precisa de voltar a ter o seu lugar central na vida
cristã; para isso requerem-se sacerdotes que ponham a sua vida ao serviço do
«ministério da reconciliação» (2 Cor 5, 18), de tal modo que a ninguém
sinceramente arrependido seja impedido de aceder ao amor do Pai que espera o
seu regresso e, ao mesmo tempo, a todos seja oferecida a possibilidade de
experimentar a força libertadora do perdão.
Uma
ocasião propícia pode ser a celebração da iniciativa 24 horas para o Senhor nas
proximidades do IV domingo da Quaresma, que goza já de amplo consenso nas
dioceses e continua a ser um forte apelo pastoral para viver intensamente o
sacramento da Confissão.
12. Em
virtude desta exigência, para que nenhum obstáculo exista entre o pedido de
reconciliação e o perdão de Deus, concedo a partir de agora a todos os
sacerdotes, em virtude do seu ministério, a faculdade de absolver a todas as
pessoas que incorreram no pecado do aborto. Aquilo que eu concedera de forma
limitada ao período jubilar[15] fica agora alargado no tempo, não obstante
qualquer disposição em contrário. Quero reiterar com todas as minhas forças que
o aborto é um grave pecado, porque põe fim a uma vida inocente; mas, com igual
força, posso e devo afirmar que não existe algum pecado que a misericórdia de
Deus não possa alcançar e destruir, quando encontra um coração arrependido que
pede para se reconciliar com o Pai. Portanto, cada sacerdote faça-se guia,
apoio e conforto no acompanhamento dos penitentes neste caminho de especial
reconciliação.
No Ano
do Jubileu, aos fiéis que por variados motivos frequentam as igrejas oficiadas
pelos sacerdotes da Fraternidade de São Pio X, tinha-lhes concedido receber
válida e licitamente a absolvição sacramental dos seus pecados.[16] Para o bem
pastoral destes fiéis e confiando na boa vontade dos seus sacerdotes para que
se possa recuperar, com a ajuda de Deus, a plena comunhão na Igreja Católica,
estabeleço por minha própria decisão de estender esta faculdade para além do
período jubilar, até novas disposições sobre o assunto, a fim de que a ninguém
falte jamais o sinal sacramental da reconciliação através do perdão da Igreja.
13. A
misericórdia possui também o rosto da consolação. «Consolai, consolai o meu
povo» (Is 40, 1): são as palavras sinceras que o profeta faz ouvir ainda hoje,
para que possa chegar uma palavra de esperança a quantos estão no sofrimento e
na aflição. Nunca deixemos que nos roubem a esperança que provém da fé no
Senhor ressuscitado. É verdade que muitas vezes somos sujeitos a dura prova,
mas não deve jamais esmorecer a certeza de que o Senhor nos ama. A sua
misericórdia expressa-se também na proximidade, no carinho e no apoio que
muitos irmãos e irmãs podem oferecer quando sobrevêm os dias da tristeza e da
aflição. Enxugar as lágrimas é uma ação concreta que rompe o círculo de solidão
onde muitas vezes se fica encerrado.
Todos
precisamos de consolação, porque ninguém está imune do sofrimento, da
tribulação e da incompreensão. Quanta dor pode causar uma palavra maldosa,
fruto da inveja, do ciúme e da ira! Quanto sofrimento provoca a experiência da
traição, da violência e do abandono! Quanta amargura perante a morte das
pessoas queridas! E, todavia, Deus nunca está longe quando se vivem estes
dramas. Uma palavra que anima, um abraço que te faz sentir compreendido, uma
carícia que deixa perceber o amor, uma oração que permite ser mais forte... são
todas expressões da proximidade de Deus através da consolação oferecida pelos
irmãos.
Às
vezes, poderá ser de grande ajuda também o silêncio; porque em certas ocasiões
não há palavras para responder às perguntas de quem sofre. Mas, à falta da palavra,
pode suprir a compaixão de quem está presente, próximo, ama e estende a mão.
