No país há uma “classe perigosa”,
composta por jovens negros e moradores da periferia. É com esta premissa que
opera a repressão policial no país, afirma o diretor da Anistia Internacional
no Brasil, Atila Roque.
Em entrevista à Ponte, Roque diz ainda
que existe, por parte da sociedade, grande aceitação das mortes cometidas pelos
agentes das forças de segurança, principalmente devido à forma como normalmente
esses crimes são retratados pela chamada “grande mídia”. A seguir, a entrevista
com Roque:
PONTE
- O total de mortos por PMs no estado de SP subiu de 269 (primeiro semestre de
2013) para 434 (primeiro semestre de 2014). Como o senhor avalia esse
crescimento de 62% no número de mortos por PMs, seja no trabalho ou na folga?
ATILA
ROQUE -
Infelizmente essa variação reforça um padrão histórico de alta letalidade nas
ações policiais decorrente de um conjunto de fatores, que incluem uma polícia
formada para a “guerra” e para a eliminação do “inimigo”, despreparo técnico e
psicológico dos profissionais que atuam na ponta do policiamento e, sobretudo,
uma doutrina de segurança pública estruturada desde sempre por uma lógica de
repressão e controle das “classes perigosas”, o que leva a uma alta
concentração de jovens negros e pobres da periferia entre os mortos pela
polícia. “São dados escandalosos. Estamos a caminho de voltar ao patamar de
quase mil mortes por ano, somente no Estado de São Paulo”
Podemos acrescentar a isso uma
naturalização da violência que resulta em um grau alto de aceitação por parte
da sociedade – alimentada por uma grande indiferença da grande mídia sobre as
circunstâncias em que essas mortes ocorrem – que acaba por considerar o que
deveria ser percebido como um escândalo nacional, como um fato supostamente
inevitável da luta contra o crime. Sem uma mudança de fundo na doutrina da
segurança pública e na estrutura militarizada das polícias, juntamente com um
compromisso efetivo das altas autoridades do estado, a começar pelo governador,
com um policiamento voltado para a garantia do direito à segurança pública de
todas as pessoas, independente da classe social, local de moradia ou cor da pele,
continuaremos a conviver no Brasil e em São Paulo com a triste realidade de ter
uma das polícias que mais mata e mais
morre do mundo.
PONTE
- Como o senhor classifica os índices de letalidade da PM de São Paulo?
ATILA
ROQUE -
São dados escandalosos. Estamos a caminho de voltar ao patamar de quase mil
mortes por ano, somente no Estado de São Paulo, o mais rico e moderno do
Brasil. Basta pensar que a polícia de São Paulo matou em apenas 6 meses,
aproximadamente, quase o que todas as polícias dos Estados Unidos matam em um
ano. Para se ter uma ideia, em 2012 a polícia da cidade de Nova Iorque matou
(em serviço e fora de serviço) 16 pessoas. A da Filadélfia, no mesmo ano, matou
54 pessoas.
PONTE
– Na sua opinião, como seria possível fazer com que a PM de São Paulo matasse
menos?
ATILA
ROQUE -
É importante dizer que esse não é um desafio restrito a São Paulo, onde pelo
menos temos acesso aos dados referentes a essas mortes. Com exceção de poucos
estados, como é o caso de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, o Brasil
simplesmente não sabe quantas pessoas morrem nas mãos das policias, seja em
serviço ou fora de serviço. Isso em um país em que mais de 50 mil pessoas são
vítimas de homicídio todos os anos é um fato de extrema gravidade, considerando
que a primeira medida para se executar qualquer política de redução da
letalidade policial é saber quanto o estado mata e em quais circunstâncias.
Em relação a São Paulo, é necessário um
comprometimento mais amplo de todas as esferas do estado, em especial do
governador e das instâncias legislativas, para a implementação de políticas
efetivas de redução da letalidade, o que inclui não apenas treinamento e
protocolos claros sobre as circunstâncias em que o uso de armas de fogo é
aceitável, mas, sobretudo, investigação rigorosa e independente sobre as
situações que resultam em mortes de suspeitos.
Em relação a São Paulo, é necessário um
comprometimento mais amplo de todas as esferas do estado, em especial do
governador e das instâncias legislativas, para a implementação de políticas
efetivas de redução da letalidade, o que inclui não apenas treinamento e
protocolos claros sobre as circunstâncias em que o uso de armas de fogo é
aceitável, mas, sobretudo, investigação rigorosa e independente sobre as
situações que resultam em mortes de suspeitos. A responsabilidade sobre isso
cabe não apenas a Secretaria de Segurança Pública, mas especialmente às
instâncias externas de controle, como o Ministério Público e outras instâncias
da Justiça. O que temos visto, lamentavelmente, é um patamar alto de impunidade
e baixo nível de investigação para situações de homicídios envolvendo
policiais. Em geral a versão da polícia de que foi uma morte decorrente de
reação por parte da pessoa suspeita costuma ser aceita como ponto de partida
legítimo da investigação, com raras exceções – como, por exemplo, o caso dos
dois homens mortos na semana passada quando, tudo indica, foram surpreendidos e
mortos pelos agentes policiais em uma ação de pichação de um prédio e não de
ação criminosa violenta. Nesse caso a investigação, esperemos, será capaz de
apontar o que aconteceu de fato e a responsabilidade dos policiais envolvidos.
PONTE
– Que avaliação o senhor faz da resolução nº 5, feita pela Secretaria da Segurança
Pública em janeiro de 2013, que recomenda que a polícia não socorra feridos nas
ruas e aguarde atendimento especializado?
ATILA
ROQUE -
Acho ainda cedo para avaliar plenamente os efeitos dessa medida. Em princípio
ela se mostrou positiva, pois dificulta que se forjem os chamados autos de
resistência e falsos socorros de pessoas executadas em ações criminosas de
alguns policiais. Mas a redução da letalidade decorrente de ações policias e
das mortes de policiais em serviço ou fora de serviço não depende de uma medida
isolada, mas de um conjunto de fatores que formam a política de segurança
pública como um todo e as ações das policiais em particular, inclusive bom
treinamento, remuneração e apoio psicológico aos profissionais. Fonte: https://anistia.org.br
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