Não é verdade que o silêncio seja um ato de rendição; pelo contrário, é um
momento de força e de amor. O próprio silêncio pertence à nossa linguagem de
consolação, porque se transforma num gesto concreto de partilha e participação
no sofrimento do irmão.
14. Num
momento particular como o nosso que, entre muitas crises, regista também a da
família, é importante fazer chegar uma palavra de força consoladora às nossas
famílias. O dom do matrimónio é uma grande vocação, que se há de viver, com a
graça de Cristo, no amor generoso, fiel e paciente. A beleza da família
permanece inalterada, apesar de tantas sombras e propostas alternativas: «a
alegria do amor que se vive nas famílias é também o júbilo da Igreja».[17] A
senda da vida que leva um homem e uma mulher a encontrarem-se, amarem-se e
prometerem reciprocamente, diante de Deus, uma fidelidade para sempre, é muitas
vezes interrompida pelo sofrimento, a traição e a solidão. A alegria pelo dom
dos filhos não está imune das preocupações sentidas pelos pais com o seu
crescimento e formação, com um futuro digno de ser vivido intensamente.
A graça
do sacramento do Matrimónio não só fortalece a família, para que seja o lugar
privilegiado onde se vive a misericórdia, mas também compromete a comunidade
cristã e toda a atividade pastoral para pôr em realce o grande valor
propositivo da família. Por isso, este Ano Jubilar não pode perder de vista a
complexidade da realidade familiar atual. A experiência da misericórdia
torna-nos capazes de encarar todas as dificuldades humanas com a atitude do
amor de Deus, que não Se cansa de acolher e acompanhar.[18]
Não
podemos esquecer que cada um traz consigo a riqueza e o peso da sua própria
história, que nos distingue de qualquer outra pessoa. A nossa vida, com as suas
alegrias e os seus sofrimentos, é algo único e irrepetível que se desenrola sob
o olhar misericordioso de Deus. Isto requer, sobretudo por parte do sacerdote,
um discernimento espiritual atento, profundo e clarividente, para que toda a
pessoa sem exceção, em qualquer situação que viva, possa sentir-se
concretamente acolhida por Deus, participar ativamente na vida da comunidade e
estar inserida naquele Povo de Deus que incansavelmente caminha para a
plenitude do reino de Deus, reino de justiça, de amor, de perdão e de
misericórdia.
15. Reveste-se
de particular importância o momento da morte. A Igreja viveu sempre esta
dramática passagem à luz da ressurreição de Jesus Cristo, que abriu a estrada
para a certeza da vida futura. Temos aqui um grande desafio a abraçar,
sobretudo na cultura contemporânea que, muitas vezes, tende a banalizar a morte
até reduzi-la a simples ficção ou a ocultá-la. Ao contrário, a morte há de ser
enfrentada e preparada como uma passagem que, embora dolorosa e inevitável, é
cheia de sentido: o ato extremo de amor para com as pessoas que se deixam e
para com Deus a cujo encontro se vai. Em todas as religiões, o momento da morte
– como aliás o do nascimento – é acompanhado por uma presença religiosa. Nós
vivemos a experiência das exéquias como uma oração cheia de esperança para a
alma da pessoa falecida e para dar consolação àqueles que sofrem a separação da
pessoa amada.
Estou
convencido de que há necessidade, na pastoral animada por uma fé viva, de
tornar palpável como os sinais litúrgicos e as nossas orações são expressão da
misericórdia do Senhor. É Ele próprio que oferece palavras de esperança, porque
nada nem ninguém poderá separar-nos jamais do seu amor (cf. Rm 8, 35.38-39). A
partilha deste momento pelo sacerdote é um acompanhamento importante, porque
lhe permite viver a proximidade à comunidade cristã no momento de fraqueza,
solidão, incerteza e pranto.
16. Termina
o Jubileu e fecha-se a Porta Santa. Mas a porta da misericórdia do nosso
coração permanece sempre aberta de par em par. Aprendemos que Deus Se inclina
sobre nós (cf. Os 11, 4), para que também nós possamos imitá-Lo inclinando-nos
sobre os irmãos. A saudade que muitos sentem de regressar à casa do Pai, que
aguarda a sua chegada, é suscitada também por testemunhas sinceras e generosas
da ternura divina. A Porta Santa, que cruzamos neste Ano Jubilar, introduziu-nos
no caminho da caridade, que somos chamados a percorrer todos os dias com
fidelidade e alegria. É a estrada da misericórdia que torna possível encontrar
tantos irmãos e irmãs que estendem a mão para que alguém a possa agarrar a fim
de caminharem juntos.
Querer
estar perto de Cristo exige fazer-se próximo dos irmãos, porque nada é mais
agradável ao Pai do que um sinal concreto de misericórdia. Por sua própria
natureza, a misericórdia torna-se visível e palpável numa ação concreta e
dinâmica. Uma vez que se experimentou a misericórdia em toda a sua verdade,
nunca mais se volta atrás: cresce continuamente e transforma a vida. É, na
verdade, uma nova criação que faz um coração novo, capaz de amar plenamente, e
purifica os olhos para reconhecerem as necessidades mais ocultas. Como são
verdadeiras as palavras com que a Igreja reza na Vigília Pascal, depois da
leitura da narração da criação: «Senhor nosso Deus, que de modo admirável
criastes o homem e de modo mais admirável o redimistes…»![19]
A
misericórdia renova e redime, porque é o encontro de dois corações: o de Deus
que vem ao encontro do coração do homem. Este inflama-se e o primeiro cura-o: o
coração de pedra fica transformado em coração de carne (cf. Ez 36, 26), capaz
de amar, não obstante o seu pecado. Nisto se nota que somos verdadeiramente uma
«nova criação» (Gal 6, 15): sou amado, logo existo; estou perdoado, por
conseguinte renasço para uma vida nova; fui «misericordiado» e,
consequentemente, feito instrumento da misericórdia.
17. Durante
o Ano Santo, especialmente nas «sextas-feiras da misericórdia», pude verificar
concretamente a grande quantidade de bem que existe no mundo. Com frequência,
não é conhecido porque se realiza diariamente de forma discreta e silenciosa.
Embora não façam notícia, existem muitos sinais concretos de bondade e ternura
para com os mais humildes e indefesos, os que vivem mais sozinhos e
abandonados. Há verdadeiros protagonistas da caridade, que não deixam faltar a
solidariedade aos mais pobres e infelizes. Agradecemos ao Senhor por estes dons
preciosos, que convidam a descobrir a alegria de aproximar-se da humanidade
ferida. Com gratidão, penso nos inúmeros voluntários que diariamente dedicam o
seu tempo a manifestar a presença e proximidade de Deus com a sua entrega. O
seu serviço é uma genuína obra de misericórdia, que ajuda muitas pessoas a
aproximar-se da Igreja.
18.
É a hora de dar espaço à imaginação a propósito da misericórdia para dar vida a
muitas obras novas, fruto da graça. A Igreja precisa de narrar hoje aqueles
«muitos outros sinais» que Jesus realizou e que «não estão escritos» (Jo 20,
30), de modo que sejam expressão eloquente da fecundidade do amor de Cristo e
da comunidade que vive d’Ele. Já se passaram mais de dois mil anos, e todavia
as obras de misericórdia continuam a tornar visível a bondade de Deus.
Ainda
hoje populações inteiras padecem a fome e a sede, sendo grande a preocupação
suscitada pelas imagens de crianças que não têm nada para se alimentar.
Multidões de pessoas continuam a emigrar dum país para outro à procura de
alimento, trabalho, casa e paz. A doença, nas suas várias formas, é um motivo
permanente de aflição que requer ajuda, consolação e apoio. Os estabelecimentos
prisionais são lugares onde muitas vezes, à pena restritiva da liberdade, se
juntam transtornos por vezes graves devido às condições desumanas de vida. O
analfabetismo ainda é muito difuso, impedindo aos meninos e meninas de se
formarem, expondo-os a novas formas de escravidão. A cultura do individualismo
exacerbado, sobretudo no Ocidente, leva a perder o sentido de solidariedade e
responsabilidade para com os outros. O próprio Deus continua a ser hoje um
desconhecido para muitos; isto constitui a maior pobreza e o maior obstáculo
para o reconhecimento da dignidade inviolável da vida humana.
Em
suma, as obras de misericórdia corporal e espiritual constituem até aos nossos
dias a verificação da grande e positiva incidência da misericórdia como valor
social. Com efeito, esta impele a arregaçar as mangas para restituir dignidade
a milhões de pessoas que são nossos irmãos e irmãs, chamados connosco a
construir uma «cidade fiável».[20]
19. Muitos
sinais concretos de misericórdia foram realizados durante este Ano Santo.
Comunidades, famílias e indivíduos crentes redescobriram a alegria da partilha
e a beleza da solidariedade. Mas não basta. O mundo continua a gerar novas
formas de pobreza espiritual e material, que comprometem a dignidade das
pessoas. É por isso que a Igreja deve permanecer vigilante e pronta para
individuar novas obras de misericórdia e implementá-las com generosidade e
entusiasmo.
Assim,
ponhamos todo o esforço em dar formas concretas à caridade e, ao mesmo tempo,
entender melhor as obras de misericórdia. Com efeito, esta possui um efeito
inclusivo pelo que tende a difundir-se como uma nódoa de azeite e não conhece
limites. E, neste sentido, somos chamados a dar um novo rosto às obras de
misericórdia que conhecemos desde sempre. De facto a misericórdia extravasa;
vai sempre mais além, é fecunda. É como o fermento que faz levedar a massa (cf.
Mt 13, 33), e como o grão de mostarda que se transforma numa árvore (cf. Lc 13,
19).
A
título de exemplo, basta pensar na obra de misericórdia corporal vestir quem
está nu (cf. Mt 25, 36.38.43.44). A mesma nos reconduz aos primórdios, ao
jardim do Éden, quando Adão e Eva descobriram que estavam nus e, ouvindo
aproximar-Se o Senhor, tiveram vergonha e esconderam-se (cf. Gn 3, 7-8).
Sabemos que o Senhor castigou-os; no entanto, Ele «fez a Adão e à sua mulher
túnicas de peles e vestiu-os» (Gn 3, 21). A vergonha é superada e a dignidade
restituída.
Fixemos
o olhar também em Jesus no Gólgota. Na cruz, o Filho de Deus está nu; a sua
túnica foi sorteada e levada pelos soldados (cf. Jo 19, 23-24); Ele não tem
mais nada. Na cruz, manifesta-se ao máximo a partilha de Jesus com as pessoas
que perderam a dignidade, por terem sido privadas do necessário. Assim como a
Igreja é chamada a ser a «túnica de Cristo»[21] para revestir o seu Senhor,
assim também ela se comprometeu a tornar-se solidária com os nus da terra a fim
de recuperarem a dignidade de que foram despojados. Assim as palavras de Jesus
– «estava nu e destes-me que vestir» (Mt 25, 36) – obrigam-nos a não desviar o
olhar das novas formas de pobreza e marginalização que impedem às pessoas de
viverem com dignidade.
Não ter
trabalho nem receber um salário justo, não poder ter uma casa ou uma terra onde
habitar, ser discriminados pela fé, a raça, a posição social... estas e muitas
outras são condições que atentam contra a dignidade da pessoa; frente a elas, a
ação misericordiosa dos cristãos responde, antes de mais nada, com a vigilância
e a solidariedade. Hoje são tantas as situações em que podemos restituir
dignidade às pessoas, consentindo-lhes uma vida humana. Basta pensar em tantos
meninos e meninas que sofrem violências de vários tipos, que lhes roubam a
alegria da vida. Os seus rostos tristes e desorientados permanecem impressos na
minha mente; pedem a nossa ajuda para serem libertados da escravidão do mundo
contemporâneo. Estas crianças são os jovens de amanhã; como estamos a
prepará-las para viverem com dignidade e responsabilidade? Com que esperança
podem elas enfrentar o seu presente e o seu futuro?
O
caráter social da misericórdia exige que não permaneçamos inertes mas afugentemos
a indiferença e a hipocrisia para que os planos e os projetos não fiquem letra
morta. Que o Espírito Santo nos ajude a estar sempre prontos a prestar de forma
efetiva e desinteressada a nossa contribuição, para que a justiça e uma vida
digna não permaneçam meras palavras de circunstância, mas sejam o compromisso
concreto de quem pretende testemunhar a presença do Reino de Deus.
20. Somos
chamados a fazer crescer uma cultura de misericórdia, com base na redescoberta
do encontro com os outros: uma cultura na qual ninguém olhe para o outro com
indiferença, nem vire a cara quando vê o sofrimento dos irmãos. As obras de
misericórdia são «artesanais»: nenhuma delas é cópia da outra; as nossas mãos
podem moldá-las de mil modos e, embora seja único o Deus que as inspira e única
a «matéria» de que são feitas, ou seja, a própria misericórdia, cada uma
adquire uma forma distinta.
Com
efeito, as obras de misericórdia, tocam toda a vida duma pessoa. Por isso,
temos possibilidade de criar uma verdadeira revolução cultural precisamente a
partir da simplicidade de gestos que podem alcançar o corpo e o espírito, isto
é, a vida das pessoas. É um compromisso que a comunidade cristã pode assumir,
na certeza de que a Palavra do Senhor não cessa de a chamar para sair da
indiferença e do individualismo em que somos tentados a fechar-nos levando uma
existência cómoda e sem problemas. «Os pobres, sempre os tendes convosco» (Jo
12, 8): disse Jesus aos seus discípulos. Não há desculpa que possa justificar a
incúria, quando sabemos que Ele Se identificou com cada um deles.
A
cultura da misericórdia forma-se na oração assídua, na abertura dócil à ação do
Espírito, na familiaridade com a vida dos Santos e na solidariedade concreta
para com os pobres. É um convite premente para não se equivocar onde é
determinante comprometer-se. A tentação de se limitar a fazer a «teoria da
misericórdia» é superada na medida em que esta se faz vida diária de
participação e partilha. Aliás, nunca devemos esquecer as palavras com que o
apóstolo Paulo – ao contar o encontro depois da sua conversão com Pedro, Tiago
e João – põe em realce um aspeto essencial da sua missão e de toda a vida
cristã: «Só nos disseram que nos devíamos lembrar dos pobres – o que procurei
fazer com o maior empenho» (Gal 2, 10). Não podemos esquecer-nos dos pobres:
trata-se dum convite hoje mais atual do que nunca, que se impõe pela sua
evidência evangélica.
21. Que
a experiência do Jubileu imprima em nós estas palavras do apóstolo Pedro:
outrora «não tínheis alcançado misericórdia e agora alcançastes misericórdia»
(1 Ped 2, 10). Não guardemos ciosamente só para nós tudo o que recebemos;
saibamos partilhá-lo com os irmãos atribulados, para que sejam sustentados pela
força da misericórdia do Pai. As nossas comunidades abram-se para alcançar a
todas as pessoas que vivem no seu território, para que chegue a todas a carícia
de Deus através do testemunho dos crentes.
Este é
o tempo da misericórdia. Cada dia da nossa caminhada é marcado pela presença de
Deus, que guia os nossos passos com a força da graça que o Espírito infunde no
coração para o plasmar e torná-lo capaz de amar. É o tempo da misericórdia para
todos e cada um, para que ninguém possa pensar que é alheio à proximidade de
Deus e à força da sua ternura. É o tempo da misericórdia para que quantos se
sentem fracos e indefesos, afastados e sozinhos possam individuar a presença de
irmãos e irmãs que os sustentam nas suas necessidades. É o tempo da
misericórdia para que os pobres sintam pousado sobre si o olhar respeitoso mas
atento daqueles que, vencida a indiferença, descobrem o essencial da vida. É o
tempo da misericórdia para que cada pecador não se canse de pedir perdão e
sentir a mão do Pai, que sempre acolhe e abraça.
À luz
do «Jubileu das Pessoas Excluídas Socialmente», celebrado quando já se iam
fechando as Portas da Misericórdia em todas as catedrais e santuários do mundo,
intuí que, como mais um sinal concreto deste Ano Santo extraordinário, se deve
celebrar em toda a Igreja, na ocorrência do XXXIII Domingo do Tempo Comum, o
Dia Mundial dos Pobres. Será a mais digna preparação para bem viver a
solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo Rei do Universo, que Se identificou com
os mais pequenos e os pobres e nos há de julgar sobre as obras de misericórdia
(cf. Mt 25, 31-46). Será um Dia que vai ajudar as comunidades e cada batizado a
refletir como a pobreza está no âmago do Evangelho e tomar consciência de que
não poderá haver justiça nem paz social enquanto Lázaro jazer à porta da nossa
casa (cf. Lc 16, 19-21). Além disso este Dia constituirá uma forma genuína de
nova evangelização (cf. Mt 11, 5), procurando renovar o rosto da Igreja na sua
perene ação de conversão pastoral para ser testemunha da misericórdia.
22. Sobre
nós permanecem pousados os olhos misericordiosos da Santa Mãe de Deus. Ela é a
primeira que abre a procissão e nos acompanha no testemunho do amor. A Mãe da
Misericórdia reúne a todos sob a proteção do seu manto, como A quis
frequentemente representar a arte. Confiemos na sua ajuda materna e sigamos a indicação
perene que nos dá de olhar para Jesus, rosto radiante da misericórdia de Deus.
Dado em
Roma, junto de São Pedro, em 20 de novembro – Solenidade de Cristo Rei – do Ano
do Senhor de 2016, quarto do meu pontificado.
FRANCISCO
[1] In
Johannis 33, 5.
[2]
HERMAS, O Pastor, 42, 1-4.
[3] Cf.
Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium, 27.
[4]
Missal Romano, III Domingo da Quaresma.
[5]
Ibid., Prefácio VII dos Domingos do Tempo Comum.
[6]
Ibid., Oração Eucarística IV.
[7]
Ibid., Oração Eucarística II.
[8] Ibid.,
Ritos da Comunhão.
[9]
Ritual da Penitência, n. 46.
[10]
Ritual da Unção dos Enfermos, n. 76.
[11]
Cf. Concílio Ecuménico Vaticano II, Const. Sacrosanctum Concilium, 106.
[12]
Idem, Const. dogm. Dei Verbum, 2.
[13]
Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium, 142.
[14]
Cf. Bento XVI, Exort. ap. pós-sinodal Verbum Domini, 86-87.
[15]
Cf. Carta pela qual se concede a indulgência por ocasião do Jubileu da
Misericórdia, 1 de setembro de 2015.
[16]
Cf. ibidem.
[17]
Francisco, Exort. ap. pós-sinodal Amoris laetitia, 1.
[18]
Cf. ibid., 291-300.
[19]
Missal Romano, Vigília Pascal, Oração depois da Primeira Leitura.
[20]
Bento XVI, Carta enc. Lumen fidei, 50.
[21]
Cipriano, A unidade da Igreja Católica, 7.
Fonte: http://br.radiovaticana.va
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